domingo, 17 de agosto de 2025

UM RESTINHO DE MEMÓRIA.

Um Restinho de Memória.
(por Antonio Samarone).

Resolvi usar a inteligência artificial (IA) para recuperar essa foto de mamãe. Pedi a um sobrinho sabido. A tecnologia só recuperou as aparências genéricas. Não captou o semblante, trocou o olhar. A foto recuperada deixou de expressar a de alma de mamãe, que eu enxergava na foto antiga.

Ainda bem que recuperou a beleza. Mamãe era a tabaroa mais bonita das Flechas.

A IA apagou a subjetividade do olhar de mamãe, captada pelo inconsciente óptico da foto antiga e ainda guardado em minha memória analógica. Com a idade, as lembranças infantis estão brotando, em seus mínimos detalhes.

Um aviso da memória: “aproveite enquanto é tempo, pois estou de malas prontas. Vou embora!” Ainda me lembro das curvas das estradas, dos erros, dos medos, dos sonhos e dos sofrimentos. Como sei que os dias da memória estão contados, vou anotar o que posso.

A consciência não é produto do cérebro, por mais que as neurociências afirmem. O cérebro é o receptor. A consciência é um fenômeno cósmico. A ciência em breve reconhecerá. Portanto, essa ameaça da memória não me assusta. O medo é outro!

Minha mãe era uma católica tridentina, temente a Deus. Ela tinha uma cópia do catecismo do Concílio de Trento, que estampava na capa: “O Cristão confia apenas na misericórdia de Deus”. O catecismo estava certo.

O medo do “fogo eterno” era uma realidade poderosa. O poder de destruição de uma guerra nuclear será esse fogo eterno.

Acho que depois do Concílio Vaticano II mamãe esfriou com o catolicismo, terminou virando evangélica. Eu já tinha voado do ninho. O que ficou em minha memória foi mamãe na Irmandade das Filhas de Maria”. E eu, neto de Maria!

A minha primeira lembrança, era a missa rezada em latim, com o padre de costa para o rebanho. Mamãe acompanhava, sem saber o latim, apenas pela sonoridade. Cantava fervorosamente, em voz alta, o “Tantum ergo sacramentum”. Eu gostava da liturgia e do cheiro do incenso na hora da eucaristia.

Eu gostava do cheiro da igreja, das luzes das velas, dos sons dos sinos, das rezas cantadas e das devoções fingidas. Tinha medo das imagens do Senhor Morto e de Nossa Senhora das Dores.

Sinto saudade do coral das devotas, ressoando em meus ouvidos: “Queremos Deus, homens ingratos/ ao Pai Supremo ao Redentor/ Zombam da fé os insensatos/ Erguem-se em vão contra o Senhor.”

O catecismo de Trento ensinava que a caridade era o caminho da salvação e a esmola era a caridade no varejo. Seja lá quanto for, todos podiam dar uma esmola. “Quem dar aos pobres empresta a Deus.”

Nessa visão medieval, acabar com a pobreza seria um despropósito. Com quem praticar a caridade?

Em Itabaiana, o pão dos pobres era uma prática sagrada dos devotos de Santo Antonio.

Aos domingos, à frente da Matriz de Santo Antonio e Almas, em Itabaiana, ficava lotada de mendigos, prontos para ajudar na salvação dos ricos e remediados.

Quando Seu Durval do Açúcar ia à missa, os mendigos tiravam a sorte grande. Ele dava cinco contos de reis a cada um. Uma cédula bonita, que levava a esfinge do Barão do Rio Branco. Seu Durval era um rico que passaria no buraco da agulha, como dizia mamãe.

O generoso Durval do Açúcar distribuía o peixe e coco para os pobres, na Semana Santa. A fila em sua porta dobrava quarteirões. Não precisava avisar, todo mundo sabia o dia. Vinha gente de longe.

Certa feita, uma senhora que tinha pose de rica entrou na fila do Peixe. Logo-logo um puxa-saco foi fuxicar: “Seu Durval, fulana está na fila e ela não precisa. Todo mundo sabe que ela é rica.” Seu Durval, no alto da sua sabedoria, repreendeu o fuxiqueiro: “Deixe de besteira, se ela está na fila é porque precisa, ninguém passa por esse vexame à toa.”

Mamãe precisava, mas nunca foi. Preferia comer pilombeta na brasa. Ela dizia, tem gente mais precisada, eu me viro. A vergonha é um mecanismo de controle social poderoso.

Deixe-me parar por aqui, na fila do peixe de Seu Durval do Açúcar.

Antonio Samarone – Secretário de Cultura de Itabaiana.
 

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