domingo, 31 de janeiro de 2021

AS DOIDICES DA PESTE


As Doidices da Peste.
(por Antonio Samarone)

Uma Pandemia não é apenas uma doença grave que se manifesta de forma epidêmica. A Peste é bem mais. A Peste é um fenômeno sanitário, psicológico, social, econômico, cultural, histórico e ambiental. Afeta profundamente o modo de vida.

A Peste, a fome e a guerra acompanham a evolução da humanidade, estão gravadas em nosso inconsciente, em nossa nossa memória atávica. As Pestes, historicamente falando, apresentam características semelhantes, mudam pouco.

A Peste é biológica em suas raízes e social em suas manifestações, entre uma e outra ela passa pela mente. Afeta a senso percepção. As fronteiras entre o delírio e a realidade se desvanecem.

Lembrei-me de Drummond: “Que é loucura: ser cavaleiro andante ou segui-lo como escudeiro? De nós dois, quem é o louco verdadeiro? O que, acordado, sonha doidamente? O que, mesmo vendado, vê o real e segue o sonho de um doido pelas bruxas embruxado?”

A Pandemia uniu o real e o virtual na mente humana. As redes sociais substituiu a vida, se é que a vida era o que a gente pensava.

A velha polêmica da filosofia se o real existe ou é fruto da nossa imaginação, que parecia resolvida, encontra-se em aberto.

O sonho e a realidade são farinha do mesmo saco. Voltei à Caverna de Platão!

Comecei a dar aulas pelo método remoto, virtualmente. Não conheço os alunos, tenho profunda dúvidas das suas existências. A maioria desliga o microfone e a câmara e eu vejo apenas uma pequena mancha na tela do computador.

Eles existem, me afiançou um professor mais treinado no mundo virtual, serão os futuros médicos, que enfrentarão as próximas Pestes. Eu perdi a convicção, a certeza da realidade, mas vou precisar avaliá-los, dar uma nota, para que eles sigam em frente nesse mundo das sombras.

Liguei para um colega psiquiatra para saber se essa confusão estava no limite da normalidade ou Eu já estou precisando de um diagnóstico. Ele disse-me que não fazia consultas por telefone e, como está em rigorosa quarentena, a minha dúvida só será esclarecida pessoalmente, no final da Pandemia.

Isto é, se a gente sobreviver à Peste!

Eu pensei, não tenho escapatória, o Manual de Diagnóstico da DSM (americano) oferece centenas de opções de “transtornos mentais”. Ninguém se salva, com uma avaliação rigorosa.

Ainda bem que deixou de ser “doença mental”, o meu medo era receber o carimbo de psicótico, alienado, doido de pedra, e ter que enfrentar a discriminação odiosa dos amigos.

Ele aproveitou a conversa e indagou: como sanitarista, o que você acha dessa cepa do SARS-CoV-2 que apareceu em Sergipe, com mais de 8 mutações? Eu não acho nada, ainda estão estudando.

Eu tenho medo que o mutante da Amazônia chegue por aqui, aí sim, teremos uma desgraça.

Voltarei em breve, com mais Doidices da Peste.

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

sábado, 30 de janeiro de 2021

A DIÁSPORA SERGIPANA E O CRIME DOS BRITTOS


A Diáspora Sergipana e o Crime dos Brittos.
(Por Antonio Samarone)

No final do Século XIX, centenas de cérebros sergipanos migraram para São Paulo. Não foram apenas braços para a lavoura e construção civil. Quem partiu foi a inteligência. Os sergipanos formados em Salvador e Recife não tinham como retornar. Muitos marcharam para a progressista São Paulo.

A família do farmacêutico diplomado Manoel Joaquim de Souza Brito, natural de Rosário do Catete, escolheu Araraquara. Manoel Joaquim, pai de 8 filhos, era casado com Benvinda de Souza Brito e gerente da Farmácia São Bento, na Praça da Matriz em Araraquara.

Vivia com o Farmacêutico, o seu sobrinho, Jornalista Rozendo de Souza Britto, sergipano, militante monarquista. Rosendo trabalhava no Jornal “O Binóculo”.

Fins do século XIX, a cidade de Araraquara com 12 mil habitantes, se recuperava da epidemia de Febre Amarela, ampliava suas riquezas econômicas através da produção do café e escoava pela estrada de ferro, inaugurada em 1885. O chefe político era cafeicultor Coronel Antônio Joaquim de Carvalho.

O Jornalista sergipano Rosendo Britto, fazia oposição ao chefe político. Um episódio rotineiro gerou a desgraça: um popular, conhecido por Chico Viola, brigou num bar e foi preso e surrado pelo chefe de polícia, Tenente João Batista Soares. O jornalista põe a culpa no Chefe político.

Num fatídico sábado, 30 de janeiro de 1897, por volta das 17 horas, o Coronel Antônio Joaquim enxerga, de sua casa, o jornalista Rozendo adentrando na Farmácia São Bento, onde o tio Manoel de Souza Brito trabalhava.

O Coronel Carvalho resolveu tirar satisfações com o jornalista e vai até a farmácia. O Coronel agrediu o jovem a bengaladas. Manoel, tio de Rozendo, tentou apaziguar a situação, mas o rapaz, caído por baixo, acertou mortalmente o coronel com um disparo de garrucha.

Após o episódio, o jornalista Rozendo e seu tio Manoel são presos e encaminhados à cadeia pública da cidade.

Decorrido uma semana do velório e sepultamento do Coronel Antônio Joaquim de Carvalho, no início da primeira hora do dia 07 de fevereiro, madrugada de domingo, os prisioneiros Rozendo e Manoel (foto acima) são arrastados para fora da cadeia pública por alguns indivíduos, linchados e abandonados no largo da Igreja Matriz.

O intelectual Luiz Antonio Barreto, descreveu o episódio:

“Na noite de 6 de fevereiro de 1897, varando a madrugada do dia 7, cerca de 80 homens, (há quem registre que foram centenas de homens, que se valeram da falta de segurança do presídio) encapuzados, invadiram a delegacia, retiraram os dois presos e lincharam com “unhas, dentes, punhais e machados” os dois sergipanos.”

Ambos, sobrinho e tio, foram sepultados pelos capangas dos Carvalho a quilômetros do centro da cidade, no Cemitério das Cruzes. A tragédia teve repercussão Nacional.

A colônia sergipana em Santos manifestou-se, enviando um telegrama ao governador de Sergipe pedindo a ele que intercedesse junto ao governador de São Paulo para que houvesse justiça.

Ninguém foi punido!

Em Aracaju, mais de duas mil pessoas saíram às ruas na época, clamando por justiça e deplorando o assassinato bárbaro dos dois conterrâneos, segundo Luiz Antonio Barreto.

Após 124 anos do ocorrido, o povo de Araraquara, se envergonha da brutalidade e transformou Manuel Joaquim de Souza Britto e Rozendo de Souza Britto em seus mártires. Criaram um memorial: a Capela dos Milagres, no Cemitério das Cruzes.

O professor paulista Rodolpho Telarolli, escreveu o livro “República de Sangue”, sobre a tragédia dos Brittos sergipanos. O linchamento dos Brittos já virou peça de teatro, teses e livros de história. Tudo em São Paulo.

O grupo Belazarte realizou uma peça de teatro denominada “Um Século de Silêncio” abordando o tema do assassinato dos Brittos, com direção de Anysio Ribeiro. A peça foi adaptada de livro de título homônimo, escrito pelo jornalista José Carlos Magdalena.

Em Sergipe, o tema foi estudado pelo intelectual Luiz Antonio Barreto (como sempre): “Araraquara a marca da Tragédia” e pelo historiador Adailton dos Santos Andrade, na Série Rosarenses Ilustres: “Um crime em Araraquara”. Se mais gente tratou do assunto, eu peço desculpas por desconhecer.

O povo sergipano nunca ouviu falar dos conterrâneos. Nem mesmo os jornalistas e farmacêuticos se lembram dos colegas. O tema merece a atenção dos pesquisadores.

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O MERCADO DA MORTE EM ARACAJU


O Mercado da Morte em Aracaju
(por Antonio Samarone)

Em 16 de maio de 1979, tomou posse como Diretor do Hospital Cirurgia, o ilustre Dr. Djenal Gonçalves Soares. Além da crise do Pronto Socorro, ele começou enfrentando um problema inusitado: a Funerária Salmeron tinha instalado uma filial, ao lado do Cirurgia.

Essa atitude de plena liberdade comercial, foi entendida em Aracaju como uma afronta à coletividade e um desrespeito ao sentimento das famílias dos mortos naquela Casa de Saúde.

Como pode, caixões expostos na calçada, defronte ao Pronto Socorro? Perguntavam os políticos, padres, pastores, radialistas, donas de casas, fofoqueiros e desocupados.

Só se falava nisso em Aracaju.

Os estudantes de medicina fizeram uma reunião no Centro Acadêmico de Medicina, com essa pauta. Eu participei, mas não me lembro do teor dos debates.

A centenária “Associação das Carpideiras, Coveiros e Defunteiros de Sergipe” emitiu uma nota pública confusa. Ninguém entendeu se a Entidade estava contra ou a favor, muito pelo contrário.

A questão mobilizou a comunidade aracajuana, com debates acalorados. A maioria era contra! Os vereadores não falavam de outro assunto, nas sessões da Câmara Municipal.

O novo Diretor, Dejnal Gonçalves, expressou pela a imprensa a sua preocupação: “se as demais Funerárias - Satélite, Universal e Sergipana - resolverem seguir o mesmo caminho, será criada uma “Avenida das Funerárias, ironicamente, ao lado do nosso maior Hospital”.

Os papa-defuntos eram atores relevantes na precária situação de Saúde dos sergipanos, no final da década de 1970.

Na verdade, a polêmica sobre a localização das funerárias era supérflua, pois elas já atuavam dentro do Hospital, indiscretamente, ao lado dos leitos de cada moribundo. Era frequente a acusação de recebimento de propina por parte de um ou outro funcionário inescrupuloso, para favorecer esta ou aquela funerária.

A disputa pelo morto era acirrada em Aracaju.

A coisa ficou tão grave, que diante do escândalo, resolveu-se fazer uma escala das funerárias, cada uma teria o seu dia de faturamento.

O zeloso Prefeito Heráclito Rollemberg envolveu-se pessoalmente para resolver a crise das funerárias, convocando todos os proprietários para uma reunião no Paço Municipal.

No acordo, ficou decidido que as funerárias não deveriam mais expor as urnas funerárias (caixões de defunto) publicamente, colocá-los acintosamente em vitrines e calçadas. As funerárias também foram obrigadas a colocar cortinas (azuis ou brancas) nas respectivas portas, para evitar olhares curiosos ou desavisados.

Nesta reunião, os papa-defuntos cobraram do Prefeito uma atitude imparcial da municipalidade na aquisição dos caixões para os necessitados, sem o privilegio de nenhuma funerária.

A morte é um mercado suculento e a sua disputa travada sem a menor cerimônia.

A morte tinha virado mercadoria, em Aracaju.

Hoje esse mercado é explorado com naturalidade, de forma organizada, por Empresas especializados no ramo. Além do esquife, oferecem-se flores, velas, maquiagem, mortalhas, acomodações para os prantos e demais honras fúnebres.

Tudo, em suaves prestações.

Antonio Samarone (médico sanitarista).