domingo, 31 de março de 2019

CADA DOENÇA EM SEU TEMPO.



Cada doença em seu tempo. (Por Antônio Samarone)

Surgiu recentemente num povoado do agreste sergipano um sujeito de nome Zacarias do Nicó, com um comportamento estranho. Seu Zacarias passou a viver isolado, taciturno, olhar fixo e incerto. Ao final de tarde, sol posto, ele sai em disparada, estrada afora, com uma sede de sangue humano, numa demonstração extravagante de raiva. Seu Zacarias acredita ser um lobo.

Ninguém até agora sabe do que se trata. Já levaram a um padre, acreditando-se que Seu Zacarias estaria endemoniado; perderam o tempo, a igreja moderna, depois do Vaticano II, não acredita mais nessas crendices. Levaram Zacarias a um macumbeiro, suspeitando ser um encosto, também não tiveram sucesso. O macumbeiro acha que não existe mais encosto, possessões, isso é besteira, acabou, disse ele, coisa do passado.

A família me procurou com medo que o caso chegasse a polícia, e a força pública desse ao Seu Zacarias o mesmo destino que deram a Pepita. Lembram-se de Pepita? Um garoto de Itabaianinha com transtorno mental, que virou uma fera indomada, sendo perseguido por semanas, numa caçada implacável, até ser morto a machadada por um popular amedrontado. Parte da imprensa comemorou.

Percebi que o risco existe e aconselhei que eles procurassem a medicina. Quem, qual o médico? Sugeri o Dr. Nicanor, psiquiatra aposentado, com larga experiencia em todos os tipos de doidices. A família acatou a minha sugestão. O doutor examinou Zacarias minunciosamente. Procurou no DSM - V, manual americano com mais de quatrocentos tipos de transtorno mental; procurou no Código Internacional das Doenças, CID-11 (o novo), e nada. A doença de Zacarias não existe para a ciência.

Dr. Nicanor, médico antigo, lembrou ter conhecido uma doença mental, que saiu de moda, chamada licantropia. Um tipo de alienação, onde o indivíduo ficava fora de si de raiva, corria ao ar livre, imita a voz e os modos do cão ou do lobo. O povo chamava esse padecente de lobisomem. A doença é antiga, citada nas Bucólicas de Virgílio. Foi importada de Portugal.

A licantropia é uma monomania na qual o doente se acredita transformado em lobo ou outro animal selvagem. Corre, uiva, desenterra cadáveres e ataca os desavisados. São delírios arcaicos. Não é obrigado que os delirantes achem sempre que são Napoleão. Uns deliram se achando feras. O Dr. Nicanor já atendeu vários casos em Campo do Brito, que sempre teve tradição de grandes lobisomens.

Não sei o fim que levaram os lobisomens do Brito, comentou o facultativo!

Dr. Nicanor está desiludido: que tempos! Já voltou a sífilis, a tuberculose, a lepra, a cólera, agora me aparece um lobisomem. Sá falta restaurarem a escravidão e a ditadura.]

Antônio Samarone.

sexta-feira, 29 de março de 2019

O INFARTO DA ALMA...





O Infarto da Alma – (por Antônio Samarone)
Resenha da Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul.

“Com a morte de Deus, louvamos a saúde – nós encontramos a felicidade – dizem os últimos homens e piscam os olhos.” Nietzsche.

Freud apontava a histeria e as neuroses como as doenças da idade moderna, quando a negatividade, o controle, a repressão e a disciplina predominavam. O homem precisava ser adestrado, para adequar-se ao taylorismo. O homem máquina.

O vigiar e punir de Foucault foi superado pela internalização da disciplina.

Nas sociedades ocidentais pós-modernas, pós-industriais, predomina as positividades (yes, we can), são sociedades do desempenho, com novas subjetividades. Síndrome de Burnout, transtorno do déficit de atenção (TDAH) e depressão são as doenças do capitalismo contemporâneo.

No lugar do enunciado disciplinar coercitivo (tu deves), imposto de fora; entra em cena um novo enunciado (nós podemos).” O sujeito do desempenho – mais rápido e eficiente - substitui o sujeito da obediência. A Sociedade disciplinar gerava loucos e delinquentes; a sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados. O sujeito do desempenho é um empresário de si mesmo.

O excesso de positividade se manifesta no excesso de estímulos, informações e impulsos, desestruturando a atenção, tornando-a dispersa, com rápidas mudanças de foco. É o fim do tédio contemplativo, perdendo-se o dom de escutar, sentir, ver e criar. A pura inquietação não gera nada novo, apenas uma atenção fragmentada.

Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é substituído pelo paradigma do desempenho. Contudo, o poder não cancela o dever, o sujeito do desempenho continua disciplinado. Nessa passagem para o paradigma do desempenho está a gênese dos elevados índices de depressão, expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno consigo mesmo.

Na patogenia da depressão ainda colaboram a carência de vínculos do homem pós-moderno e a violência sistêmica da sociedade que produz os infartos psíquicos. O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão do imperativo do desempenho. A perda da fé não só em Deus, como na realidade, torna a vida transitória. A dessacralização da vida conduz ao efêmero, ensejando nervosismos e inquietações.

O homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo. É agressor e vítima, prisioneiro e vigia, senhor e escravo ao mesmo tempo. O sujeito do desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo.   

A sociedade do cansaço solitário, do cansaço fundamental, se desdobra numa sociedade do doping cerebral (neuro-enhancer). Ritalina, cocerta, vyvanse e aderal para segurar o desempenho.

Encero com uma conhecida citação de Nietzsche: “Por falta de repouso nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto.”

Encero mesmos, com os versos de Lenine: Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/A vida não para... Enquanto o tempo acelera e pede pressa/Eu me recuso, faço hora, vou na valsa/A vida é tão rara...

Antônio Samarone.

quinta-feira, 28 de março de 2019

AS CASTANHAS DO CARRILHO


As castanhas do Carrilho... (por Antônio Samarone)

Mas não é sobre as castanhas que eu quero falar, mas sobre o povoado Carrilho. Luiz Antônio Barreto sempre perguntou, de onde vem esse nome, será uma homenagem a Fernão Carrilho, um dos capitães do mato que ajudou na destruição do Quilombo dos Palmares? Fernão Carrilho passou por Sergipe?  

Edison Carneiro, em sua obra sobre Palmares, eliminou essa dúvida: Em 1670, o Governador do Brasil Alexandre de Souza Freire mandou Fernão Carrilho conquistar mocambos de negros na Capitania de Sergipe. Na primeira Entrada que fez contra esses mocambos, a maior parte do homens brancos que o acompanhava desertou. Mesmo assim, com poucos índios, Fernão Carrilho desbaratou um Mocambo com mais de duzentos negros, e fez vinte prisioneiros.

Na segunda Entrada, os 17 Tapuias que o acompanhavam também desertaram, e o Capitão Fernão Carrilho, somente com um companheiro, se atirou e destruiu mais um mocambo, fazendo doze prisioneiro. O povoado Mocambo, em Frei Paulo, não possui esse nome à toa.

Fernão Carrilho tornou-se o capitão do mato mais famoso da Bahia. De Salvador ao Rio São Francisco, combateu e derrotou todos os negros levantados.

Em 1673, o Rei, em carta de 28 de junho, lhe ordenou que auxiliasse Rodrigo de Castelo Branco no descobrimento das minas de prata de Itabaiana. Fernão Carrilho aderiu a essa vã empresa com a sua pessoa e todos os seus escravos.

Tal era a folha de serviços do Capitão Fernão Carrilho à Coroa, que em 1676, o Governador Pedro de Almeida o convidou para cabear uma expedição contra Palmares. Contudo, a sorte dele virou em 1683, em nova expedição à Palmares. A conduto Fernão Carrilho desagradou ao Governador. Fernão Carrilho foi preso e degredado para a Capitania do Ceará.

Logo Fernão Carrilho seria perdoado. Ainda realizou a sua última expedição à Palmares em 1686, por ordem do Governador Souto Maior. Fernão Carrilho não conseguiu derrotar Palmares, obrigando ao governo entregar a tarefa ao paulista Domingos Jorge Velho, a quem coube a fama de ter destruído Palmares. Jorge Velho, aposentado há 16 anos, vivia no Piauí, em terra tomada dos índios.

A última vez que se ouviu falar de Fernão Carrilho foi em 1703, ele no Maranhão, como lugar tenente do Governador.

O Portal Itnet, em 18/09/2010, na sessão entretenimento, publicou uma biografia de Fernão Carrilho que vale a pena ser consultada. Não identifiquei a autoria do texto. O Portal Klepsidra, de Fabiano Vilaça dos Santos, também apresenta outra biografia de Fernão Carrilho.

Resta saber se a prospera comunidade do Carrilho, em Itabaiana, maior produtora de castanha do Nordeste, foi local de um dos quilombos destroçados por Carrilho, em Sergipe. Tarefa que repasso para os diligentes historiadores de Itabaiana.

Antônio Samarone.

segunda-feira, 25 de março de 2019

O CINEMA EM ITABAIANA



O Cinema em Itabaiana (por Antônio Samarone).

A música e a fotografia são as manifestações culturais mais antigas em Itabaiana. A Filarmônica é 1745 e a fotografia do inicio do século XX, com Miguel Teixeira. Contudo, outras iniciativas foram surgindo.

Itabaiana possui um cine clube organizado, sob o comando do Dr. Romulo, funcionando regulamente no museu da Filarmônica, na Praça da Igreja.

Antônio de Dóci escreveu que a primeira sessão de cinema em Itabaiana ocorreu em 1913. Santinho de Tetê e Zezé da Lagoa compraram um aparelho de projeção e um gerador, e exibiram numa residência na Rua do Sol, 196. O cinema chegou a Itabaiana apenas 18 anos após a famosa primeira exibição em Paris, no subsolo do Grande Café, no bulevar dos Capuchinhos, em 28 de dezembro de 1895.

Em 1919, Manoel Vieira Neto, tio de Zeca Mesquita, montou uma empresa de produção e distribuição de energia elétrica em Itabaiana. Seu Zeca foi o nosso Barão de Mauá. Em 1922, Seu Zeca montou o cinema popular, na rua do Cisco. Foi a única diversão dos ceboleiros, por muitos anos.

Em 1962, o cinema popular recebeu a concorrência do cinema do padre, o cine Santo Antônio, quando a igreja católica ainda disputava a hegemonia dos fiéis. Eu, menino, passei ir para a missa das oito, aos domingos, para assistir um filme de graça após a missa. Depois Zé Queiroz adquiriu o cinema do padre e funcionou até virar a Rádio Princesa da Serra.

Na década de 1970, o cinema de Zeca passava uns filmes de putaria, só para homens, a partir de 11 horas da noite. Eu ficava peruando, no Bar Brasília, doido para entrar, e nunca deixavam. Depois foi arrendado a Seu Tenison da Farmácia, e virou cinema Teny, já em cinemascope.

Na década de 1950, jovens inquietos, quase todos comunistas, montaram um cine clube em Itabaiana. Essa história está à espera de alguém que conte os detalhes, talvez Paulo de Dóci, que viveu e entende muito de cinema.

O cinema de Zeca Mesquita funcionou até 1985. Antes, serviu de palco para uma reunião histórica. Em 1981, o PT em construção, o cinema recebeu Lula e os simpatizantes de Itabaiana, sob a liderança do professor Zé Costa. Segundo Pulga de Cós, estavam presentes de mais de dez agentes do SNI.

O cinema era o encanto das pequenas aldeias interioranas. Quem não é desse tempo, assista “cinema paradiso”, que revela bem aquela realidade. Dr. Rômulo, essa história do cinema em Itabaiana está mal contada, precisa que de um bom historiador.

Antônio Samarone.

sexta-feira, 22 de março de 2019

De erroribus medicorum...


“De erroribus medicorum” (por Antônio Samarone)

Hoje os exames de imagens (fundo da caverna de Platão), hegemonizaram a semiologia médica. Cada época com as suas preferências. O objeto da medicina é o doente, o homem e o seu sofrimento. Abandonou-se o doente, e objeto virou a doença. Das doenças avançou-se para as representações visuais (imagens) das doenças. Por fim, a imagem ganhou autonomia e tornou-se o objeto da medicina.

Quem não entendeu direito a referência a “alegoria da caverna”, tá lá, na República de Platão. Mais simples, vai no Youtube ou no Google.

Na Idade Média era a uroscopia, ou exame da urina, o grande recurso da medicina. O exame de urina foi o primeiro exame laboratorial, usado pela medicina. Observações básicas como cor, turbidez, odor, volume, viscosidade, e até mesmo doçura eram decisivos para o diagnóstico.

Hipócrates escreveu um livro sobre "uroscopia”. Na Idade Média, uma tabela de cores foi desenvolvida, que descrevia o significado de 20 cores diferentes de urina. A semiologia médica era reduzida ao exame de urina (e ao exame do pulso). Um bom diagnóstico prescindia da presença do doente, bastava um recipiente com a urina.

Dirão os crédulos: as imagens mostram mais do que a urina... A imagem fala por si, é objetiva, afasta-se da subjetividade e das queixas dos doentes... Será?

Antônio Samarone.

segunda-feira, 18 de março de 2019

SOCIEDADE DO CANSAÇO



Sociedade do Cansaço... (por Antônio Samarone)

Rosa Emília nunca descansou. Nunca tirou férias. Médica, está completando 30 anos de formada, e nunca faltou a um plantão. Vive para o trabalho. Solteira, teve dois filhos de experiencias fortuitas. Rosa Emília nunca amou nem odiou ninguém. Os filhos cresceram e foram embora, moram lá para São Paulo.

Rosa Emília foi órfã logo cedo. Viveu parte da infância num orfanato, que ela não gosta nem de lembrar. Passou no vestibular de medicina de primeira, sem cota, só no esforço pessoal. Perdeu (ou ganhou) a juventude estudando. Depois, na faculdade, foi morar com uma tia, no Santos Dumont. Essa tia já morreu.

Rosa Emília nunca questionou muito, viciou em antidepressivos, e ia resolvendo o tédio com as drogas da psiquiatria. Nunca comentou nem com os filhos, que tomava tarja preta. Engordou, aumentou a glicemia, e passou a usar regularmente remédios para diabetes e pressão. Tinha crises de enxaquecas frequentes, e dores lombares. Para cada queixa um medicamento.

Como tudo tem o seu dia, o mês passado encontrei Rosa Emília numa agência de turismo. Depois dos salamaleques de praxe, perguntei: E aí, doutora, tá perdida? Ela riu. Que nada, fechei um pacote de viagem, vou passar 30 dias no Velho Mundo.

Cansei, disse ela, quero viver, tá na hora... Fiquei satisfeito. E mais, vou e volto de primeira classe. Vai só? Ela disse que nada, arrumei um namorado, Pastor, aposentado da Petrobras, um velho em boas condições de uso. E deu uma gargalhada.

Ontem encontrei com Rosa Emília no Parque da Sementeira. Fui logo ao assunto principal, e a viagem, vai quando? “Ela mudou o semblante, você não soube?” Não! “Fui fazer um Check Up de rotina, e os exames apontaram sombras no pulmão. Fiz a biópsia e, imagine, câncer. Estou indo amanhã me tratar em Porto Alegre. Já devolvi o pacote de viagem. Ainda bem que eles aceitaram.”

“Graças a Deus que tenho o Bradesco Plus, um plano de saúde que cobre tudo. Apartamento, médico, acompanhante, todos os exames, e se precisar da UTI, não terei dificuldade, sem limites. Eu passei a vida trabalhando no SUS e sei o que é. O meu plano ainda cobre todas as despesas com o funeral. Uma maravilha! Não quero é dar trabalho aos filhos...”

Estou até agora matutando.

Antônio Samarone.

domingo, 17 de março de 2019

AS CARRETAS DAS SOMBRAS.




As carretas das sombras. (por Antônio Samarone)

Tive uma longa conversa com o Dr. Carlos Salustiano, o Dr. Salu, oncologista de bata longa, um estudioso da medicina. O Dr. Salu está inconformado com essa enxurrada de mamografias a que estão submetendo as mulheres sergipanas, com o discurso de se fazer um rastreamento em massas, para identificação precoce do câncer de mama. “É mentira!” Afirmou com convicção o Dr. Salu.

Continuei a conversa com o Dr. Salu: “essa carreta de Barretos, desde que chegou a Lagarto fez 11 mil exames e identificou apenas 38 casos de câncer, dos 470 previstos para Sergipe esse ano.” Eu retruquei, e não foi bom? “Bom nada! Esses 38 casos se forem de tumores avançados, enraizados, nada muda nem no prognóstico nem na sobre vida; se forem tumores iniciais, trinta por cento podem ser indolentes, que não iriam evoluir. Ou seja, vai se iniciar um tratamento cruento de um tumor, sem necessidade. Resumindo, essa farra das carretas não é um programa de saúde pública.’

Você está me dizendo que essas carretas são semelhantes ao programa de prevenção de câncer de colo de útero que a Senadora Maria do Carmo fazia? “Não, muito pior. O rastreamento de câncer de colo, fazia sentido, pois 95% dos canceres de colo são causados pelo papiloma vírus, o HPV, e se as lesões forem identificadas precocemente podem ser retiradas, evitando o câncer. Houve recentemente uma campanha de vacinação do HPV, para prevenir o câncer de colo de útero.”

“O que Sergipe está precisando são de Unidades de Tratamento. Isso sim, se encontra profundamente defasado, enfatizou o Dr. Salu. A redução da mortalidade por câncer de mama está mais relacionada com os avanços no tratamento. Esse rastreamento indiscriminado, em massas, no caso do câncer de mama, obedece mais a interesses políticos e econômicos do que aos da Saúde Pública.” Eu senti que Dr. Salu sabia do que estava falando!

“Se Henrique Prata quiser ajudar, venha ajudar no funcionamento dos hospitais, enfatizou o Dr. Salu. Eu soube que ele vendeu duas carretas ao estado. Além daquela carreta da confusão, que ninguém sabe quem comprou, nem quanto custou; além da carreta dos homens; teremos mais duas. O serviço de saúde em Sergipe passará a ser móvel.” O Dr. Salu foi duro: “isso são carretas de ilusões, carretas de fumaça, para embaçar as vistas do povo.”

E concluiu o colega oncologista: “o rastreamento em massa de câncer de mama não reduz a taxa de mortalidade; não limita o aparecimento e nem aumenta a sobrevida dos casos graves; sem falar, que 15% dos tumores de mama graves aparecem nos intervalos das mamografias.”

Pelo jeito as mamografias são inúteis, perguntei ao Dr. Salu. “Não, eu não disse isso. As mamografias podem ajudar no diagnóstico sob indicação médica; e serem usadas em rastreamentos específicos, localizados, em mulheres entre 50 e 69 anos, em especial quando existem casos de câncer de mama na família. O que reafirmo é que, como rastreamento de massas, feitos a torto e a direito, de esquina em esquina, sem critérios, traz mais malefícios que benefícios para as mulheres.” Assim falou o Dr. Salu!

Antônio Samarone.

quarta-feira, 13 de março de 2019

SANTO, PAPA E MÉDICOS.


Santo, Papa e Médicos. (por Antônio Samarone).

A medicina no Brasil colônia é uma continuidade da medicina portuguesa.

A faculdade de medicina nasceu em Portugal no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra. A maioria dos professores eram eclesiásticos, médicos de batina. Os dois professores mais famosos foram o Frei Gil de Santarém e Pedro Julião. Um foi canonizado e virou Santo e o outro tornou-se Papa. Isso mesmo, um Papa médico.

O Frei Gil faleceu em 14 de maio de 1265, em Santarém, e chamava-se Gil Rodrigues de Valadares. É conhecido como o “Fausto” português, por ter feito um pacto com o Diabo. Entregou-se as ciências ocultas (magia), ficou famoso como médico, com as virtudes de um taumaturgo. Conta-se que ele realizou curas milagrosas. Tornou-se “Santo”, primeiro pela “voz do povo” e depois pela Igreja (foi canonizado em 1749).

Pedro Julião (Petrus Lusitanus ou Petrus Hispanos), nasceu em Lisboa em 1216, estudou em Paris. Além de médico, era filosofo, filólogo e teólogo. Um grande erudito. Tornou-se o Papa Joao XXI. A obra médica do Papa intitula-se “Thesaurus pauperum” – um formulário terapêutico com conselhos de higiene, adotada por séculos na faculdade de medicina de Coimbra. Foi o fundador da cadeira de obstetrícia na faculdade de Montpellier. A importância de Pedro Julião pode ser medida por ter sido citado na Divina Comédia de Dante, e ter sido encontrado no Paraíso.

Com o surgimento das Universidades, a Igreja passou a proibir que os padres exercessem a medicina. O Concílio de Tour (1163), já havia proibido o exercício da cirurgia. “Ecclesia abhorret a sanguine”. A proibição era extensiva a prática da anatomia em cadáveres humanos. Em 1290, quando Dom Dinis, criou a Universidade Portuguesa, o clero já estava afastado do exercício da medicina.

Somente no final do século XV, o Papa Sixto IV, através de uma bula, autorizou o estudo de anatomia sobre o cadáver. Mesmo assim, é exagero afirmar que a igreja dificultou a anatomia, pois essa proibição não era obedecida, em muitas faculdades de medicina.

No final do século XV, nasceu em Portugal outro destaque da medicina, Garcia da Orta. Em 1534 ele embarcou para Índia. Em 1563, Garcia da Orta publicou uma das obras mais importantes da medicina e da botânica, do século XVI: “Colloquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia”, prefaciado por Camões. A obra polemiza com a tradição hipocrática. Uma leitura esclarecedora.

Finalmente, em 1511, nasceu em Portugal, João Rodrigues de Castelo Branco (Amato Lusitano), um dos mais destacados médicos da história de Portugal. Formou-se em Salamanca. Judeu, amigo de Erasmo de Roterdã, rodou o mundo. Foi o primeiro a divulgar a ação terapêutica de muitos vegetais nativos do Brasil. Várias obras publicadas.

Em 1549, com Tomé de Souza, chegou oficialmente ao Brasil o seu primeiro médico, Jorge Valadares. Claro, na esquadra de Cabral estava o Mestre João, que além de cosmógrafo, era físico e cirurgião. Caminha em sua carta, relatou a higidez dos tupiniquins, todos rijos e nédios; e Américo Vespúcio aprofundou: “Pelo que pude deduzir de suas narrações, não há pestes nem doenças provenientes da corrupção do ar e se não morrem de morte violenta, vivem larga vida...”

Antônio Samarone.

SÓ OS MACHOS CANTAM...



Só os machos cantam... (por Antonio Samarone)
O canto das cigarras era o fundo musical da quaresma. Por onde andam as cigarras? Nunca mais... Ontem eu recebi de uma amiga, fotos de uma cigarra papocando pelas costas, e emergindo como uma cigarra nova. Elas não morrem de tanto cantar, como se dizia, elas renascem.
As cigarras voltaram, reapareceram aqui em Aracaju.
Nunca entendi de onde elas vinham, apareciam de repente, e danavam-se a cantar a quaresma inteira. Consultei uma bióloga, e recebi uma síntese:
“As cigarras têm ciclo de vida hemimetábolos (ovo, ninfa e depois adulto). Ela pode chegar a ficar até 17 anos na forma de ninfa no subsolo se alimentando de nutrientes presentes das raízes das plantas. Quando ganha o exoesqueleto ela sai do subsolo e se fixa numa árvore. Perde o exoesqueleto antigo (exúvia), e emerge adulta, já pronta pra se reproduzir. Depois que põe o ovo a fêmea morre.”
Nunca que eu soubesse...
Fui alfabetizado pela “Cartilha do Povo”. E uma das poucas histórias que eu guardei foi a disputa entre a cigarra e a formiga. A moral da história era favorável a formiga, que optava pelo trabalho. A cartilha emulava o trabalho. Depois Raul Seixas inverteu, numa canção belíssima: “a formiga só trabalha porque não sabe cantar”. Acho que faz mais sentido.
Entre as cigarras só os machos cantam. Não me perguntem porquê...
O canto das cigarras provoca sono. O canto que Anacreonte achava melodioso, e Homero comparou a doçura dos lírios era o da cigarra. Acho que Homero exagerou. Ou as cigarras gregas são mais afinadas.
Na quaresma, as cigarras eram um divertimento da molecada perversa. Trepávamos em árvores para a captura, apertávamos nos lados, embaixo das asas, para que eles não parassem de cantar. O abestalhado que mantivesse a cigarra cantando por mais tempo era o vencedor. Talvez por isso que elas desapareceram.
Antonio Samarone.

segunda-feira, 11 de março de 2019

O SONHO DE AUGUSTO LEITE PODE RENASCER.


O sonho de Augusto Leite pode renascer... (por Antônio Samarone).

A medicina moderna em Sergipe nasceu com o Hospital de Cirurgia. A chamada medicina científica, filha de Andreas Vesalius, Marie François Xavier Bichat, Rudolf Virchow, Joseph Lister, Robert Koch, Louis Pasteur e Paul Ehrlich chegou à Sergipe pelas mãos de Augusto Leite. O Hospital de Cirurgia foi o seu Templo.

Aí nasceu a Faculdade de Medicina.

O povo pobre de Sergipe teve uma boa assistência hospitalar por mais de cinquenta anos. Depois o Hospital de Cirurgia desandou. O Hospital de Cirurgia caiu em mãos ambiciosas, de politiqueiros, mercadores, negociantes da medicina. O hospital foi saqueado, quase acaba!

Por último, a justiça resolveu intervir, creio que parou a sangria... Mas o mal estava feito. O hospital é um mercado persa, uma federação de empresas. A filantropia e a velha misericórdia jazem há tempos. A boa medicina, centrada no humanismo, respira com dificuldade.

Quando tudo parecia sem jeito, sem alternativas. A providência acendeu uma luz: fui informado, por fonte segura, que Henrique Prata, organizador do Hospital do Câncer de Barretos, pode assumir o Hospital de Cirurgia.

Henrique Prata, tem sangue sergipano, e não precisa demonstrar a sua competência. O Hospital do Câncer de Barretos é o melhor Brasil, e só atende SUS. Podemos resolver o mais grave problema da assistência médica em Sergipe: a forma desumana como os pacientes com câncer é tratada.

Espero que não botem dificuldades. O Cirurgia não se resolve com reformas. O câncer lá é avançado. As metástases estão generalizadas. O Cirurgia é um paciente respirando por aparelhos. Jeitinho não resolve! O Hospital de Cirurgia necessita de uma faxina completa, um banho de sal grosso. Recomeçar tudo de novo! Expulsar os vendilhões do Templo!

Que renasçam os espíritos de Augusto Leite, João Garcez, Benjamim Carvalho, Nestor Piva, Juliano Simões, Carlos Melo, Lauro Porto, que voltem as Irmãs de Misericórdia, que o Hospital de Cirurgia volte a atender o povo.

O Hospital de Cirurgia pode ressuscitar.

Antônio Samarone. 

domingo, 10 de março de 2019

MANÉ BARRACA



Mané Barraca... (por Antônio Samarone)

A consciência civilizada tenta afastar-se dos instintos básicos, mas nem por isso eles desaparecem. Seu Manoel Barraca conhecia a alma humana, conhecia as suas fragilidades. Não era um conhecimento filosófico, nem teológico, nem profético. Era um conhecimento atávico, ancestral. A alma de seu Manoel percorreu continentes, atravessou os mares em navios negreiros, sofreu sob a chibata do senhor de engenho. Uma alma de mil anos.

Manuel Fiel Santos, Mané Barraca, era um rezador afamado, respeitado, e com grande clientela em Itabaiana. Nunca viveu de rezas. No cotidiano, batia barro para fazer panelas. Literalmente, vivia de vender artefatos de barro nas feiras, produzidos artesanalmente. Sua residência, no Cruzeiro, era cercada de mistério.  

Seu Manoel Barraca era de família enraizada na cidade, irmão de Euclides Barraca e João Barraca. Euclides era guarda-noturno e zelador do cinema de Zeca Mesquita, pai de Val, Regis e Aroaldo, e de um monte de moças bonitas (Maizé, Maié e Ná) que enfeitavam o Beco Novo. João Barraca, sapateiro, comunista, pai dos craques do Itabaiana, Cosme e Damião. Por onde anda essa gente?

O Cruzeiro ou Avenida ou Bairro São Cristóvão, era uma comunidade de paneleiros, uns poucos sapateiros, quase todos negros. No fundo das casas tinhas pequenos fornos de queimar panelas. Também era o celeiro de jogadores de futebol. Lá ficavam os campos do Itabaiana, do Cantagalo e o de Seu Mané Barraca.

Seu Manuel Barraca era dono de um time de futebol juvenil e, aos domingos pela manhã, à frente de sua casa ficava lotada de meninos pobres, que sonhavam em ser jogador de futebol. No campinho, que levava o seu nome, disputávamos verdadeiros clássicos, dignos de uma final de Copa do Mundo. Eu participei desse sonho.

Seu Manuel era herdeiro da arte dos pajés. Rezava para íngua, rendidura, malina, engasgamento por espinha de peixe, unheiro, cobreiro, azia, erisipela, ataque de bichas, carne quebrada, nervo torto, verruga, fogo selvagem, olhado, quebranto, espinhela caída, impinge, sapinho, calor de figo, mal de sete dias, espinho e mordedura de cobra e cama de sapo.

Para curar azia, repetia três vezes: “Santa Sofia tinha três fia/uma cosia, outra bordava/e a outra curava o mal da azia.” Seu Manuel era especialista em rezar para bicheira de animal. Se dizia que Seu Manuel possuía o livro de São Cipriano, coisa que eu nunca vi.

Todo dia treze de dezembro, Seu Manuel descia a Rua do Beco Novo, com uma imagem de Santa Luzia num quadro, coberta de fitas, de porta em porta, pedindo uma esmola para a Santa. Muito ou pouco, ninguém deixava de contribuir. Todos queriam a proteção da Santa Luzia para as suas vistas. Com os olhos não se brinca. Fui a uma procissão de Santa Luzia, na Barra dos Coqueiros, lá encontrei um sobrinho de Seu Manuel, que saiu de Itabaiana só para acompanhar a procissão. Continua devoto!

Seu Manuel sabia que a vida era uma batalha entre o nascimento e a morte, o bem e o mal, a alegria e o sofrimento. Ele conhecia a sombra da alma humana, a franja possuída pelo demônio. Ouvi pela primeira vez da sua boca, os versos mais bonitos da MPB: “O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente... É o Juízo Final/A história do Bem e do Mal/Quero ter olhos pra ver/A maldade desaparecer.”

Antônio Samarone.

sexta-feira, 8 de março de 2019

O CIRCO DE ZÉ BEZERRA.



O Talento de Zé Bezerra (foto). (por Antônio Samarone).

Hoje tem espetáculo, perguntava o palhaço... Tem sim senhor, respondia a molecada que ia atrás, no meio da rua... Cansei de correr atrás do palhaço, para ser marcado com uma tinta, e poder entrar de graça no grande circo. Era o Circo de Zé Bezerra.

Após o terceiro sinal, entrava uma voz grave: o Circo e Teatro José Bezerra, o palácio de lona verde, anuncia e apresenta... (e entreva um fundo musical). Esse era um sonho para a minha geração. O único espetáculo que conhecíamos era o circo. E o Circo de Zé Bezerra era espacial.

Zé Bezerra, filho de Tibério Bezerra e Antonieta Bezerra (Antonieta da Pensão), casado com Dona Lourdes, filha de João Giba. Gente de Itabaiana. Não tenho como provar, mas se sabe que Zé Bezerra foi aluno de Procópio Ferreira. Zé Bezerra era um grande artista: ator, cantor, mágico e palhaço (Biriba). Como palhaço, ele contracenava com Brocoió e Tita.

O dia de maior suspense, a cidade parava, o circo revestia-se de negro, era quando o mágico José Bezerra colocava a sua mulher no espaço. Isso mesmo, solta, podia-as passar um aro em torno da mulher, como prova que não existia nenhum fio invisível. Se dizia que Zé Bezerra hipnotizava a plateia. Eu cheguei a ir com o bolso cheio de limão, pois acreditava que chupando limão quebrava o encanto, e só assim eu poderia saber a artimanha do artista. Por causa do risco, a mulher que ele colocava no espaço era Dona Lourdes, a própria esposa.

Além de circo, com palco e picadeiro, era também teatro. Cada dia com uma peça diferente. A louca do Jardim era casa cheia. A peça era uma adaptação para o teatro de um cordel, que começava em versos: “vinde musa mensageira, do reino de Eloim/Traz a pena de Apolo e escreva aqui por mim/o assassino da honra ou a louca do jardim.”

Instalado num alçapão no centro do palco do circo ficava o “Ponto”, profissional do teatro responsável por “assoprar”, em voz baixa, as falas que deviam ser repetidas, em voz alta, pelos atores. Eu conheci o teatro no Circo de Zé Bezerra, e fiquei com boa impressão.

A grandeza do Circo era Zé Bezerra e a família. A morena Iracema (filha), melhor rumbeira do Brasil. Era o segundo ato do espetáculo. Iracema com um pequeno saiote, rebolando as cadeiras, quando levantava um babado e podia-se ver a caçoula da dançarina, quase um short para os padrões de hoje, aquilo levava a patuleia ao delírio. Tudo beirava a inocência, comparando-se com as atuais dança da Rede Globo.

Iracema era casada com Vivaldo, músico do circo. Em Itabaiana, todos desconfiavam de Vivaldo. Só podia... Eita tempos atrasados. Circulando o poleiro do circo, passava um menino vendendo um “binoculo de foto”, gritando: o retrato de mãe, o retrato de mãe; era o retrato de Iracema, e não dava para quem queria.

O outro filho de Zé Bezerra, Iranildo, era o malabarista. Lourdes, a esposa, atriz nas peças encenadas. Tinha mais um filho, o mais novo, que eu não lembro o nome. O Circo de Zé Bezerra quando chegava numa cidade, pelo povo, não sairia mais. Não esqueci de Antonieta, uma portuguesa que cantava com sotaque lusitano. Uma velhinha saliente. Sempre a casa cheia. Em Aracaju, o Circo de Zé Bezerra armava perto da Rodoviária Velha, e a temporada durava mais de três meses.  

Dona Breguedela, dona do rendez-vous de Itabaiana, deixava o espetáculo começar, apagarem-se as luzes, para ela entrar com as suas meninas. Só iam para as cadeiras. A discrição de Dona Breguedela no circo chamava a atenção. Pois, até mulher-dama se dava ao respeito. Elas também acompanhavam a procissão de Santo Antônio. Era tradição.

O circo acabou, faz tempo. Zé Bezerra foi assassinado em Queimadas, na Bahia. O seu corpo foi sepultado numa cova rasa. Sergipe, e Itabaiana em especial, não pode apagar da memória histórica esse grande artista. Tá na hora das autoridades procurarem a família, para transladar o corpo de Zé Bezerra para um cemitério em Itabaiana, e no local, erigir um monumento em sua homenagem. Enquanto ele não caia no completo esquecimento.

Antônio Samarone.


quarta-feira, 6 de março de 2019

CINZA, ÁGUA E FRATERNIDADE.


Cinza, Água e Fraternidade (por Antônio Samarone)

Como havia prometido ao Seu Celestino, fui à missa na Catedral Metropolitana de Aracaju, para a imposição das cinza (Tu és pó, e ao pó retornarás).

Duas boas surpresas: o Sermão do padre Peixoto e o tema da Campanha da Fraternidade.

O padre Peixoto, num sermão leve e erudito, desmontou a teologia do sofrimento. Somos tridentinos (Eu e Celestino), e o padre Peixoto segue a orientação do Concilio Vaticano II.

Me senti na Misericórdia da Bahia, no ano de 1638, ouvindo o Padre Antônio Vieira, pregando o Sermão da segunda quarta-feira da Quaresma. Ninguém precisa se sebastianista para admirar o Sermão do Padre Vieira. O padre Peixoto foi profundo, sem ser professoral. Com uma sábia humildade, chamou a atenção para que a simbologia das cinzas, se completa com a simbologia das águas, da quinta-feira santa.

Nunca tinha enxergado isso. Não basta o reconhecimento de que somos pó, é preciso a conversão, é preciso amar o outro (a parte mais difícil), e lembrou a profundidade da simbologia da água. Ele referiu-se ao lava pé da quinta-feira santa. Uma pessoa ajoelha-se, e lava os pés de doze outras, que simbolicamente representam a comunidade. Não basta sentir-se um nada (cinzas); é preciso servir o próximo. A ideia central é que a quaresma não é um período de sofrimentos e penitências, mas uma alegre caminhada para a Pascoa. Nesse ponto, eu fico com Trento.

A segunda boa surpresa, foi o tema da Campanha da Fraternidade: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” – Fraternidade e Políticas Pública. Nada mais oportuno e urgente. Passamos por um ataque frontal do neoliberalismo. A obsessão do estado mínimo. A redução dos direitos sociais é a prioridade desse Governo. Cortes e mais cortes, enxugamentos e restrições. A narrativa é que o mercado resolve as desigualdades sociais. O capital financeiro está com as garras afiadas. Deus nos proteja!

Esse caminho aprofundará as desigualdades, com as suas consequências. Parabéns a igreja católica, num gesto de profundo conhecimento da realidade brasileira, aponta para o seu ponto nevrálgico: não a perda de direitos sociais, não ao aprofundamento das desigualdades.  

“Serás libertado pelo direito e pela justiça”.

Antônio Samarone.

SEU CELESTINO


Seu Celestino...(por Antonio Samarone)

Quarta-Feira de Cinzas inspira sentimentos contraditórios. O fim do carnaval, festa pagã; e o começo da quaresma, tempo de reflexão para os católicos. Para muitos, a preocupação é o que vai dizer em casa, quando chegar quarta-feira de cinzas, como dizia um velho frevo. 

Mas não acordei com vontade de falar de carnaval. Quero falar de um assunto fora de moda, a quaresma. Talvez alguns leitores parem por aqui.

A cinza extrai o seu simbolismo por ser aquilo que resta após o fogo. O cadáver é o resíduo do corpo depois que se extingue o fogo da vida. Em Itabaiana, Seu Celestino da Sambaíba, rezador de Via Sacra, cobria-se com cinzas por toda a quaresma, como sinal de renúncia de toda vaidade terrena. A cinza era o símbolo da humildade, do arrependimento e da penitência.

Celestino era um pregador, quase um santo. Na quaresma, imitava o profeta Jonas, cobria-se de cinzas. Ouvi da boca dele: “Pulvis es et in pulverem reverteris é a única verdade bíblica incontestável, e talvez a mais profunda.” Pensava eu, ele tá certo, até os agnósticos acreditam. Essa assertiva saiu antes da boca de Abrahão: Eu me atrevo a falar ao meu Senhor, eu que sou poeira e cinza. (Gênesis, 18:27). O próprio Deus tinha dito a Adão a mesma coisa (Gênesis 3:19). 

Como as coisas de Deus são misteriosas, ensinava Celestino, a cinza representa o fim e o começo, a morte e a vida, o eterno retorno. Lhe confesso que não entendia, mas ele só podia estar certo. Afinal, o pássaro Fênix nasceu das cinzas.

O catolicismo popular, quando existia, era sincrético, mistura tudo. Seu Celestino acreditava que as cinzas anulavam as “coisas feitas”. Enterrar nas cinzas muambas, despachos, feitiços, ebó reverteria os efeitos para quem preparou. 

A quaresma, segundo Celestino, é o período de 40 dias entre a aparição de Jesus ressuscitado e a sua ascensão ao céu. Quarenta é um número cabalístico para os judeus! Celestino lembrava que Saul, Davi e Salomão reinaram por 40 anos; o dilúvio durou 40 dias, Moisés é chamado por Deus aos 40 anos, e passou 40 dias no Monte Sinai; Jesus pregou por 40 meses, e foi atentado por 40 dias pelo Satanás. Buda e Maomé começaram as suas pregações aos 40 anos.

Esclarecia Celestino, a quaresma não dura quarenta dias atoa. Eu fiquei pensando, nem a quarentena foi inventada pelos médicos. Antigamente o resguardo das mulheres paridas durava 40 dias, e o luto fechado também. 
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Amanhã, em homenagem ao Seu Celestino, vou procurar uma igreja para fazer a “imposição das cinzas”, esperando que o padre tenha guardado as palmas usadas no Domingo de Ramos, tocado fogo, e com as cinzas, faça o sinal da cruz em minha testa, com a tradicional admoestação: “Lembra-te de que és pó, e ao pó retornarás.”

Antonio Samarone.

VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA EM SERGIPE



Voluntários da Pátria em Sergipe. (por Antonio Samarone) 

A Guerra do Paraguai foi o maior conflito da América do Sul, travado entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, composta pelo Brasil, Argentina e Uruguai. A guerra estendeu-se de dezembro de 1864 a março de 1870. 

Quantos sergipanos foram combater Solano Lopez? Segundo Epifânio Dória, 2.762 sergipanos participaram da Guerra do Paraguai. Muita gente! Quantos retornaram? Ainda não encontrei essa informação. Quem eram esses sergipanos? Por que essa explosão de patriotismo em Sergipe? Na verdade, a participação sergipana na guerra do Paraguai é um episódio histórico à espera de um bom pesquisador. Sei que vários médicos sergipanos se engajaram nessa luta.

Uma pequena parte desses 2.762 sergipanos, eram soldados da polícia militar, que enviou um batalhão; sob o comando do Major Gonçalo Pais de Azevedo e Almeida; e de sergipanos do Corpo do Exercito e da Marinha, com destaque para o Coronel Oliveira Valadão, Marechal Rufino Enéas Gustavo Galvão (Visconde de Maracaju) e o Capitão da Marinha Aurélio Garcindo Fernandes de Sá.

Contudo, o maior contingente de sergipanos foi recrutado como Voluntários da Pátria. Escravos, ex escravos, criminosos, prisioneiros, gente pobre, muitos forçados a assumir o voluntariado. Parte desses “voluntários” partiram de Sergipe acorrentados. Entre os voluntários, está o grande herói paisano de Sergipe, nessa guerra: Francisco Camerino, poeta e guerreiro, natural do Arauá, à época município da Estância, recrutado aos 16 anos. Faleceu lutando com bravura.

A Guarda Nacional, composta de graúdos, latifundiários, senhores de baraço e cutelo, agraciados com patentes de coronéis, lavou as mãos. Essa gente mandou os seus escravos.

Talvez por ser os “voluntários” gente anônima, não se saiba quantos retornaram. Entre os cem mil brasileiros mortos na Guerra do Paraguai, quantos eram sergipanos? Procurei saber com os historiadores de Itabaiana, quantos de lá morreram nessa guerra. O Dr. Vladimir Carvalho me informou ter ciência da morte de um filho do Cônego Domingos de Melo Resende, e mais ninguém.

Acho que esses sergipanos Voluntários da Pátria (e foram muitos), mereciam nomear algum logradouro público, como homenagem. O esquecimento é uma afronta! No Rio de Janeiro, a Voluntários da Pátria é uma rua importante em Botafogo. Ressalve-se que Aracaju prestou justa homenagem a Camerino, nomeando uma das suas mais importantes praças, com busto (foto) e tudo.

Antonio Samarone.

O JENIPAPEIRO DE DONA SINHÁ


O Jenipapeiro de Dona Sinhá (por Antonio Samarone).

Criei-me protegido pelas sombras do jenipapeiro de Sinhá Fonfom, minha vizinha no Beco Novo. Já comi jenipapo de tudo que é forma e jeito. Mesmo assim, o suco de jenipapo não falta lá em casa. 

Com a idade, passei a acreditar em quase tudo. O agrônomo Lima, um vocacionado por utopias, me levou no Arauá para mostrar-me a única plantação de jenipapeiros das Américas. Claro, como negócio, não deu certo.

O agrônomo Lima ainda não abriu mão dos jenipapeiros. Ele fez uma pesquisa provando que o jenipapo é a única fruta no mundo que não apodrece. Isso mesmo! Ele me lançou um desafio: você já viu um jenipapo podre? Eu não! Então... A partir dessa convicção apressada do doutor Lima, onde eu chego, reproduzo essa verdade: o jenipapo não apodrece! Pode até mineralizar, me confirmou o agrónomo Lima, mas não apodrece.

O Genipa brasiliensis (mudaram para Genipa americana?), a nhandipab, fruta-de-esfregar, era o grande recurso dos Tupinambás para a ornamentação individual, tribal e religiosa. Com o seu belo azul escuro, o jenipapo, ao lado do urucum, era usado por todos os índios. Homens, mulheres e crianças.

Nos conta Gabriel Soares de Souza: “quando se põe essa tinta é branca como água, e quando se enxuga é preta como azeviche; e quanto mais a lavam, mais preta se faz; e dura nove dias; no cabo dos quais se vai tirando. Tem virtude dessa tinta fazer secar as pústulas das boubas dos índios, e a quem se cura com ela. ”A tinta do jenipapo, a genipina, afasta os insetos, protege e refresca a pele.

O povo não seguiu os índios na pintura, mas aprecia o jenipapo com a degustação e produção de jenipapadas, sucos, refrescos, vinho e licor. Alcancei o vinho de jenipapo produzido artesanalmente em Itabaiana. Não sei dizer se ainda existe... Será se na Lá Távola, do meu amigo Haroldo, vende vinho de jenipapo?

Continua Souza: “a madeira do jenipapeiro é branca como buxo, de que se fazem muitos e bons remos. Enquanto verdes são pesados, mas depois de secos são muitos leves. A madeira não fende nem estala, do que se faz toda a sorte de poleame, por ser doce de lavrar; e os cabos e cepos para todas as ferramentas.”

Pelo seu valor nutritivo, alta concentração de vitamina C, proteínas, cálcio, fosforo, tanino, pectina e ferro. Existe uma crença popular ser o jenipapo bom para anemia, pela presença do ferro (o povo tá certo). 

O jenipapo pode ser consumido como doce em compotas (calda e creme), balas e doce cristalizado. Deixa-se o jenipapo, aberto em fatias, secando ao sol até desidratar. Envolve-se com um pouco de açúcar e canela, ficando uma palma em forma de mãozinha. As doceiras de São Cristóvão mantem essa tradição. A bala de jenipapo é uma delícia, além de ser diet. 

O preconceito racista apontava a mancha escura nas costas dos recém-nascidos, chamada de jenipapo, como prova da mestiçagem. Tá vendo, dizia as fofoqueiras, bonitinho, cabelo bom, olhos claros, mas tem o jenipapo nas costas. Ainda bem que isso acabou.

Câmara Cascudo garante que o jenipapeiro cura moléstia do baço. “Remédio de botica não serve para o baço: É só botar o pé no tronco do jenipapeiro, na altura que puder. Corte a casca na medida do seu pé. Pendure no fumeiro da cozinha. A casca vai engelhando e o baço também.” Esta simpatia é muito popular no Norte do Brasil.

Antonio Samarone.

sexta-feira, 1 de março de 2019

O CU DE SIDCLAY



O Cu de Sidclay... (por Antônio Samarone)

O velho Chico Buarque no diz numa canção esquecida: “Procurando bem/Todo mundo tem pereba/Marca de bexiga ou vacina/E tem caganeira, tem lombriga, tem ameba... Futucando bem/Todo mundo tem piolho/Não livra ninguém/Todo mundo tem remela...” Lembrei-me dessa canção, ouvindo Dona Zefinha no rádio, reclamando dos médicos do SUS.
   
“Levei Sidcley, o meu filho mais novo, para fazer um exame de fezes no Postinho da Prefeitura, e o médico me disse que não existia mais esse exame. Como assim, me danei... Não existe, ou o senhor não quer pedir? O meu filho tá comido de verme. Além da lombriga e o do amarelão, acho que ele pegou a caseira, aquela que ataca o olho do cu. O menino não para de coçar. Só saio daqui quando o senhor pedir o exame.”

Depois de muita insistência, ele terminou pedindo. Mas foi pior: quando recebi o resultado, não deu nada. Como, Sidcley não tem verme? E essa caseira é o que? O exame só pode tá errado. Fui conversar de novo com médico, desabafou Dona Zefinha.

Só que no rádio, Dona Zefinha não contou o final da história. Procurei saber a Unidade onde ela foi atendida, e liguei para o médico. Ele, pacientemente, me explicou. Samarone, as verminoses são raríssimas hoje em dia. Os meninos mudaram os hábitos de higiene (acho que foi a escola); andam calçados, bebem água limpa, não fazem mais coco em baixo das bananeiras, como em nosso tempo.

“Nunca mais consultei um menino com verminose, deixaram de ser um problema de Saúde Pública. Não se encontra mais ascaridíase (lombriga), ancilostomíase (amarelão), teníase nem se fala; de vez em quando encontro um ou outro menino reclamando de uma coceirinha no anus, examino, e tenho encontrado a oxiurose, isso mesmo, causado pelo oxiúros, o Enterobius vermicularis, um vermezinho de 2 mm. Pensei que o Sidcley tivesse o que o povo chama de caseira. Nada, nem isso. O exame deu negativo.”

E aí, meu amigo, se o Sidcley não está com a caseira, o que é esse formigamento no cu do menino? Formigamento não, é coceira das brabas. O anus de Sidclay está em carne viva! Para lhe falar a verdade, eu não sei do que se trata. Nem dar para pedir uma ressonância magnética, para ganhar tempo. Nem posso dizer que é uma virose. Tou no mato sem cachorro. Não sei nem para quem encaminhar.

Coceira no olho do cu é competência de que especialidade? Eu não sei. Nem eu!

Me lembrei da infância pobre do Beco Novo. Todo mundo tinha lombriga. A disputa era saber quem tinha mais. Depois de tomar o remédio de Dr. Pedro Garcia Moreno, médico do DNERU, tinha mãe que contava quantas lombrigas o buchudinho botava. Passava de cem. Peba de Seu Justino botou uma pelas ventas. E agora, fico sabendo que acabou. Virou raridade!

Encerei o telefonema alertando ao colega. Você trate de arrumar um remédio para Sidcley, senão Dona Zefinha lhe come vivo. E ainda vai ficar brotando no rádio o resto da semana, dizendo que o SUS virou uma esculhambação.

Antônio Samarone.