domingo, 30 de abril de 2017

COISAS DE ITABAIANA


COISAS DE ITABAIANA

Segundo a historiadora e conterrânea Thetis Nunes, a economia de Itabaiana deu um salto no início da década de 1950, com a chegada da BR – 235. A nova estrada fortaleceu o comércio e promoveu o surgimento dos caminhoneiros. Na política, décadas de conflitos terminaram de forma trágica. Em 1963, os líderes da UDN, Euclides e o filho são assassinados, e em 1967, o líder da oposição (PSD), Manoel Teles, teve o mesmo fim. A cidade entrou numa nebulosa apatia. Nada unia as pessoas, desunidas pela paixão política; nada as aproximava, faltava um cimento, uma liga, um motivo maior para reaproximar o rebanho Itabaianense. Quem cumpriria o papel de reunificar a comunidade: a cultura, a religião, outros políticos?

O meu amigo Baldochi foi o primeiro a enxergar essa resposta, foi o futebol. Em 1968, o Dr. Pedro Garcia Moreno, Zé Queiroz, Tonho de Doci, Zé Gentil, Morzat, entre outros abnegados, resolveram tomar conta do futebol de Itabaiana. Foram buscar jogadores na redondeza, Horácio em Carira; Onça Preta e Cardoso em Frei Paulo; Carlos, Edmilson, Belo e Tiquinho em Propriá; Marcelo no Alagadiço; Coisa Preta, Targino, Toninho Maré e Sinval eu não sei onde; juntaram-se com alguns nativos, Augusto, Elísio, Zé de Vitinha, Gustinho, Lelé de Rola, Pombo, Dedé, Tonho de Preta; botaram o experiente treinador, Edmur Cruz, e deu tudo certo.

A cidade inteira passou a só falar em futebol. Agora, com Dr. Pedro à frente a coisa anda, diziam os ceboleiros. Depois Zé Queiroz da Costa tomou conta, e o futebol cresceu. Tudo era novidade no começo. Botaram umas gambiaras no velho Etelvino Mendonça para os jogadores se exercitarem pela noite. Foi um alvoroço no Beco Novo. O Itabaiana passou a treinar fisicamente; arrumou-se uma sede, na antiga casa do padre, onde os de fora passaram a morar; contratou-se até um massagista, Geraldo de Avaci. E o Tanque da Serra, Horácio, virou o primeiro ídolo. A cidade adorava o seu artilheiro.


Em 1969 o Itabaiana ganhou o primeiro campeonato sergipano. Nascia o grande elo de ligação entre todos os ceboleiros: o futebol cumpriu esse papel. Quem não conhece a história não entende o significado do futebol em Itabaiana. A Associação Olímpica não é apenas uma agremiação privada, pertencentes aos seus sócios; o time é a comunidade de chuteira, uma tribo de gente bairrista, orgulhosa, sufocada de auto estima, onde o futebol é a sua principal identidade. Alberto de Carvalho, nosso maior intelectual, deixou claro na composição do hino: “somos Itabaiana, cidade celeiro, que vibra no esporte com o seu Tremendão”. Não é à toa que nos consideramos a capital sergipana do Futebol.  

sábado, 15 de abril de 2017

MINHA INFÂNCIA (4)



MINHA INFÂNCIA (4)

A fé entra pelo ouvido (fides ex auditu), escreveu São Paulo aos Romanos.... Não concordo, a fé entra mesmo é pelos rituais. Eu gostava do espetáculo das procissões, dos quatro tipos: das festivas ou jubilares, a mais importante era a de Santo Antônio; das rogativas, pedindo uma graça, geralmente chuva; das de desagravo, participei de uma, quando numa Santa Missão, ofereceram capim a um frade; e das gratulatórias ou de agradecimento. A Procissão era um momento especial para se fazer e se pagar promessas. Eu gostava dos cânticos antigos, sobretudo o “Queremos Deus” (Queremos Deus homens ingratos/ Ao pai supremo, ao redentor/ Zombam da fé os insensatos/ Erguem-se em vão contra o senhor...).

Os fiéis se arrumavam em filas indianas, a cada lado rua, sem atropelamentos, todos obedeciam a uma ordem, quase natural. Na frente, puxando a procissão, iam as Irmandades e Congregações. Em Itabaiana quem puxava eram os Irmãos das Almas, liderados por Zé Bigodinho. Todos homens, com camisas verdes, carregando círios acesos. Eram seguidos pelas Filhas de Maria, todas de branco, carregando uma fita de cetim azul celeste sobre o peito. Depois vinhas as demais irmandades, todas com os seus estandartes e galhardetes. A Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, com as suas fitas vermelhas, sempre fazia bonito. Depois os fiéis e as beatas menos graduadas. Muita gente pagando promessa com os pés descalços, carregando pedra na cabeça; outros trajando luto fechado, cada um cumpria as obrigações assumidas. Promessa é dívida, pelo menos para os devotos.

No centro do cortejo o clero e os seus auxiliares. Padres, sacristão, coroinhas, devotos mais chegados, iam na frente do andor do Santo. Carregando o andor, homens de prestígio. Não me lembro de mulheres carregando o andor, parece que não era uma tarefa feminina. Atrás do andor a banda de música, os políticos, autoridades e os graúdos da cidade. Não era lugar para a arraia miúda, mesmo assim, sempre lotava com um magote de puxa-sacos. Os meninos brancos e ricos saiam fantasiados de anjos. Aqui tive a minha primeira decepção com a Igreja: mesmo sendo um devotinho assíduo, nunca me convidaram para ser anjo de procissão.


Nas ruas, por onde passava a procissão, o povo se arrumava, pendurava toalhas bordadas nas janelas e, quem tinha, botava um jarro de flor. Juntava-se os vizinhos e ficavam comentando as novidades. Fofocas e futricas. Vendo quem estava acompanhado de quem, as roupas e os cabelos de quem passasse. Quando se fazia um comentário inconveniente sobre alguém, sempre se precedia um “Deus me perdoe” ou “não é falando não” ou “eu não gosto de fofoca, mas”... E metia-se a bomba. 

sexta-feira, 14 de abril de 2017

MINHA INFÂNCIA (3)

Minha Infância (3)

O futebol entrou em minha vida como uma brincadeira. Nada de “escolinhas”, preparando um futuro profissional. O nosso desejo supremo era bater bola, brincar de bola, jogar pelada, e para isso qualquer lugar servia. A começar pelo leito da rua. Duas pedras como trave, três de cada lado e uma bola. Cada jogo era uma final de Copa do Mundo. No final, com vitória ou derrota, sobravam os dedos desmentidos, estropiados, os joelhos ralados, a constante peleja pelo gol e a vibração incontida.

A grande dificuldade da brincadeira era a bola. Ninguém que eu conhecia tinha uma bola. Nossas peladas eram de bola de meia. Explico: se pegava uma meia velha, enchia-se de pano, dava-se uma arredondada e a pelota estava pronta. Depois apareceu a bola de borracha, um inferno, pulava muito. Finalmente, veio a bola Pelé. Para nossa sorte, Rosa de Rosalvo do Cabo Quirino, criou coragem, foi no armazém e roubou uma bola Pelé. Até hoje não sei como ele saiu sem ser visto. Foi uma festa no Beco Novo, tínhamos uma bola. Muito tempo depois, Beijo de Seu Bebé ganhou do irmão que morava em São Paulo uma couraça número cinco, quase profissional. Foi a primeira e a única bola de couro de minha rua.

Tudo era difícil. A bola oficial daquele tempo era uma verdadeira bucha, de couro mal curtido (sola), costurada à mão pelo velho Mestre Dé, que se batesse de jeito, era nocaute inevitável. Chamava-se “bola de boca”. Comprava-se a câmara de ar, que possuía uma válvula comprida conhecida como pito. Ao se encher a bola precisava-se acomodar o pito para dentro, e só depois é que se fechava o último nó. Exatamente na “boca” da bola.

É claro que já existiam as bolas industrializadas, mais parecidas com as atuais, que eram conhecidas como bolas argentinas. Raras e de preço incompatível com o poder aquisitivo daquela época. Mas voltemos as “bolas de boca”. E quando chovia? Aí, meu amigo, o couro encharcava e a quase redondinha ficava oval e pesava mais de quilo. Era costume antes das partidas passar-se sebo nas bolas, para reduzir os inconvenientes do couro ressecado, e ajudar na conservação de tão raro objeto. Somente quem conheceu as antigas bolas de boca, as chuteiras de Joãozinho Baú e os antigos “gramados” - na verdade malicia, barro e piçarra - será capaz de entender o antigo ditado: “futebol é coisa prá homem”.

As primeiras incorporações tecnológicas do futebol itabaianense foram o suporte, a atadura e o linimento. O primeiro era uma proteção de borracha que se usava sob o calção, com o suposto objetivo de proteger as “partes fracas” do atleta; o segundo era utilizado para enfaixarem-se os pés dos atletas; e o terceiro era uma espécie de óleo canforado que aplicava nas pernas dos jogadores, de preferência durante um massageamento, que tornavam os membros inferiores brilhosos e escorregadios. Suponho que além de facilitar a massagem, permitia colocar em evidencia a musculatura dos atletas.

O atual Bairro São Cristóvão, denominado na época de “Cruzeiro”, “Avenida”, “Sete Casa”, era o grande celeiro do futebol itabaianense. Do time de Seu Mané Barraca saíram muitos craques. Seu Manuel, como gostava de ser chamado, era um velho rezador, doutor em mandingas, que quebrava pedras para sobreviver e gostava de futebol. Seu Manuel tinha um time de meninos. Em frente à sua casa existia um bom campo de pelada, que a molecada do Beco Novo usava com frequência. Era difícil derrotar o time de seu Manuel em seus domínios, principalmente com ele apitando. O clássico das manhãs de domingo, era a time de “Bem”, (onde eu jogava), versus o time de seu Manuel. Uma disputa à altura de um fla-flu, com Maracanã lotado.

Seu Manuel era de família tradicional em Itabaiana, “os Barracas”, seu Euclides, guarda-noturno e fiscal do cinema de Zeca Mesquita; seu João, sapateiro, simpatizante do comunismo, pai dos craques Cosme e Damião, que não foram mais longe no futebol porque eram muitos franzinos, os dois juntos não pesavam mais de 30 quilos. O Cosme, mais magrinho, era um virtuoso com a bola nos pés.  Gente respeitada.


Eu já nasci querendo ser um centro avante (center forward), e em parte conseguir. Fui titular do São Paulo de Roberto de Orece, do Bahia de Melcíades, do Santos de Avaci e do Cantagalo de Chico. Na década de 1960, o Dr. Pedro Garcia Moreno aceitou tomar conta do Itabaiana. Foi uma revolução, resolveu criar um juvenil, e entregou o comando a um disciplinador, Miguel de Rola. Com ele aprendi a chegar na hora nos compromissos. Os meninos foram chamados para fazer um teste, sábado pela tarde, no velho Etelvino Mendonça. Era a minha chance. Como já trabalhava fichado aos 14 anos, os treinos aos sábados seria um problema, mas dava-se um jeito. A primeira dificuldade foi escolher a chuteira. Dr. Pedro encomendou 30 pares a Joãozinho Baú, como éramos meninos, a maior era 42. Ninguém poderia adivinhar que aos 14 anos eu já calçasse 44. E agora, a minha primeira chuteira era bem menor que o meu pé.  Acostumado a jogar descalço, a chuteira fazendo calo, os pés queimando, e sem poder perder a chance. Minha carreira futebolística não poderia ter ido longe. 

quarta-feira, 5 de abril de 2017

MINHA INFÂNCIA (2)

Minha infância (2)

Me criei no Beco Novo, numa casa defronte a sapataria de Justino Mathias Sotero, o Seu Justino. Hábeis artesões do couro, produziam sapatos por encomenda. Os ricos e remediados iam botar o pé na forma, e os sapatos eram feitos para cada pé. Os pobres se viravam com os chinelos de solado de lona de pneu de caminhão. Os bons eram os produzidos por Mestre Dé ou Seu Bahia, costurados a mão, com uma sovela. Assim como se tirava a medida para roupas, os homens nos alfaiates e a mulheres nas modistas, se tirava a forma e tamanho do pé para o sapato. Depois virou manufatura, passaram a usar formas padronizadas, e Seu Justino levava nos caixões para vender nas feiras livres.

Seu Justino era bem de vida, morava em casa própria onde tinha até radiola. Um homem calado, de olhar grave, crente e músico da banda. Casado com Dona Maria da Conceição Mathias, a Dona Mãezinha, cabocla de têmpera especial, destemida, de língua afiada, que criou os filhos numa disciplina espartana. Na hora de irmos pegar água nos tanques para abastecermos nossas casas, os primeiros a acordar eram os filhos de Dona Mãezinha. Qualquer traquinagem dos meninos, o couro comia. Usava um critério bíblico para os castigar os filhos: enquanto Deus me der força no braço é porque as pancadas são justas, bradava ela. A família era numerosa, três mulheres, Iracema, Nilza e Josefina (Finha); e oito homens, Messias, Everaldo (Peba), Tonhinho, Gilberto, Américo (Meco), Dedé, Dandinho e Raimundinho.

Dona Mãezinha tinha explicação para tudo. Guerreira decidida, que costumava dizer: - comigo é nove, e dez não ganha. Líder a quem todos ouviam e respeitava. Uma polêmica provinciana, quase bizantina, surgiu no Beco Novo: qual seria a dor do parto, a dor de se ter uma criança? As opiniões eram divergentes. Os homens, como sempre, minimizavam, que nada, a dor era besteira, arrancar um dente doía mais. As mulheres diziam horrores. Na dúvida, a quem recorrer? Lembraram logo de Dona Mãezinha, que já tinha parido onze, ela devia saber a dor exata. Chamada a opinar, Dona Mãezinha não se acanhou: - gente, a dor de parir é a mesma dor de cagar uma jaca. Todos pararam para pensar no tamanho da jaca e a polêmica foi resolvida com a sábia sentença.

De uma hora para outra a rua foi surpreendida com uma notícia: a família de Dona Mãezinha ia embora para o Rio de Janeiro. Seu Justino quebrou. Na época eu não entendi, como quebrou, sapataria forte, ele mesmo fabricava e vendia os sapatos, os filhos todos trabalhando, e não eram poucos, quase todos bons sapateiros. Ninguém entendia como, mas quebrou. Acharam que tinha sido feitiço. Depois entendi, Seu Justino quebrou porque não teve como competir com a chegada dos sapatos de fábrica, que chegavam prontos pela metade do preço. O capitalismo chegava em Itabaiana por volta de 1965, com a roupa feita, acabando com os alfaiates; a sandália japonesa acabando os chinelos de Mestre Dé; e os sapatos feitos, cheios de papelão, acabando com a vida de Seu Justino. Depois chegaram os sapatos de plásticos, colocando uma pá de cal na manufatura.


Muito tempo depois (1980) fui estudar no Rio de Janeiro e procurei saber sobre a família de Seu Justino. Por onde andavam os meus amigos, quase irmãos, vizinhos, parceiros das molecagens de infância. Encontrei um dos filhos de Dona Mãezinha, Everaldo (o Peba), meu primeiro amigo, trabalhando no comércio no centro do Rio e estudando pela noite. Fiquei sabendo que moravam em Queimados, à época distrito de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Marcamos para um domingo, e lá vou eu para a Central do Brasil em busca de minhas memórias. Chegando à Queimados a família tinha acabado, perdeu as raízes. Restava um bando de gente triste, nem Dona Mãezinha era a mesma. A mulher forte que rivalizava com mamãe, eram muito amigas, tinha ficado em Itabaiana...   

terça-feira, 4 de abril de 2017

MINHA INFÂNCIA (1)


Minha infância (I).


Acho que me assuntei como gente aos sete anos. Nunca soube os motivos, mas mamãe fez uma promessa para me batizar nesse dia. Caiu numa segunda-feira, igreja esvaziada, mas a promessa foi cumprida. As sete da manhã, o primogênito de Dona Lourdes e Seu Elpídio estava pronto, na primeira fila de bancos da matriz de Santo Antônio e Almas de Itabaiana, para ser batizado. Foi a primeira vez que vesti uma calça comprida e calcei sapatos. Fui empurrado para dentro da Igreja. Depois fui tirar retrato nos estúdios de Joãozinho Retratista, nos fundos de uma relojoaria. As cerimonias da igreja ainda eram em latim, o padre celebrava de costa para os fiéis e os santos faziam milagres. A cheirosa fumaça dos turíbulos é a minha melhor lembrança.

Itabaiana transpirava a contra-reforma e as resoluções do Concílio de Trento (1554 – 1563) eram fielmente observadas. A vida econômica tinha base rural. Na cidade só pequenos artesões (sapateiros, marceneiros e alfaiates), donos de bodegas, funcionários públicos e desocupados. Metade dos imóveis da cidade era “casa de rancho”. Tudo girava em torno da igreja católica: festas, procissões, batizados e casamentos. No natal a missa do galo era cheia. No sábado de aleluia, rasgar as coberturas roxas dos santos era um acontecimento esperado com ansiedade. A missa de aleluia transcorria com as luzes apagadas, e me disseram que se o padre não encontrasse uma certa passagem no missal, era o prenuncio do fim do mundo. Nunca entendi os motivos para se procurar essa passagem no escuro, nem porque sendo tão importante, não procuravam antes e já deixavam marcado.

As modernices do Concilio Vaticano II (dezembro de 1965) só apareceram quando eu já tinha onze anos. E não pensem que chegou em Itabaiana no outro dia. Essa estória de que Deus é amor e perdoa todo mundo demorou a entrar na cabeça do povo. As Santas Missões apontavam a eminência do fogo eterno, e os nossos frades pregavam a paz para os justos, a misericórdia para os aflitos e o fogo eterno para os ímpios. O castigo para os maus seria severo. Era esse medo que continha o rebanho.
A igreja católica era soberana. Os crentes limitavam-se aos membros da igreja de Dona Eulina Nunes, poucos, mas descentes e respeitados. As religiões africanas estavam a cargo de dois ou três macumbeiros amadores de final de semana. Os terreiros de João de Filipinho, Cidália e Hosana, onde se batia o tambor e bebia-se cachaça. Eu achava tudo meio misterioso. Lá em casa meu pai se pelava de medo de mãe Bilina, yalorichá do Terreiro Santa Bárbara Virgem, em Laranjeiras, onde ele vendia rede de dormir na feira. Andava com os bolsos cheios de pregos, para evitar coisas feitas.

Fui guiado pelo Concilio de Trento, pelas aulas de catecismo de minha mãe, filha de Maria. Aprendi a ler com os livros de cordéis de meu avô Totonho de Bernadinho. Já cheguei na escola taludo, e não compreendi a sua serventia. Da escola só prestava a merenda (um achocolatado quente com bolacha) e o recreio. Ler eu já sabia. Se naquele tempo já tivessem inventado o “bullying” eu tinha me lascado. Fui aluno gratuito na escola do Padre, fizeram essa concessão aos filhos dos sócios do “Círculo Operário”, uma organização da igreja para combater o comunismo. A discriminação era total, até carregar água para molhar uma quadra de areia eu carreguei. O Padre Everaldo (bode cheiroso), não perdia a oportunidade de passar em minha cara que eu não pagava. Pensam que tive um trauma psicológico? Porra nenhuma, passei para a ofensiva e quando tinha oportunidade mandava todos eles tomar no (...). A vida não seria um passeio, e fiquei sabendo muito cedo. Aprendi a entrar em bolas divididas.

Eu só tinha medo dos castigos de Deus. Rezei muito nos últimos dias do longo padecimento do Papa João XXIII, morto em junho de 1963, com um câncer de estômago. Eu tinha nove anos, mas acompanhei como adulto. Os sinos da Matriz de Santo Antônio tocavam sem parar uma sinfonia fúnebre. Eu morava no Beco Novo, no fundo da igreja, e achava que os sinos estavam dentro de minha casa.


Logo cedo minha mãe decidiu que eu deveria ser padre. Ter um filho padre era um sonho das camponesas pobres de minha aldeia. Eu não resistia à ideia por oportunismo, achava que seria o único jeito de estudar. Depois abandonaria o sacerdócio, como tantos. A obstinação de minha mãe levou-a a procurar um seminário para me internar, e escolheu o da cidade de Carpina, Pernambuco. Tudo certo, na semana do embarque chegou a lista das coisas que eu precisaria levar, o enxoval. Entre as esquisitices constava 25 guardanapos. Aí minha mãe entrou em pânico: que diabo é guardanapo? Nem ela, nem ninguém lá em casa fazia a menor ideia do que fosse guardanapo. Mamãe apelou para os vizinhos, nada, ninguém no Beco Novo sabia. Foi o fim de minha carreira eclesiástica. Para não passar vergonha quando eu chegasse no seminário sem os tais guardanapos, ela resolveu não me mandar. Escapei por pouco... 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A MEDICINA COMERCIAL

A medicina comercial...

A Saúde emergiu como um direito na segunda metade do século XX, transformando-se num bem desejado. Duas visões sobre a saúde entraram em conflito: a qualidade de vida, alimentação, saneamento, higiene, cuidados de saúde, educação, etc. seriam as pré-condições para a saúde; ou o direito à saúde seria apenas o acesso aos serviços de saúde. No Brasil prevaleceu a segunda opção.

No passo seguinte, década 1990, os serviços de saúde assumiram a condição de atividade econômica (10% do PIB), regida pelas leis de mercado. Como consequência, o trabalho médico prestado até então em forma de cuidados (valor de uso), ao assumir a condição de mercadoria incorporou a sua forma, tornando-se impessoal e padronizado. O trabalho médico foi fragmentado em procedimentos (4.600, segundo tabela da AMB), numa linha de montagem descoordenada, permitindo a sua realização enquanto (valor de troca), viabilizando a organização comercial dos serviços de saúde, centrada no lucro.


A subjetividade dos antigos cuidados médicos, prestados de forma artesanal, era inadequada para a exploração capitalista. Em sua forma de mercadoria, os serviços de saúde são fetichizados, apresentando-se como condicionantes da saúde das pessoas, na clássica inversão das essências pelas aparências. O antigo paciente virou consumidor.

domingo, 2 de abril de 2017

O SOCIALISMO EM SERGIPE.


Carta do historiador itabaianense Francisco Antônio de Carvalho Lima Junior (1896), ao ilustre médico sergipano Silvério Martins Fontes, autor do Manifesto Socialista ao Povo Brasileiro (1889); fundador do Centro Socialista de Santos (1895) e do jornal “A Questão Social (1895). Silvério Fontes é tido por Astrogildo Pereira como o primeiro socialista brasileiro de tendência marxista.


“Não podia aparecer em melhor oportunidade um jornal nas condições do – A Questão Social uma vez que não se proponha a transigir com os bandos de especuladores, que vive por toda a parte a pescar em águas turvas em épocas eleitorais. O nosso novo vale tão pouco como elemento propulsor dos mecanismos sociais. Tem se aviltado tanto, se tornado de tal modo ludibrio dos falsos profetas, vítima que beija os pés dos seus algozes, que faz desconfiar da sua constância na luta pelos interesses, e sobretudo na dedicação sincera aos melhores servidores. A meu ver, a importância que merece a propaganda em favor do proletariado em país como o nosso, não consiste tanto na aspiração européia de uma reforma radical de uma instituição governamental, como na reforma dos costumes, o que só se pode alcançar por meio de profunda transformação moral. Sem isto, nada se conseguirá de positivo, senão estragar um belíssimo ideal. Para conseguir encarnar o ideal no verdadeiro, há mister de virtudes muito heroicas e mui lenta evolução. Por enquanto, a propaganda dirigida sob o ponto de vista científico, terá feito muito, operado prodígios, se conseguir anular as influencia maléficas, que, mentindo a democracia, se opõem a proclamação da República do Brasil... A missão da A Questão Social, como de todos os órgãos de propaganda das mesmas ideias, deve, por enquanto limitar-se a sanear, livrando-os desses miasmas, que os históricos, tem sido os primeiros a espalhar em nosso ambiente social. Falo, como disse, como histórico, que se envergonha dos companheiros na tribuna popular, no jornalismo, no parlamento, em toda a parte onde acham pessoas sem escrúpulos a quem mandar. Não será, pois, transigindo com o meio atual, que achará guarida o ideal socialista... “ (publicada na A Questão Social, nº 44, Santos, 01/04/1896, p.2) 
Foto: Silvério Martins Fontes.