quinta-feira, 28 de novembro de 2019

EPILEPSIA - MORBUS SACER


Epilepsia - morbus sacer. (por Antônio Samarone)

Historicamente, a epilepsia já foi associada a genialidade e a aspectos sobre-humanos. Hércules sofria da doença sagrada, segundo Aristóteles. Vários heróis foram notadamente epilépticos: Alexandre, o Grande; César e Napoleão.

Sobre César, Shakespeare pôs na boca de Cássio:

“E quando o ataque lhe sobrevinha, eu marquei como ele se agitava; é verdade como esse deus se agitava. Seus covardes lábios esvaíram-se de cor, e que aquele mesmo olho, cujo brilho espantava o mundo, perdeu o seu brilho; eu o ouvi gemer.”

Outros vultos da história também padeceram de epilepsia: Pedro, o Grande; o Apóstolo Paulo; Petrarca e Maomé. Sem falar em cientistas e escritores: Buffon, Flaubert; Helmholtz; Dostoiévski e Van Gogh.

Dostoiévski escreveu que nos momentos de êxtase, antes das convulsões, tinha a sua atenção dirigida para temas transcendentais como Deus e Morte. Durante as “auras” dos epilépticos, do lobo temporal.

Maomé diz no Alcorão que viu o Paraíso e nele penetrou. E não mentiu! Viu durante uma aura epiléptica, segundo Dostoiévski.

A medicina científica identificou a epilepsia, seus sintomas, sua localização e a sua natureza. Superou antigos estigmas. Por isso pagamos um preço: não teremos mais Dostoiévskis...

Antônio Samarone.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O OURO DA SERRA


O Ouro da Serra. (por Antônio Samarone)

Itabaiana é uma grande feitoria. A sua riqueza provém de um comércio forte e criativo, do transporte de cargas e da sua gente trabalhadora. Itabaiana é um nicho do capitalismo mercantil e da acumulação primitiva.

Tudo começou na década de 1950 com dois grandes acontecimentos: a chegada da BR-235 e a construção do Ginásio Murilo Braga. Vou falar sobre o Ginásio.

O ensino moderno chegou tarde à Itabaiana: “O Grupo Escolar Guilhermino Bezerra (1937), foi o primeiro sinal de civilidade”, segundo o historiador Zé Almeida.

Em 1949, surgiu um grande pilar de desenvolvimento: a criação do Colégio Murilo Braga. Um ginásio público chegou à Itabaiana. A Lei nº 212, de 29 de novembro de 1949, criou o ensino secundário em Itabaiana.

Em 27 de dezembro de 1953, formou-se a primeira quarta série do curso ginasial, constituída de apenas 20 alunos. Em 1954, começou o ensino do pedagógico e em 1969, o curso científico.

A escola pública mudou a feição da cidade, facilitou a inclusão social e criou uma esperança de ascensão às camadas subalternas. Pobres, ricos e remediados vestiram a mesma farda, frequentaram as mesmas salas de aulas e tiveram os mesmos professores.

O Murilo Braga foi um berçário de cidadania.

Ainda são fortes em minhas lembranças a alegria de ter passado no exame de admissão e o primeiro dia de aula, quando subi os degraus do Ginásio com a minha farda de brim caqui e sapatos plásticos. Claro, não era o Caqui Floriano, nem os sapatos eram o vulcabrás 247, mas eu fiquei vaidoso do mesmo jeito.

Os sapatos plástico eram uma novidade tecnológica. Bem mais baratos. O incomodo eram a quentura e o chulé em estado líquido. As meias pingavam.

Frequentar o Ginásio Murilo Braga me deu um status de pertencimento: eu não era nem pior nem melhor do que ninguém. Saí do Beco Novo e da Rua do Fato para o mundo. Tomei gosto pela leitura. Virei usuário da biblioteca do Padre. Peguei livros emprestados. Entendi que só a escola me salvava.

Foi no Ginásio que tive o meu primeiro tênis conga azul com biqueira, para as aulas de educação física do professor Labodí.

Todos vestíamos a mesma farda, e isso tinha uma grande simbologia. Aos sábados pela manhã, ao final das aulas, os meninos fardados podiam entrar na Associação Atlética, mesmo que os pais não fossem sócios. Mesmo assim, eu não ia...

Estamos comemorando 70 anos dessa realização. A geração que se fez gente pela escola pública, agradece aos que contribuíram.

Agradeço a todos os professores. Guardo na memória Terezinha, Lourdes, Gabriel, Guga, Clodoaldo, Zé Costa, Arnaldo Fominha, Manteiguinha, Marli, Ofenísia, Anito, Rivas, João de Deus e Edgar.

Agradeço aos funcionários: Nilo Base, Otaviano, Lula, Enéas, Bonito, Lourdes, Creusa e Isaltina, em especial a eterna secretária Dona Lilia.

Agradeço a exemplar diretora, Dona Maria Pereira. Sempre justa, disciplinadora, competente. Dona Maria Pereira tinha a cara da disciplina. Ela não precisava falar, bastava a presença, ou a possibilidade da presença. Devo muito a Maria Pereira, agradeço até mesmo os castigos, quando era expulso das aulas. Suspensão, só tomei uma de três dias. Justíssima!

Agradeço a minha mãe que me botou na escola e exigiu a minha frequência. Ela olhava o boletim. Quando meu pai falava em me levar à roça, ela saia em defesa: ele não vai! Amanhã tem aula. E papai calava-se!

Viva a escola pública! Viva o Colégio Estadual Murilo Braga!

Antônio Samarone.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O TEMPO



O Tempo (por Antônio Samarone)

Comemoramos quarenta anos de formados. Envelhecemos sem perceber. Nesse tempo quase não nos encontramos, cada um seguiu o seu caminho, os seus sonhos.

O que me chamou a atenção foi que chegamos quase a um mesmo ponto. O sucesso ou insucesso de cada um durante a jornada, no final pesou pouco.

A condição humana é implacável. A velhice e a morte são universais.

Mesmo afastados, na essência, ninguém mudou muito. O caráter, a personalidade, os gestos, as falas e o humor não mudaram. Todos corresponderam a imagem que eu tinha de cada um em minha memória.

Colegas que eu não via há quarenta anos, continuam com o mesmo sorriso.

Só uma grande mudança: todos ficaram mais humildes. O tempo reforçou a fragilidade humana.

Somos a última geração de médicos humanistas, voltados aos pacientes. Pelo menos no discurso, nos fundamentos e na narrativa.

Alguns não compareceram, conforme o previsto. Se na época da formatura me fosse perguntado: quem daqui estará presente na comemoração dos quarenta anos de formado? Eu tinha acertado em noventa por cento.

Não mudamos quase nada!

A missão agora é poder participar da comemoração dos cinquenta anos de formados. Ou quem sabe, até dos sessenta...

Antônio Samarone.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O DESERTÃO DO RASO DA CATARINA.



O Desertão do Raso da Catarina. (por Antônio Samarone)

O Raso é uma imensidão de aridez. A Expedição Serigy visitou o Baixo do Chico. Saímos de Paulo Afonso até o Povoado Juá. Lá encontramos com o guia. Avançamos de em carros traçados (4 X 4), carro pequeno não entra, por um caatinga seca, a perder de vista, cerca de 50 km.

Nem um pé de pessoa, nem de mamíferos. Nem bode! Só répteis, roedores, cobras, aves e insetos. A vegetação de cactos e catingueiras.

Chegamos a um lindo Vale, um rio que secou a milhões de anos. Um Vale de 10 km de areia fina, entre rochas semelhantes às do Canyon de Xingó.

Na entrada do Vale paga-se um pedágio aos índios Pankararés. Achei mais para quilombola do que para Aldeia. Uma pobreza absoluta.

Foi nessa parte do Raso que Lampião se escondeu, quando veio corrido de Mossoró. E foi daí que saiu o maior número de cangaceiros, mais do que do Poço Redondo, assim me contou o guia Pavãozinho do Juá.

É lá que estão a ararinha azul e o urubu rei. Não as avistamos, já chegamos com o sol a pino.

Ninguém pode falar que conhece o Nordeste, seca, pobreza, sofrimento, sem conhecer o Raso da Catarina. Não tenho dúvidas, ao lado de Canudos de Conselheiro, Serra Talhada e Angico de Lampião, Exú de Luiz Gonzaga, Juazeiro do Padre Cícero, formam o Nordeste profundo.

Os marimbondos de fogo me reconheceram, me cercaram, zoaram em meu ouvido, me acompanharam na caminhada, mas nenhuma picada. Cheguei a ouvi um zum-zum-zum entre eles: esse é dos nossos...

Antônio Samarone.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

GENTE SERGIPANA - JORNALISTA RAYMUNDO LUIZ.



Gente Sergipana – Jornalista Raymundo Luiz (90 anos)

Raymundo Luiz da Silva, nasceu no Aracaju, em 28 setembro de 1929. Filho Manuel Messias da Silva e Dona Eremita Moura. Uma família de três filhos.

Raymundo Luiz deu sorte, foi aluno da professora Guiomar Tavares, no Colégio Santo Antônio, onde fez o primário, e apreendeu a tratar com carinho a língua portuguesa. Raymundo Luiz dominou cedo a crestomatia. Cursou o ginásio e o científico no Salesiano.

No Salesiano, Raymundo Luiz foi o meia armador do poderoso “Auri Verde”, time de futebol do Colégio. Aqui ele encontrou o caminho para resolver as suas dificuldades com a matemática. O professor Colozio tanto ensinava matemática como era o treinador do Auri Verde. Raymundo Luiz ia bem no futebol e péssimo em matemática. Passava pela média.

Naquele tempo em Aracaju, quem terminava o segundo grau só tinha três caminhos nos estudos: os ricos iam para a Bahia fazer faculdade, os remediados ou entravam para o exército ou faziam concurso para o Banco do Brasil.  

Raymundo foi contínuo do Banco do Comercio e Industria de Sergipe, de José do Prado Franco.

Depois, passou no concurso do Banco do Brasil e foi lotado em Itabaiana. Interrompeu o curso de Filosofia, que fazia na Faculdade Católica, de Dom Luciano. Em 1952, Raymundo Luiz chegou em Itabaiana, na marinete de Jason Correia, para trabalhar no banco do Brasil.

A convivência em Itabaiana foi um importante capítulo na vida de Raymundo Luiz. Ainda hoje ele relembra com emoção. Nos primeiros dias morou na pensão de Dona Antonieta (mãe de Zé Bezerra). Logo depois, enturmado, fundou a República Cajaíba, onde passou a residir com uma turma do Banco do Brasil.

Casou-se em 1953, com Dona Maria de Lourdes Azevedo Silva e vão morar num bangalô alugado a Zeca Mesquita. Raymundo Luiz fez amizade com Antônio de Dóci, Oswaldo de Vivi, Divo (de quem é compadre). Como era bom de bola, foi logo recrutado pelo Tremendão da Serra, de quem vestiu a gloriosa camisa.

Raymundo Luiz foi professor de inglês no Colégio Murilo Braga. Foi quem primeiro ensinou a língua inglesa em Itabaiana. O Murilo Braga era dirigido na época pelo promotor da cidade, depois Ministro do STJ, Luiz Carlos Fontes de Alencar.

Em 1956, foi transferido para o Banco do Brasil em Aracaju. Mesmo sendo apaixonado pelo Cotinguíba, jogou pelo Clube Sportivo Sergipe. No Rio, Raymundo Luiz é torcedor do Vasco da Gama.

Com a criação da Radio Cultura, Raymundo Luiz coordenou a primeira equipe esportiva da emissora. Com Paulo Gomes, Alceu Monteiro, Jurandir Santos, Geraldo Oliveira, Antônio Barbosa, Carlos Magalhães e Wellington Elias. Quem ouviu essa gente, pode confirmar a qualidade das transmissões.

Raymundo sempre foi amante dos esportes, criou o Centro de Cultura Física de Sergipe, o percussor das atuais Academias.

Na Rádio Cultura, Raymundo Luiz narrava e escrevia com uma qualificada equipe, o “Nossa Opinião”, um programa de crônicas, transmitido diariamente as 13 horas. Líder de audiência.

No jornalismo, Raymundo Luiz foi diretor do Sergipe Jornal e do poderoso Diário dos Associados de Aracaju.

Raymundo Luiz é um homem de vasta cultura e profundo conhecedor da língua portuguesa. Se firmou na vida sergipana por talento e esforço, sendo um grande realizador em nossa vida cultural.

Foi Secretário de Comunicação dos dois primeiros governos de João Alves Filho, onde se destacou pela criação da TV Aperipê, um canal de cultura. No começo a TV pública tevê dificuldades de audiência.

Raymundo Luiz inovou. Colocou carros de som nas ruas informando a programação da emissora: “hoje, depois de Roque Santeiro, assistam a TV Aperipê, programa tal.” Um sucesso, a audiência chegou a 3%.

Raymundo criou outras TVs em Sergipe. Durante a Presidência de Antônio Passos, Raymundo Luiz criou a TV ALESE, no ar 24 horas; e depois criou a TV Jornal (não lembro que fim levou).

Raymundo Luiz continua lúcido, ativo, escrevendo, participando nas redes sociais. Um cidadão confortado pelo dever cumprido. Nunca ouvi um porém, uma acusação, uma crítica séria ao cidadão Raymundo Luiz.

Entrou e saiu da vida pública professando a decência. Discreto, culto, inteligente, avesso a bajulações, fez muito pela grandeza de Sergipe.

Pai de cinco filhos (Ângela, Sérgio, Dinara, Raymundo e Breno), avô de seis netos e bisavô de quatro bisneto. Mora no mesmo lugar, com Dona Maria de Lourdes, e continua escutando a beleza do canto do Curió Emoções.

Antônio Samarone.        

terça-feira, 12 de novembro de 2019

OS CAMINHOS DE SERGIPE.




Os Caminhos de Sergipe. (por Antônio Samarone)

Uma novidade, Sergipe terá um Plano Decenal de Desenvolvimento Sustentável (2020 – 2030). O último, “Problemas de Base de Sergipe”, foi elaborado pela Federação da Indústria, em 1960. Lá se vão sessenta anos.

O presidente da Assembleia Legislativa, Luciano Bispo, anunciou a contratação da Fundação Dom Cabral, uma escola de negócios mineira, para em oito meses, ouvindo a sociedade sergipana, elaborar esse recurso de planejamento.

Não se trata de planejar a gestão de um governante, as suas ações administrativas, como pensou uma autoridade municipal presente. Não! A iniciativa é bem mais ampla. É o planejamento dos destinos da economia do estado, por dez anos. Uma imitação do que faziam os países socialistas, e que ainda faz a China. A economia de Sergipe vai ter um rumo por dez anos.

Essa pretensão confronta o neoliberalismo professado pelo governo Federal. Na visão dominante, não cabe ao estado coordenar a economia, muito menos comandá-la. O progresso depende do livre mercado, da liberdade econômica, cabe ao estado não atrapalhar.

Na solenidade, um decano de economia de alma conservadora, cochichou ao meu lado: “que pretensão, onde o estado vai arrumar recursos para os investimentos”? “A economia hoje é globalizada, os investidores não tomarão nem conhecimento das pretensões sergipana,” insistiu o meu amigo neoliberal.  

Eu retruquei: de todo o jeito a iniciativa é meritória. Alguém precisa repensar Sergipe. Eu como acredito que o mercado precisa ser regulado pelo estado, com rédeas curtas, saí animado com a iniciativa.

Na última década, a economia sergipana despencou. A modelo de desenvolvimento iniciado em 1960, com a chegada da Petrobras, centrado em empresas estatais de mineração se esgotou.

Até agora ninguém apontou um caminho para a economia sergipana. É quase tudo na base do improviso! Lembram-se que durante a campanha foi anunciado um projeto que criaria cem mil empregos? Que fim levou esse projeto?

Num estado onde o poder público padece de indigência intelectual, contratar uma empresa para pensar Sergipe é um bom começo.

Vamos aguardar o Plano Decenal de Desenvolvimento para Sergipe, da Fundação Dom Cabral.

Antônio Samarone.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O GORDO FELIZ.

O gordo feliz. (por Antônio Samarone)

Seu Conrado da Matinha (93 anos), 1,78 cm, 105 kg. Só rolou uma conversa no velório: não se diz que a gordura mata, cadê?” Seu Conrado já nasceu gordo, e só morreu porque chegou a hora, e da hora ninguém passa.

Comecei a lembrar: em pouco tempo, a gordura passou de dádiva a maldição.

Numa sociedade onde a fome e a desnutrição dominavam, a gordura de Seu Conrado era vista como um sinal de riqueza, poderio e ascendência. Parecia um Major...

A preocupação era com quem emagrecia: viu fulano, magro e amarelo, só tem o couro e o osso, deve estar com alguma doença grave. Deus queira que não seja tuberculose.

Os gordos eram sadios e rosados. A barriga era do burguês, do chopp, da boa vida. Claro, com exceção dos muitos gordos (Tota, Cacau e Thiago).

Apesar da gula ser um pecado capital, saúde era barriga cheia. O jejum era sacrifício, ritual da semana santa.

O Seu Conrado só vivia de bom humor, uma graça, uma tirada na ponta da língua. Seu Conrado era um homem espirituoso. Cheio de chistes...

O prestígio do gordo começou a cair quando ele virou obeso. Só pelo nome, obesidade, não pode ser coisa boa. O obeso é improdutivo. Em pouco tempo a gordura virou doença e o magro virou esbelto.

Existem gordos bonitos, mas obeso eu não conheço. O obeso é o gordo triste, que não se aceita, que só pensa em dieta e bariátrica.

A química invadiu os alimentos, que passaram a ser analisados por especialistas. O que se pode e o que não se pode comer depende deles. A sorte é que eles mudam de opinião semanalmente.

Além de pesados e medidos, os obesos passaram a ser um risco, uma iminência mórbida. Em pouco tempo a obesidade virou epidêmica, um grave problema para a Saúde Pública.

Hoje se padece de uma obesidade científica, medida pela circunferência abdominal. Uma obesidade resistente a toda e qualquer dieta, onde a consciência é o que mais pesa. Uma obesidade que virou provação e martírio.

Seu Conrado foi o último gordo feliz, que nunca quis ser magro.

O obeso tornou-se objeto de denúncia, da vigilância alheia. Todos se acham no direito de admoestá-lo: se cuide, cabra veio! Muitos pensam com satisfação: pelo menos não cheguei a esse ponto.

Seu Conrado cagava e andava para essas conversas bestas. Era um gordo assumido.

Se morre um magro, todos atribuem aos caprichos da morte, que age aleatoriamente; se morre um gordo, a condenação é geral, também, queria o quê, gordo daquele jeito. Não dizem, mas muitos pensam: foi bem-empregado!

A morte de Seu Conrado, gordo e aos 93 anos, não ensejou até agora observações moralistas. Destoava. Foi quase uma festa. Cada um tinha um “causo” para contar do gordo feliz.

Antônio Samarone.


sábado, 9 de novembro de 2019

A MEMÓRIA DO POVO



A memória do povo. (por Antônio Samarone)

No início da década de 1980, nas manhãs de domingo, o professor Zé Costa reunia em sua casa um bando de jovens, para discutirmos a formação de uma Partido novo, um partido para mudar o Brasil.

Éramos estudantes, cheios de esperança. A primeira tarefa era arrumar alguém da classe operária, afinal, o Partido era dos Trabalhadores. Em Itabaiana, não era coisa fácil...

Foi uma luta. Todas as reuniões terminavam com uma promessa solene: na próxima, traremos trabalhadores. E nada... Só intelectuais e estudantes.

Finalmente, não sei quem chamou, mas estava lá, na reunião do PT de Itabaiana, Scala, um gari, um trabalhador da limpeza pública, em carne e osso. Entrava e saia calado, mas prestava a atenção.

Todos cheios de zelo, de cuidados com Scala, para que ele não desistisse. Para que ele entendesse o que era esse Partido diferente. Nunca se soube se Scala tinha ou não entendido.

As coisas não aconteceram como os nossos sonhos, mas aconteceram... Eu saí do PT e nunca mais encontrei com Scala. Quase quarenta anos.

Hoje fui a feira de Itabaiana, para as visitas que faço de tempos em tempos.

Fui abordado alegremente por um senhor, que me fez a pergunta clássica: está me reconhecendo? Eu olhei, dei um tempo, mas não reconheci.

Ele me puxou de lado e me deu um forte abraço. Cochichou no meu ouvido: “soltaram o homem!” Eu pensei, que homem? Ele insistiu, eu sou Scala, se lembra? Porra cara, Scala... Só aí entendi que o homem que soltaram foi Lula.

Professor Zé Costa, a minha dúvida acabou. Scala entendeu aquelas reuniões, e o mais importante, não esqueceu...

Antônio Samarone.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A HUMANIZAÇÃO DO MERCADO DAS DOENÇAS.


A humanização do mercado das doenças. (por Antônio Samarone)

A medicina de mercado avança no Brasil. O desmantelamento do SUS é parte desse jogo. O setor saúde representa 9,7% do PIB, tornou-se um importante ramo da economia. É uma constatação. Não se trata de um viés ideológico.

A medicina passou do ócio sagrado (sacerdócio) à negação do ócio (negócio). Para se transformar em mercadoria, o serviço médico precisou tornar-se impessoal, padronizado, previsível e quantificável. Os investidores precisavam avaliar antecipadamente os lucros.

Mercadoria é a forma como os bens e serviços circulam nas economias capitalista.

Na medicina artesanal do século XX, os médicos cuidavam das pessoas. O cuidado era a forma dominante dos serviços médicos. A transformação desses cuidados em mercadoria enfrentou resistências. Os cuidados são subjetivos. Qual foi o caminho?

Em algumas especialidades, a resistência em produzir mercadorias é inerente a natureza desses serviços. Por exemplo: na geriatria, pediatria, cuidados paliativos, psiquiatria. Não que seja impossível, apenas encontra mais resistência.

A medicina trocou o atendimento ao doente (pessoa) para o atendimento à doença (objeto). Em seguida fragmentou o cuidado em procedimento, viabilizando a sua transformação em mercadoria. A medicina de mercado é fundada no lucro, como qualquer atividade econômica.

A preocupante desumanização da medicina foi a troca do enfoque no doente pelo enfoque na doença. Isso é fato. Qualquer iniciativa de humanização que omita esse ponto é encenação inócua.

Nesse processo acelerado de mercantilização, o papel das escolas médicas é justificar o consumo de qualquer procedimento como uma necessidade científica. A mercadoria na medicina foi enfeitada com o discurso científico, pelo menos na consciência do médicos.

O movimento de humanização liderado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) enfoca o viés comportamental. Supõe que a luta pela humanização da medicina será superada pela humanização dos médicos, como se o problema fosse a desumanização pessoal dos médicos.

Dentro dessa crença, a estratégia do CFM é realizar seminários, debates, simpósios e palestras de convencimento, para que os médicos leiam os clássicos da literatura, abram-se para a poesia, a música, as artes plásticas, o cinema e o teatro. A pretensão do CFM é humanizar os médicos.

A medicina clássica era ciência e arte, as escolas de medicina encarregou-se de suprimir a arte.

O CFM entende essa arte como sendo literatura, música, poesia. Calma gente, essa arte é a sensibilidade da relação dos médicos com os pacientes. A arte era o lado místico, pessoal, sagrado, afetivo, era a transcendência da condição humana, com as suas crenças e medos.

A arte é a busca de alívio do sofrimento humano, onde a ciência não tem alcance.

A questão central da desumanização dos serviços médicos, isto é, a sua transformação em mercadoria, a troca do doente pela doença, do cuidado pelo procedimento são solenemente ignorados pelo projeto do CFM.

A medicina é humana quando cuida das pessoa, alivia os sofrimentos, acolhe os que necessitam. A medicina humana é a voltada para os pacientes. Simples assim...

A polêmica central da luta pela humanização é se a medicina de mercado pode ou não ser humanizada? Se pode, como iniciarmos as mudanças. Qual é papel das escolas médicas nessa cruzada? Quem são os aliados e os adversários dessa humanização? A luta é pela humanização da mercadoria ou pela mercantilização dos valores humanos?

No modelo atual as escolas médicas formam para o mercado, com a aparência de uma medicina centrada nas ciências. É possível que as escolas médicas, sobretudo as públicas, formem profissionais voltados para os pacientes, para as pessoas, sem abandonar o pilar científico?

Antônio Samarone.

domingo, 3 de novembro de 2019

ASSIM FALOU PEDRO DE ANITA



Assim falou Pedro de Anita. (por Antônio Samarone) 

Um dos males da velhice, da inatividade obrigatória, é o fim dos domingos, feriados e dias santos. Os dias tornam-se iguais. Natal, São João, Carnaval, tudo vira um segunda-feira cinzenta. O feriadão só é dadivoso para quem trabalha por necessidade.

Pedro gostava do ócio em si, do ócio pelo ócio. Para ele, todos os dias eram santos.

Pedro só usava óculos com armação de “casco de tartaruga”, escuras, pesadas, daquelas que envelhecem as aparências em pelo menos 20 anos. Para evitar a falsidade natural dos amigos nos cumprimentos: “como você está novo, não envelhece, qual é a fórmula?”

Essa cortesia era abusiva, todos diziam a mesma coisa: “você está muito bem”. É como se as pessoas esperassem nos encontrar moribundos, caquéticos, acabados, ou quisessem o mesmo afago de volta.

Pedro definia-se como um “saudável moribundo”. Nunca teve pretensões à imortalidade e gostava da velhice.

A leitura de Nietzsche agravou a confusão na mente de Pedro. Ele citava de memória:

“A terra será ocupada pelo derradeiro homem, que vai apequenar todas as coisas. Sua laia é indestrutível, ele viverá por muito tempo. Um pouco de veneno tornará os seus sonhos agradáveis.”

Pedro acreditava que esse veneno era o álcool. Ainda não existiam outras drogas em Itabaiana. A maconha só era usado ritualisticamente por iniciados.

“Meu amigo! Os homens mataram Deus e não sabem o que fazer sem ele. O que Nietzsche queria dizer com a criação do super-homem?” Pedro de Anita perguntava sem saber a resposta, nem ninguém em Itabaiana sabia. Aquilo parecia conversa de doido.

Pedro encerrava as conversas com uma exortação nietzschiana: “Dai-me a loucura, divino mestre, para que eu possa acreditar em mim mesmo”. 

Esse pedido, Deus atendeu!

Antônio Samarone.

A tela acima é de Tolstoi. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

QUEM É O DONO DO PARQUE DA SEMENTEIRA.



Quem é o dono do Parque da Sementeira? (por Antônio Samarone)

O Parque da Sementeira foi criado por Getúlio Vargas, em 20 de julho de 1933, como um Campo Experimental para a cultura do coco em Sergipe, pelo Decreto 22.973, com a dotação de 27:000$000, para os seus trabalhos de instalação.

Foi comprada uma fazenda de 100 hectares. A Sementeira ia do Hospital Primavera ao Rio Poxim.

Entre os fundos do Batistão e a Tancredo Neves, o que não era nem mangue nem apicum, pertencia quase tudo ao Parque, era público. Particular mesmo, só pequenas chácaras na beira do Poxim e uma ocupação dispersa  de pescadores chamada "Japãozinho". 

Os primeiros coqueiros foram plantados na Sementeira em agosto de 1934, tornando-se o primeiro campo de produção de mudas de cocos no Brasil. Uma grandeza para Sergipe.

Com a criação da EMBRAPA em 1972, o Parque da Sementeira passou para o seu domínio. Aqui começou a privatização da área. Grandes empresas de construção civil “compraram” a metade da Sementeira, a preço de banana. Virou o bairro Jardins.

Em 1980, o Prefeito Heráclito Rollemberg adquiriu 48 hectares para criar um Parque Público.
Sem essa medida, hoje só teríamos prédios... 

Uma das primeiras benfeitorias de Heráclito foi a construção dos dois lagos na Sementeira. Cavaram e fizeram uma ligação com o Rio Poxim. Atualmente estão poluídos, porque poluíram o Rio.

O Parque da Sementeira, que possuía 100 hectares, foi aberto ao Público em abril de 1985, com 48 hectares. Restam 40 hectares, mais uma área de 4 hectares, no fundo da atual EMBRAPA, que foi doada à Prefeitura recentemente.

Em 1989, durante a gestão de Wellington Paixão, a Lei 1.477 transformou o Parque da Sementeira em Área de Proteção Ambiental (APA). Precisava de um plano de manejo (lei 6.902/89), definindo-se o que podia e o que não podia existir na APA. Nada foi feito!

Sem plano de manejo, a Prefeitura empurrou dois órgãos públicos para ocuparem a sementeira. E pode? Ninguém sabe, não existe plano de manejo.

A especulação imobiliária nunca se conformou de ter ficado só com a metade da Sementeira. Acham um desperdício...

Durante a última gestão João Alves, foi encomendado a Jaime Lerner um projeto para a Sementeira. Por nossa sorte ficou só no papel, iam transformar a Sementeira num “Beto Carrero World”.

O Prefeito Edvaldo tem anunciado que vai gastar 20 milhões para reformar a Sementeira. Fazer o que? Ninguém sabe, nem ele, pois não existe projeto. Um diz uma coisa, outro diz outra, tudo na base do improviso.

O intelectual e ambientalista Luiz Eduardo Costa propõe: “Que ele faça, do Parque da Sementeira Augusto Franco, uma área de lazer protegida da insensatez de barulhos absurdos, e de multidões que pisoteiam e danificam.”

Hum, tá fácil... Hoje na Sementeira circulam mais carros do que gente.

Luiz Eduardo ainda informa: “o dirigente da EMSURB, Luiz Roberto Santana empenha-se em criar, anexo ao parque, uma área específica para a vegetação de restinga, aquela, que acompanha as nossas praias, e hoje desaparecendo. E assim teremos um jardim, onde estarão preservados o grageru, araticum, maçaranduba, cajuí, ingá, murici, etc....” 

Lotear, como no passado, creio que não será mais possível.

As forças da especulação imobiliária e da privatização propõem a criação de uma avenida cortando o Parque, uma “área de eventos, com 40 mil metros quadrados”, uma arena multiuso (tipo o antigo Augustos), três restaurante, pista de motocross, e coisas do gênero. Tudo dentro da “parceria público privado”.

A sorte é que a construção civil não manda mais na prefeitura de Aracaju. Ou manda?
Senhor Prefeito, o que a sociedade civil pede é que o senhor simplesmente cumpra a Lei. A Sementeira (Parque Augusto Franco) é uma Área de Proteção Ambiental.

Antônio Samarone.