quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

BEXIGAS, BOUBAS E BOSTELAS; PÁPULAS, PÚSTULAS E VESÍCULAS.


Bexigas, boubas e bostelas; pápulas, pústulas e vesículas. (por Antônio Samarone)

A primeira referência a uma epidemia de varíola (bexiga) no Brasil, encontra-se numa carta de José de Anchieta a Diogo Laínez, segundo superior geral da Companhia de Jesus. São Vicente, 08 de janeiro de 1556. Observem os assombrosos tratamentos disponíveis no século XVI.

A principal destas doenças hão sido varíolas, as quais ainda brandas e com as costumadas que não têm perigo e facilmente saram; mas há outras que é coisa terrível: cobre-se todo o corpo dos pés à cabeça de uma lepra mortal que parece couro de cação e ocupa logo a garganta por dentro e a língua de maneira que com muita dificuldade se pode confessar e em três, quatro dias morrem; outros que vivem, mas fendendo-se todos e quebrasse-lhes a carne pedaço a pedaço com tanta podridão de matéria, que sai deles um terrível fedor, de maneira que lhe acodem as moscas como a carne morta e apodrecida sobre eles e lhe põem gusanos (bicho de mosca) que se não lhes socorressem, vivos os comeriam.

José de Anchieta revela na carta: estive acudindo a todos, sangrando dez, doze cada dia, que esta é a melhor medicina que achamos para aquela enfermidade, e era necessário correr suas casas cada dia uma ou mais vezes, a buscar deles que, ainda que passeis por suas casas, se não a revolveis toda e perguntais por cada pessoa em particular, não vos hão de dizer que estão enfermos. E o melhor é que em pago destas boas obras, alguns deles, como são de baixo e rude entendimento, diziam que as sangrias os matavam, e escondiam-se de nós outros. Os índios desconfiavam que sangrar o bexiguento (doente com varíola), não era um bom socorro.

Contudo, os índios escolhiam outra forma agressiva de tratamento: mandavam fazer umas covas longas a maneira de sepulturas, e depois de bem quentes com muito fogo, deixando-as cheias de brasas e atravessando paus por cima e muitas ervas, se estendiam ali tão cobertos de ar e tão vestidos como eles andam, e se assavam, os quais comumente depois morriam, e suas carnes, assim com aquele fogo exterior como com o interior da febre, pareciam assadas. Três destes que achei revolvendo as casas, como sempre fazia, que se começava a assar, e levantando-os por força do fogo, os sangrei e sararam pela bondade de Deus.

José de Anchieta continua descrevendo as vantagens de sua medicina: a outros que daquele pestilencial mal estavam mui mal e esfolei parte das pernas e quase todos os pés, cotando-lhes a pele corrupta com uma tesoura, ficando em carne viva, coisa lastimosa de ver, e lavando aquela corrupção com água quente, com o que pela bondade do Senhor sararam; de um em especial se me recorda que com as grandes dores não fazia senão gritar, e gastando já todo o corpo estava em ponto de morte, sem saber seus pais que lhe fazer, senão chorar-lhe, o qual, como lhe cortamos com uma tesoura toda aquela corrupção dos pés, e os deixamos esfolados, logo começou a se dar bem e cobrou a saúde.
Essa peste de varíola ou corrupção pestilenta, como diz S. de Vasconcelos assolou o Brasil inteiro em 1563, sobretudo a Baía, onde tirou a vida a três partes dos índios.

Em seu escrito sobre o Frei Gaspar Lourenço, o Padre Aurélio de Vasconcelos nos conta que entre 1562 e 63, surgiu no litoral brasileiro duas grandes pestes (febre amarela e varíola) que dizimou os gentios, e que no espaço de três meses morreram mais de 30 mil índios. Uma descrita como uma febre alta, com hemorragias que matava em poucos dias e a outra como um pipocar de bexigas, asquerosas e pútridas, que em poucos dias estavam infestadas de bichos de mosca.

Nesse período das Pestes e de muita fome (1562), os portugueses aproveitaram a sentença de Mem de Sá contra os Caetés pela morte do primeiro Bispo, e estenderam a sua eficácia contra os Tupinambás do território entre os rios Real e São Francisco (Sergipe), tornando-os escravos.

Os principais beneficiários foram o poderoso fazendeiro F. Cabral e Garcia d’Ávila. Na verdade, Mem de Sá cumpria a determinação anterior da Rainha Regente Catarina de Áustria, esposa de D. João III. A escravização dos índios de Sergipe, como se ver, começou bem antes da expedição de 1575, organizada por Luiz de Brito.

Segundo o padre Aurélio Vasconcelos, em 1564, após cessada as Pestes, as aldeias de Sergipe ficaram muito despovoadas, pois os que escaparam da morte e da escravidão, fugiram sertão a dentro em busca da sobrevivência. A aldeia de Aracaen era a última de Itapicuru, onde viviam os índios subjugados, além ficavam os temíveis e guerreiros Tupinambás, as 28 aldeias de Sergipe, onde as tropas de Garcia d’Ávila não se atrevia em penetrar. Temidos pela fama de terem comido o Bispo Sardinha.

Antônio Samarone.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

AZEDO OU AMARGO?



Azedo ou amargo? (por Antonio Samarone)

O paladar tem regredido. As refeições rápidas (fast-food), e a comida produzida industrialmente não permitem que se apure o gosto. Comemos rapidamente as mesmas coisas. 

A delicadeza e a arte dos grandes cozinheiros, a distinção dos acepipes, quitutes, iguarias e guloseimas perderam a importância. Reconhecer as nuanças dos sabores tornou-se quase um esnobismo.

Restaram meia dúzia de sibaritas que se tornaram gourmets por ostentação, por distinção social. A fama e o preço do restaurante pesam mais que a qualidade da comida. Uma pretensa aristocracia do bom gosto. No fundo, simples aparências...

Os pitéus populares desapareceram. Não se come mais a tanajura, fêmea da Atta sexdens, com os seus abdomens gordurosos, crus ou torrados, que faziam a festa da molecada. Quem sabe dizer se ainda existem tanajuras? Em tempos chuvosos, corri muito atrás de tanajuras, com um versinho na ponta da língua: “cai, cai tanajura, na panela da gordura”.

Creio que ninguém mais frequente os matadouros, para saborear um fígado ensanguentado e quente, recém tirado do animal abatido. Fígado assado na brasa, e degustado às pressas, numa gula primitiva.

Uma pessoa privada do olfato é incapaz de apreciar os sabores. A consistência, a cor, a apresentação visual e a temperatura dos alimentos determinam o seu sabor. A cerimônia do chá no oriente é uma arte que exige sensibilidade absoluta: o exame visual, o olfativo e o gustativo. Se come com os olhos.

O paladar requer a ingestão de uma parte do mundo. Não é a gula que nos condena! “Não é o que entra pela boca que nos torna impuro, mas o que sai da boca...” Mt. 15:11.

O prazer da mesa é o ultimo a nos consolar, quando os outros nos faltam. A culinária constitui-se em um último acesso às raízes, quando os outros sucumbem. O paladar alimenta as recordações.

Só se gosta do que se come na infância, diz o senso comum. O paladar não é inato, possui história e revela a nossa cultura. A percepção de um sabor depende de um aprendizado.

Os sabores são infinitos. “A criança come a acaba apreciando os manjares da cozinha familiar”. Feliz o homem que, na meninice, girou ao redor das panelas”, diz Bachelard; feliz o homem que raspou o fundo do tacho, digo eu.

“Eu não conheci, e não conheço ainda, uma comida melhor do que a servida numa refeição rústica. Com laticínios, ovos, queijo, ervas, pão de rolão ou vinho, sempre estamos seguros de regalar-nos bem”; diz Rousseau em Les Confesions. Esqueceu o cuscuz!

Os sabores são impregnados de afetividades. O ato de saborear é individual, diz respeito somente a cada um. É um prazer pessoal. “De gustibus non est disputemdum” (gosto não se discute). O primeiro copo de vinho ou de cerveja dificilmente é saboroso. O paladar precisa ser treinado.

Quando alguém é inexpressivo dizemos que é uma pessoa sem sal; por outro lado, quando a pessoa é muito boa, dizemos que é um doce de pessoa. Os sabores nomeiam o mundo.

A cozinha é um definidor cultural por excelência. O chinês só fica saciado com o arroz, o nordestino com a farinha. A farinha cumpre três funções na alimentação: esfria o que está quente, engrossa o que está fino; e aumenta o que está pouco. Na ausência da farinha do reino, foi a farinha de pau dos Tupinambás, que ajudou a colonizar o Brasil.

Todos as comunidades gabam-se da pureza e do sabor da sua água. “Quem bebeu da água da Ribeira, não esquece Itabaiana”, sempre soube disso. Essa conversa que a água pura é insípida é só na teoria. Quem tem o paladar apurado, reconhece os sabores das águas de sua aldeia.

Só a antropofagia salva, nos diz Oswald de Andrade em seu manifesto. Somos descendentes da Nação Tupi, canibais por razões ritualísticas. Já, segundo Freud, foi a interdição da antropofagia que fundou a civilização. Fico com Oswald de Andrade!

Encerro aqui o meu passeio pelos sentidos. Sempre bebendo na fonte de Breton. Finalizo com um apelo do Apóstolo Paulo: Comamos, bebamos e alegramo-nos, pois, amanhã morreremos.” 1 Cor 15:32

Antonio Samarone.

BASTA ABRIR OS OLHOS


Basta abrir os olhos. (por Antonio Samarone).

A visão convoca a luz. No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo... Deus disse: haja luz e houve luz. Deus viu que a luz era boa... 

O mundo começou com a luz, e terminará com as trevas. “Em seguida ele voltará os olhos para a terra, por toda a parte só verá angustia, trevas, escuridão. Trevas infinitas.” Isaías 8:22.

A visão é o nosso contato imediato com o mundo. A existência é essencialmente visual. Para os cegos, o mundo é um universo dos odores, dos sons e dos contatos com as coisas. É pouco?

Agostinho é cego de nascença, nunca viu a luz. Ele discorda frontalmente de que o pior cego é o que não quer ver. Isso é conversa de quem enxerga: “o pior cego é quem quer ver e não consegue.

Por outro lado, me disse Agostinho: a visão é um sentido superficial, só vê as coisas que se mostram. Para esclarecer melhor, ele me contou o mito da caverna, de Platão, que eu não conhecia. Agostinho lê em braile. “Os homens vivem numa caverna, acorrentados. A luz só penetra na caverna por uma entrada estreita, projetando uma sombra na parede. O homem acredita que essa sombra é a realidade.” Entendeu? Eu disse, mais ou menos...

O homem não quer ver a realidade, continuou Agostinho. Não sei se para esnobar, citou uma passagem de Sócrates, sobre o mito da caverna: “E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram?”

No dizer de Breton, a visão é um sentido ingênuo. “O homem só percebe sombras que assume por realidade, ele permanece prisioneiro de um simulacro.” A visão transforma o mundo em imagens, e facilmente em miragens. Há uma ilusão de que o que salta aos olhos é evidente, e não se discute, não precisa ser analisado.

Agostinho é agnóstico, mas recorreu a bíblia: “Deixai-os, são cegos conduzindo cegos! Ora, se um cego conduz outro cego, ambos acabarão caindo num buraco.” Mateus 15:14.

Vivemos a era das imagens, filosofa agostinho. Com a descoberta da fotografia, do cinema (da telona), da tela da TV, das imagens digitais, e da telinha da multimídia, o mundo mudou. Todos vivem grudados no celular. Por exemplo: a medicina endoidou, quer dar todos os diagnósticos pelas imagens. Quando a doença não é visível, não produz imagens, a medicina diz que é virose. “Disso eu sinto falta, sentenciou Agostinho: não é fácil ser cego na era das imagens.”

Puxei a conversa para um terreno minado. Freud achava que era a impressão visual que mais despertava a libido, como os cegos lidam com isso, perguntei a Agostinho. “Ora, o amor cega os que tem visão, e faz os cegos enxergarem. Sinto o cheiro do cio à quilômetros. Eu vejo com a alma!” O difícil é a paquera, Eu ponderei, querendo ser engraçado. “Todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração.” Mateus 5:28.

A visão nada mais é senão um determinado uso do olhar, diz Merleau-Ponty. “O olho é sem inocência, ele chega as coisas com uma história, uma cultura, um inconsciente. Ele pertence a um sujeito. O olhar não reflete o mundo, o constrói por suas representações.”

Toda visão é uma interpretação, reforçou Agostinho. Se eu voltasse a enxergar poderia enfrentar um conflito das imagens com a minha visão do mundo. Mesmo assim, eu quero esse conflito. A qualquer hora a ciência vai resolver o meu problema, ainda que seja com olhos artificiais. Já existe até coração feito com a tecnologia de impressão 4D. Só lembrando, nós, os cegos, somos clarividentes. Como assim?

“O pensamento só começa a ter o olhar penetrante quando a visão dos olhos começa a perder a sua acuidade”, ensinava Sócrates... A cegueira não é mutilação, mas a abertura do olhar sobre o tempo ainda desconhecido dos homens. Édipo pune-se por seus crimes, furando os olhos, mas no final da vida tornou-se sábio.

Antonio Samarone.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

CARNAVAL DE RUA DO ARACAJU




O Carnaval de rua do Aracaju. (por Antonio Samarone)
O Carnaval brasileiro nasceu do entrudo português. Uma festa popular nos três dias que antecedem a quaresma, onde se lançava água de cheiro e farinha do reino uns nos outros. A festa da cabacinha em Japaratuba é uma reminiscência desses carnavais.
No Brasil foi assim até a gripe espanhola de 1917. Depois virou uma festa pagã, imitando as saturnálias romanas, onde a transgressão, a esbornia e a orgia reinavam livremente. Até a quarta-feira de cinzas ninguém era de ninguém, era um liberou geral. Os religiosos entravam em penitência e orações, para contrabalancear os pecados da folia. Em Aracaju voltamos ao entrudo.
O chamado carnaval de rua, os blocos independentes imperam pelo Brasil afora. Um carnaval fora da parceria rede globo/bicheiros. Em Aracaju também existe carnaval de rua, e de uma certa forma original. Um carnaval bem-comportado. Ninguém mijando nos postes (filas nos banheiros químicos); nem jogando latinhas.
Fui ao desfile do tradicional bloco “Eu só se fico, se você não só se for”. Uma turma amiga. Tudo na maior ordem. Todo mundo sóbrio, ou quase sóbrio. Nada de lascívia, devassidão, licenciosidade, voluptuosidade. Nada! Não enxerguei nenhum libertino, tão comuns em outros carnavais.
Não vi passistas de frevo, nem sambistas. Todos andavam compassadamente, numa folia contida. A alegria se expressava pelo movimento dos braços, com o indicador apontado para o alto (Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô). Poucas fantasias, um ou outro com um cocar de penas artificiais e outros com orelhinhas de coelho. Nenhum mascarado. Nem confetes, nem serpentinas. Só as crianças apertando spray com espuma de plástico.
Gostei das músicas: o centenário frevo de Olinda. Lembrei-me dos carnavais do Clube do Trabalhador, em Itabaiana, onde só tocava músicas de Capiba. Antes houve um esquenta, com o “burundanga”, grupo de gente entusiasmada, comandado pelo maestro Pedrinho Mendonça.
Almir Santana não apareceu distribuindo camisinha. Fez bem, talvez não tivesse mesmo serventia.
Antonio Samarone.

LOBOTOMIA


Lobotomia: cura milagrosa ou mutilação cerebral? (por Antonio Samarone)
Disse um filosofo: o único poder que os deuses não possuem é o de apagar o passado. Em medicina, no que toca as armas dos diagnósticos e das terapêuticas, a longevidade é muito breve.
Rosália Boaventura, 85 anos, demente desde os 20, por conta de uma lobotomia, realizada no Hospital Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, em 1954. A sergipana de Altos Verdes, foi uma das primeiras pacientes do Dr. Aloysio Mattos Pimenta, que realizava esse esdrúxulo procedimento desde 1936, no Juquery, em São Paulo.
Sei que lhe bateu uma dúvida: lobotomia é o que eu estou pensando? É pior? A leucotomia Pré-Frontal e a lobotomia (depois viraram sinônimos) são intervenções cirúrgicas que destroem o lobo frontal do cérebro, desativando as suas funções. Já se usou quebrador de gelo e álcool absoluto. A cirurgia foi inicialmente utilizada em esquizofrênicos graves, depois generalizou-se para outras psicopatias.
Fulton e Jacobsen, no Congresso Internacional de Neurologia realizado em Londres, em 1935, demonstraram uma mudança de comportamento do chipanzé, animal selvagem e agressivo, que depois da retirada dos seus lobos frontais, tornou-se dócil e passiva.
O procedimento em humanos foi criado em 1933, pelo médico português, Dr. Egas Muniz, agraciado com o Nobel de medicina pela proeza, em 1949. A lobotomia foi usada amplamente no mundo por mais de vinte anos. Na época, essa “psicocirurgia” foi considerada avanço científico da psiquiatria orgânica. Egas Muniz recebeu o prêmio Nobel, em 03 de janeiro de 1950.
Em 1944, foi publicado o primeiro trabalho científico sobre o uso da lobotomia cerebral no Brasil. Das 160 cirurgias realizadas até então em internos do Juquery, com a técnica de Egas Moniz, Barreto, Antonio Carlos - analisou os resultados das cem primeiras. Um detalhe chama a atenção: Todas as cem pessoas operadas eram mulheres.
Como exemplo, ele relata o caso de uma mulher de 24 anos que fora submetida a vinte aplicações de eletrochoque e quarenta comas insulínicos sem que seu quadro de "esquizofrenia hebefrênica" fosse alterado. Submetida à lobotomia pré-frontal, com cinco cortes em cada lobo, diz o cirurgião, a paciente se recuperou completamente e depois de um mês teve alta, voltando a conviver com a família.
No Brasil, a lobotomia foi utilizada em pacientes de instituições asilares, entre 1936 e 1956. Eram intervenções que consistiam em desligar os lobos frontais direito e esquerdo de todo o encéfalo, visando modificar comportamentos ou curar doenças mentais.
A lobotomia foi proibida 1956, por a ferir o Código de Nuremberg, concebido para regulamentar e conter os abusos da experimentação médica em seres humanos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.
Existe evidências que a lobotomia foi usada em opositores políticos, nos manicômios da União Soviética. E onde mais? Depois da proibição, o assunto foi posto em esquecimento. Atualmente voltou a se falar em psicocirurgias, em “outras bases”, cirurgias mais localizadas. Não confundir com cirurgias neurológicas.
Dona Rosália nunca soube que fez parte de um experimento médico. Só ficou sabendo que destruíram uma parte do seu cérebro muito tempo depois. “Se soubesse, não tinha permitido”, ela afirma até hoje. A realização da lobotomia era uma decisão da equipe médica, fundada na ciência. Não carecia do consentimento.
Perguntei a Dona Rosália o que ela achava desse retorno dos manicômios e do eletrochoque, ela nada me respondeu, mas fez uma cara de profunda repugnância, como se dissesse, vade-retro satanás, eu já conheço tudo isso.
Fiquei pensando, esse discurso de que a realidade é outra, que o choque agora é cuidadoso, que a ciência avaliza, não é nenhuma novidade. A ciência já avalizou cada barbaridade... Inclusive a lobotomia.
Antonio Samarone.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

MEU NOME É JOHN


O meu nome é John... (por Antonio Samarone)

Jones Soares da Silva não nasceu em berço de ouro. Também nunca passou por dificuldades. Filho do petroleiro Leonardo e da professora Roseli, Jones frequentou boas escolas. Nunca foi um gênio, nem um apoucado. Um aluno mediano. Formou-se em filosofia pela UNIT.

Jones ainda não conseguiu uma colocação rendosa. Mora com os pais, e está estudando para concurso. Até aí, nenhuma novidade. Jones é um solitário. Não se sente parte de nada, não tem referências coletivas. Odeia a política e é indiferente a religião. Não pertence a nenhum grupo. Jones é uma alma desenraizada. 

De uns tempos para cá, Seu Leonardo começou a achar Jones estranho, meio confuso, com uma conversa sem pé nem cabeça. O que houve meu filho, o que está lhe faltando? Meu pai, a minha vida não tem sentido. Quem sou eu, um inútil? O que isso menino? Fizemos o maior sacrifício para você estudar, agora é ter paciência, a sua hora vai chagar. Meu pai, não existe concurso para filósofos! 

Só que bateu uma crise existencial em Jones, e sua autoestima despencou. Jones nem crer nem descrer em nada. Uma alma vazia. A primeira ideia foi cuidar do corpo. Passou a frequentar uma academia, e a ocupar boa parte do tempo na fisicultura. Engrossou os braços, tomou bomba, passou a ser um fitness. Mas não resolveu o vazio existencial.

Concluiu que o corpo musculoso não era suficiente. A sua feição tinha uma deformidade: as orelhas de abano, herdadas do Pai. Tomou uma providência imediata: procurou o cirurgião plástico mais caro de Aracaju, e operou as orelhas. Por infelicidade, as orelhas que antes eram muito afastadas da cabeça, com a cirurgia, ficaram muito coladas. Ele não gostou. Nem ninguém!

“A cirurgia estética é uma medicina destinada a clientes que não estão doentes, mas que querem mudar a sua aparência e modificar a sua identidade. Provocar uma reviravolta em sua relação com o mundo.”

Para encobrir o defeito cirúrgico, Jones passou a usar um par de brincos de penas com búzios caramelo. No começo chamou muita a atenção. Uns riam, outros debochavam, mas a verdade é que Jones saiu um pouco do anonimato. Começou a ser notado. Ele pensou, o caminho é esse, vou continuar investindo em meu corpo. 

Nesse meio termo Jones tentou outras saídas. Fez terapia cognitiva comportamental (TCC), yoga, meditação, recorreu a homeopatia, virou vegano, Hare Krishna, punk, cheirou pó, teve uma experiencia homo, fez a trilha de Santiago de Compostela, experimentou o Santo Daime, tentou o suicídio e chegou até pensar em virar evangélico. Nada deu jeito. Ao final de cada experiencia, a alma de Jones continuava vazia. Nenhuma resposta.

Só lhe sobrou o corpo, como último refúgio. “O corpo sou eu!” imaginava ele inseguro... “Se não existem mais saídas nas esferas coletivas, vou buscar na vida privada.” Fez duas grandes tatuagens, uma nas costas, outra na bunda; pôs um piercing no nariz e outro na bochecha. 

Pintou o cabelo de amarelo e mandou desenhar uma suástica. “Se não é possível mudar as condições de existências, pode-se pelo menos mudar o corpo de várias maneiras”, filosofava Jones. “O corpo é o emblema do self.”

Segundo Lasch, “essa paixão repentina pelo corpo é uma consequência da estruturação individualista de nossas sociedades ocidentais, sobretudo em sua fase narcisista.”

Jones passou a trespassar o corpo com alfinetes, enganchou cruzes gamadas, mutilou, talhou, escarificou, usou trajes impróprios; fez um branding com laser. Chegou a usar um ampallang, mas achou incomodo. 

Jones se transformou num body builder. A sua alimentação passou a receber um complemento nutricional dado por proteínas em pó, minerais e vitaminas. Jones Soares da Silva, aos trinta anos, é uma fortaleza de músculos inúteis e enfeitados. 

Jones tentou fabricar-se a si mesmo. O corpo virou o seu alter ego. O corpo passou a ser o seu lugar de questionamento do mundo. 

Nessa trilha sinuosa, Jones não sabe mais o que é mascara e o que é rosto. O virtual e o real se fundiram. No final da metamorfose, Jones se transformou numa colcha de retalhos, fragmentado, polimorfo, disforme, membro de uma nova espécie, o Homo esquizoide, que em breve receberá um chip com inteligência artificial, e será controlado via internet. 

Antonio Samarone.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

NO PRINCIPIO ERA O VERBO.



No Princípio Era o Verbo... (por Antonio Samarone)

Não nasci e nem me criei ouvindo músicas. A minha educação musical limitou-se as aulas de canto orfeônico, no ginásio. Tentei aprender música na Filarmônica, mas não houve jeito. Na verdade, sempre fiz ouvidos de mercador para a música.

Em minhas memórias auditivas permanecem o coaxar dos sapos, rãs, jias e caçotes dos brejos do Tanquinho; e o canto rouco de um galo garnizé, no quintal de dona Maroca. 

Acho que ainda reconheço os repiques dos sinos da matriz de Santo Antonio e Almas. Não sei ainda tocam, ou se pelo menos ainda existem. Assisti à unção desses sinos com o óleo dos catecúmenos. 

Em 1963, aos nove anos, acompanhei com sentimento a morte do Papa João XXIII, através dos repiques dos sinos da matriz em Itabaiana, que tocaram interruptamente na reta final do Pontífice. Era o fim do império da igreja romana. 

A minha memória também guardou (não sei até quando) os sons dos chocalhos das cabras, das matracas, dos ruídos dos carros de bois, das cigarras na quaresma, dos latidos e mugidos, dos grilos, dos trovões, dos berros dos jumentos, dos aboios, dos cânticos das procissões, das cantigas das lavadeiras do açude velho, das dobradiças das cancelas, das lamentações das vias sacras e das gatas no cio. 

Lembro-me do timbre do som da bigorna do ferreiro Bernardino, meu bisavô. Aliás, bigorna centenária que ainda vive. Tá lá, nas Flechas...

Minha relação com o som não se limitou as palavras, forma mais evidente de se expressar os pensamentos. Curioso, Deus criou a luz, antes eram trevas. Faça-se a luz, e a luz se fez. Porém não há registros de ter criado o som. Parece que o som já existia. No princípio era o verbo, e o verbo era o próprio Deus.

O som é anterior a luz, na cosmogonia cristã. Os deuses egípcios nasceram do som, acatando o convite do deus Atum-Ré. Tupã, o deus dos Tupinambás, era o trovão. O profeta Maomé só anotou o que ouviu do anjo Gabriel, enquanto meditava. Não bastava ver, ele precisou ouvir. 

Todos os povos primitivos dançavam e cantavam. A música deve ser anterior ao Homo sapiens. Quem fotografa pássaros guia-se pelo alarido, pelos sons dos cantos, e a visão vem depois. Não se enxerga os pássaros olhando-os, mas ouvindo-os. Quem é peregrino sabe disso.

Durante as noites no sítio do meu avô, nas Flechas, ouvíamos o silêncio. Depois que se rezava o terço, a ordem era dormir. Para mim sobrava uma rede no corredor. Logo cedo me acordavam, pois, as cordas que armavam a minha rede eram as mesmas que amarravam os pés das vacas para se tirar o leite. Foi ensinado a identificar o canto de cada pássaro, mas já esqueci da maioria.

Segundo Breton, “a palavra da mãe é o primeiro som a introduzir a criança já “in útero” no universo humano, carregada de afetividade, de significação. O feto mergulha no líquido amniótico e sente os seus odores, ele prova dos movimentos de sua mãe, está em permanente audição de seu coração, ouve igualmente a sua voz e a de seus próximos.” Depois as cantigas de ninar darão novos tons. 

O barulho é uma patologia do som. A sonoridade das festas de São João, seu fogos e foguetórios sempre me incomodaram. Talvez, por isso, não suporto trio-elétrico, charangas e batucadas. 

Júlio Cesar, 44 a.C., proibiu a circulação de carruagens em Roma, entre o pôr do sol e aurora, por conta da zoada. Ele estava certo! Jusué, filho de Num, derrubou as muralhas de Jericó com o som das trombetas.

A música é o som matematicamente harmonizado. O som se manifesta na política por aplausos e vaias, e o escracho se manifesta com o porrote.

Antonio Samarone.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

NOVAS DOENÇAS



NOVAS DOENÇAS (por Antonio Samarone)

A Organização Mundial da Saúde está elaborando um novo Código Internacional das Doenças, o CID-11. O novo documento entrará em vigor em primeiro de janeiro de 2022. Por enquanto, ele está aberto a sugestões. Entre as novidades, me chamou a atenção a proposta de um grupo de psiquiatras neozelandeses, criando uma nova doença: o Transtorno da Personalidade Acadêmica (TPA).

Como quase tudo, as doenças também surgem e desaparecem. Ainda não se sabe se Transtorno da Personalidade Acadêmica (TPA) é distúrbio da sensopercepção, da consciência, do juízo ou do pensamento, ou uma grande síndrome que engloba um pouco de cada.

O TPA é muito frequente em professores universitários, que acabaram de concluir a pós-graduação, os autodenominados “professores/doutores”. O principal sintoma é uma fantasia imaginativa, uma profunda distância entre o que eles pensam que sabem, e o que realmente conhecem. O desconhecido é enfrentado com a divinização de um suposto saber científico.

No geral, as teses defendidas por esses professores portadores do TPA são irrelevantes, meras formalidades. São trabalhos com pouca ou nenhuma importância científica, que dormirão sem consulta em alguma gaveta. Entretanto, são bem-sucedidos na carreira acadêmica, onde, via de regra, prevalecem as aparências.

Os portadores de TPA possuem uma percepção deformada da realidade, são resistentes a argumentações e evidências em contrário. Uma certeza definitiva em suas ilusões. São geralmente arrogantes e irascíveis. A hipótese é que tais alterações possam estar relacionadas a três neurotransmissores: a dopamina, a serotonina e a acetilcolina.

A nova doença (TPA) afeta profundamente o pensamento. São frequentes a desintegração dos conceitos, o embotamento do raciocínio e uma leve alteração do juízo. Em alguns casos, mais raros, apresentam um delírio de sabedoria. O paciente acredita dominar cientificamente certos conteúdos, motivado pelo desejo de poder e fama, completamente dissociado do pensamento crítico. Uma alienação conveniente e às vezes lucrativa.

Eu me abstenho de opinar sobre essa nova doença. A definição do normal e do patológico em saúde mental é controversa. A proposta dos psiquiatras neozelandeses pode não ser aceita por absoluta falta de interesse da indústria farmacêutica. Esse transtorno é incurável, não existe remédio.

A primeira condição para qualquer tratamento é que o paciente reconheça o problema, e que isso lhe cause algum sofrimento. No caso do Transtorno da Personalidade Acadêmica (TPA), o portador tem a anomalia como uma virtude, um mérito, uma capacitação que lhe custou horas de estudos, e que alimenta generosamente a sua autoestima.

Vamos aguardar a publicação do CID-11 definitivo, para sabermos qual será a decisão da Organização Mundial da Saúde.

Antonio Samarone.

MEDICINA DA FLORESTA


Medicina da Floresta (por Antonio Samarone). 

“Um conhecido ditado indígena usa dois lobos como metáfora para descrever os conflitos internos de todo ser humano. Um é o lobo do ódio, o outro do amor. Ambos disputam o poder sobre mim, diz a passagem. E quando me perguntam qual é o lobo vencedor, respondo: Aquele que eu alimento.”

Em 1930, Raimundo Irineu Serra (mestre Irineu) fundou o Santo Daime. Primeira religião brasileira a fazer uso do chá de ayahuasca fora do contexto indígena. Em 1943, o cientista suíço Albert Hoffman sintetizou o LSD. Nascia para o mundo as substâncias psicodélicas. Não confundam nem com os psicotrópicos, nem com os narcóticos.

Em 1969, o mundo assistiu espantado o Festival de Woodstock, movido com os psicodélicos. A consciência expandida, permitindo surfar em ondas sonoras e mirações psicodélicas de mandalas, fractais e luzes coloridas, tornou-se uma novidade. Em 1971, o presidente Nixon proibiu o uso dos psicodélicos e as pesquisas médicas sobre essas as substâncias. Nasceu aqui o movimento americano da contra-cultura.

Entre as substâncias psicodélicas, uma é brasileira. O Chá indígena ayahuasca, feito com a planta chacrona e o cipó jagube (mariri). A ayahuasca possuí um princípio ativo chamado dimetiltriptamina (DMT), que vem sendo estudado para o tratamento de transtornos mentais, como ansiedade, depressão e dependência química.

A professora Fernanda Palhano, publicou um estudo na revista “Psychological Medicine” sobre o efeito antidepressivo da ayahuasca, em pacientes com depressão profunda e que não respondem ao tratamento convencional.

Nas folhas da chacrona, um arbusto da família Rubiaceae, (Psychotria viridis), encontra-se um derivado triptamínico a N,N-dimetiltriptamina (DMT), agonista não seletivo dos receptores de serotonina, e cuja ação no receptor 5-HT2A promove os efeitos cognitivos e sensoriais da bebida, referida por alguns usuários como miração.

O cipó mariri, da família Malpighiaceae, (Banisteriopsis caapi), contém as β-carbolinas harmina, harmalina e tetrahidroharmina, que são alcaloides inibidores da monamino-oxidase (IMAO), enzima responsável pela degradação da serotonina.

A ayahuasca é uma combinação perfeita entre estas duas plantas que agem sinergicamente. O DMT seria rapidamente inativado pelas IMAOs presentes no fígado e intestino caso não houvesse a presença das β-carbolinas.

A Ayahuasca é um chá obtido, geralmente, através da decocção de duas espécies vegetais endêmicas da floresta amazônica: um cipó da família Malpighiaceae, Banisteriopsis caapi, que contém derivados beta-carbolínicos: harmina, harmalina e tetrahidroharmina; e um arbusto da família Rubiaceae, Psychotria viridis, que contém um derivado triptamínico a N,N-dimetiltriptamina (DMT).

As pesquisas com substâncias psicodélicas como ayahuasca (dimetiltriptamina), o LSD (ácido lisérgico), o ecstasy - MDMA (metilenodioximetanfetamina) e a psilocibina dos cogumelos, foram retomadas pela medicina. Em 2016, os Estados Unidos liberaram os estudos com o MDMA, no tratamento do estresse pós-traumático em veteranos de guerra e vítimas de abusos sexuais.

“O psiquiatra Luis Fernando Tófoli lembra dos estudos feitos com LSD pelo neurocientista Mendel Kaelen, do Imperial College London, que demonstram que a música funciona como o mapa da jornada a ser explorada durante a experiência psicodélica, evocando sensações de êxtase e transcendência. Tudo isso porque áreas que normalmente não se ligariam no cérebro passam a fazer conexões.”

"Substâncias psicodélicas como a ayahuasca têm um impacto enorme porque trazem soluções a sofrimentos psíquicos para os quais não existem respostas na psiquiatria tradicional, e nem creio que vá ter", afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro. De fato, a última grande novidade da psiquiatria foi a fluoxetina (Prozac), de 1986.

“Se as substâncias psicodélicas são tão eficientes assim, por que são tão marginalizadas? Para Sidarta Ribeiro, uma das respostas pode estar na falta de interesse da indústria farmacêutica. Essas substâncias vão agir a partir de uma, duas ou três doses, então não há um negócio da China aí. Quem vai ganhar dinheiro com isso não são as grandes farmacêuticas, mas sim, no máximo, alguns poucos terapeutas. Será que interessa para a indústria que as pessoas parem de se tratar com remédios diários?” Faz sentido!

Antonio Samarone 

MEDICINAS, CIÊNCIAS E NEGÓCIOS.


MEDICINAS, CIÊNCIAS e NEGÓCIOS. (por Antonio Samarone)

A medicina de negócios, desumanizada, conduzida pelo lucro, esconde-se sob uma capa cientifica, quando, em parte, não tem ciência nenhuma. As pesquisas, as experimentações, os ensaios clínicos, as publicações, os congressos, via de regra, são financiados pela poderosa indústria farmacêutica. Tornou-se um negócio de interessados.

A assistência à saúde se transformou numa atividade econômica de grande peso na economia. No Brasil, ela representa cerca de 10% do PIB.

O mercado médico é formado pelo complexo industrial de produção de medicamentos, insumos e equipamentos; e pelo capital financeiro, que comanda os planos de saúde e a rede de serviços (hospitais, clínicas, farmácias e laboratórios).

As escolas de medicina reproduzem esse modelo, centrado na lógica do mercado. Aliás, as escolas formam o médico para o mercado. Nessa mudança, o serviço médico foi transformado em mercadoria.

O cuidado médico foi esquartejado em milhares de procedimentos, impessoais, padronizados, visando apenas realizar o seu valor de troca, próprio das mercadorias. O cuidado virou procedimento, para viabilizar a produtividade e o lucro. As mercadorias não comportam subjetividades, precisam ser padronizadas, contabilizadas e pagas.

A medicina artesanal do século XX, centrada no valor de uso, na relação médico paciente, na autonomia do médico, fundada na clínica, foi suplantada por uma medicina de negócios, fundada no lucro e na tecnologia, onde o médico perdeu o protagonismo.

A desumanização da medicina é inerente a essa transformação do trabalho médico em mercadoria. Não é uma questão de caráter do médico, nem de opção pessoal! Os médicos mais novos não são nem piores, nem melhores, que os médicos antigos. Apenas exercem a medicina numa realidade de mercado.

O mercado procura esvaziar o papel do médico, que perdeu a autonomia, passando a guiar-se por diretrizes e protocolos, dentro do modelo de produção de procedimentos, a forma que a mercadoria tomou nos serviços de saúde.

A medicina é uma profissão milenar, conceituada na sociedade. Os médicos são profissionais regrados pela autoestima. Não está sendo fácil para o mercado submeter os médicos a lógica do lucro. As resistências se manifestam.

O médico protege a sua prática e a sua consciência com a capa do discurso científico. As atitudes, as decisões, as condutas, os comportamentos são justificados como obediência a uma racionalidade científica. Os médicos acreditam que exercem uma medicina voltada para a ciência, e que fazem parte de uma comunidade científica.

Os cursos de medicina trabalham pouco a iniciação científica. Pouco é ensinado sobre a produção científica. A ciência é o método, mas o pensamento crítico perdeu espaço na formação médica. A ciência geralmente é assimilada como uma nova religião, que exige dos seguidores apenas a fé.

Toda certeza médica precisa vir acompanhada do jargão: “segundo pesquisas” (segundo o evangelho de São João), isso é assim ou assado. Que pesquisas, feitas por quem e como, qual a metodologia utilizada, quem financiou, quem divulgou? Nada! Precisamos apenas confiar. A ciência funciona mais como discurso de legitimação ideológica.

Mas é assim, porque é assim que o mercado precisa. Não estou simplificando, apenas facilitando o entendimento. A mercadoria para realizar o seu valor de troca, não precisa do pensamento crítico. Precisa de vendedores e consumidores, de prestadores de serviços socialmente legitimados.

Os médicos reagem a medicina de negócios: uns aceitam e defendem como um avanço; outros são indiferentes; tem os que ainda praticam a medicina artesanal humanizada; e os que não aceitam e resistem das mais variadas formas.

Nada foi consumado! Está em andamento um processo de transformação profunda da prática médica, sem ponto de chegada conhecido.

Está em curso a desumanização do homem e a humanização da tecnologia. O fetiche das mercadorias. A automação robótica, os aplicativos, as telemedicinas e a inteligência artificial estão por perto.

Do que foi dito, só uma certeza: as pessoas saíram da condição de pacientes para a de consumidores, clientes, usuários, segurados, não contribuintes (NC), indigentes, SUS dependentes, ou mais uma dezena de denominações.

E parece que essa mudança não agradou. As pessoas, em sua maioria, ainda preferem o médico antigo.

Antonio Samarone.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A FLOR DA PELE


A flor da pele. (por Antonio Samarone)

Resende é um sobrevivente do Leprosário Lourenço Magalhães, em Aracaju. O leprosário acabou há muito tempo. Resende mora afastado, na zona de expansão. Senti no cumprimento que ele não quis me estender a mão, como se dissesse, o senhor não sabe que eu fui leproso. Eu avancei sobre a sua mão e dei-lhe um abraço, para dizê-lo, eu sei, e isso não tem a menor importância.

Depois da aproximação, de algumas perguntas irrelevantes, quis saber como era a sua vida, se ele era feliz, como convivia com as sequelas da lepra por tanto tempo. Resende levou a prosa para um campo inusitado. Meu amigo é possível ser cego, surdo, perde-se o olfato e o gosto sem desistir da vida; mas sem o tato, perde-se a autonomia, a vida pessoal cessa. A lepra me deixou com a casca grossa.

A subtração do tato é a privação do gozo do mundo, a sua extinção é a morte, continuou Resende. A minha pele perdeu o tato, o verme da lepra corroeu. Eu não sinto nem o quente, nem o frio; nem a dor, nem o prazer, em quase metade do corpo. Para mim, disse Resende, tanto faz banho quente como banho frio.

Eu tinha esquecido, a pele é o maior órgão do corpo humano. O tato está espalhado pelo corpo, emana da totalidade da pele. É ele que nos liga ao mundo, o sentimento de estarmos com os pés no chão. O tato nos permite o contato com o outro e com as coisas. O tato é coisa do corpo, longe da alma.

Seu Resende sabia muito sobre o tato, pois lhe faltava. Não basta ver as coisas, é preciso tocá-las. Se diz erroneamente que São Tomé precisou ver para crer, não foi bem assim, ele precisou tocar nas chagas de Cristo, colocar o dedo nas feridas.

Lembrei-lhe que de vez em quando o tato engana. O Velho Testamento conta uma história deliciosa:

Isaac já idoso, cego pela idade, queria abençoar Isaú, o seu filho mais velho. A esposa, Rebeca, preferia que o abençoado fosse Jacó, o filho mais novo. Como Isaú era peludo, para enganar o marido, Rebeca vestiu Jacó com o pelo de dois cabritos. Na hora da benção, o pai cego chamou Isaú para o reconhecimento. A mãe levou Jacó. Confiando no tato, Isaac apalpou Jacó, e perguntou-lhe: tu és mesmo Isaú, Jacó confirmou. O velho Isaac ficou em dúvidas, a fala é de Jacó, mas a pele é de Esaú; e eu confio mais em meu tato. E abençoou Jacó erradamente, como se fosse Isaú.

E o Velho Testamento ignorou o erro. Nunca houve reparação. O Deus ficou até hoje de Abrahão, de Isaac e de Jacó. O pobre do Isaú foi o grande injustiçado, por falta de tato do velho pai.

Resende encerou o papo com uma história deliciosa. Eu sou do interior de Campo do Brito. Me criei no povoado Murginga, onde o toque, o cafuné era uma prática corriqueira. Nosso tato era afiadíssimo. Sentávamos no chão da varanda, na sombra e na fresca, e passávamos a tarde catando piolhos uns nos outros. Era delicioso, pouco importava se achávamos ou não os piolhos. Era uma forma disfarçada de ternura e carinho através do tato.

A conversa parou por aqui.

Antonio Samarone.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

A VOLTA DO ELETROCHOQUE, COMO POLÍTICA PÚBLICA.



A volta do eletrochoque, como política pública. (por Antônio Samarone)

O Ministério da Saúde acabou de publicar a “nota técnica 11/2019” definindo a política de Saúde Mental. As duas maiores barbaridades: autorizou o internamento de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos; e legitimou o choque elétrico como tratamento na rede pública, isso mesmo, a chamada eufemisticamente eletroconvulsoterapia.  

Sobre o internamento de crianças em hospitais psiquiátricos, falaremos depois. Vamos ao eletrochoque. Eu sei que a Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação Médica Brasileira defendem essa prática, chegando a publicar as “diretrizes terapêuticas para eletroconvulsoterapia”. Nenhuma novidade, sempre defenderam.

O Governo passou a financiar a compra de equipamentos de Eletroconvulsoterapia (ECT). Claro, os hospitais vão comprar e generalizar o seu uso em pouco tempo. Eu também sei que o uso do choque elétrico como tratamento tem defensores. Justificam-se dizendo que o choque mudou, agora é aplicado cuidadosamente, com o paciente protegido. Segundo, que o choque elétrico tem eficácia “cientificamente” comprovada, em certos casos. Não é bem assim...

De onde vem a ideia de se usar o choque elétrico para tratar a loucura? Na década de 1920, se verificou que os pacientes epilépticos, após os surtos convulsivos, melhoravam dos sintomas psicóticos. Os pacientes agitados, em crise, se acalmavam após as convulsões. A medicina concluiu: a convulsão é benéfica no tratamento dos doentes mentais. As drogas convulsivantes viraram remédios para a loucura. A primeira droga e a mais usada foi o metrazol. Só que essa convulsão induzida quimicamente apresentava efeitos colaterais tenebrosos.

Em 1930, o neurocirurgião italiano, Ugo Cerletti, induziu surtos convulsivos em cachorros aplicando choque elétrico na cabeça. Em 1938, Cerletti associou-se ao colega Luciano Bini, para construírem um aparelho de aplicação do choque elétrico em humanos. Nascia o eletrochoque! Foi uma novidade, a convulsão nos pacientes psicóticos passou ser induzida por meios físicos.

O método se espalhou pelo mundo, passando ter grande aceitação. O eletrochoque virou uma panaceias. Em Sergipe, na década de 1950, o Dr. Garcia Moreno anunciou nos jornais a aquisição de um moderno aparelho de eletrochoque, e que estava à disposição da clientela em seu consultório.

Na década de 1970, quase todos pacientes internados no Adauto Botelho, em Aracaju, submetiam-se ao terrível suplício. Era uma política de governo. O suposto tratamento depois virou punição: pacientes agitados, indisciplinados, desobedientes corriam o risco de uma sessão de eletrochoque.

O isolamento em cubículos, a lobotomia e o choque elétrico eram os elementos do terror nos manicômios psiquiátricos. Após várias denúncias de maus tratos aos pacientes, os métodos foram suspensos. Contudo, o eletrochoque nunca deixou de existir, continuou semi clandestino, usado em casos isolados. Houve a luta anti manicomial, a reforma psiquiátrica, e o método caiu desgraça na opinião pública. O uso passou a ser restrito a algumas indicações.

Agora, o Governo anunciou que vai financiar a medicina de negócios, estimulando a instalação de aparelhos de eletrochoques em hospitais e clínicas. O método voltou a ser prioridade na política de saúde mental. Infelizmente, vivemos um momento de apatia social. Não haverá reações! Em todo caso, faço aqui a minha inscrição: se houver resistência, estarei presente.

Que o choque elétrico seja indicado em casos refratários isolados é uma coisa; que volte a ser usado massivamente, como política de governo, é outra. São situações totalmente distintas. Eu discordo dos dois usos! Entretanto, no primeiro caso, as razões de quem usa são defensáveis; no segundo, trata-se de uma forma de controle social, eticamente inaceitável.

Antônio Samarone.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

SÓ DEUS É GRANDE


Só Deus é grande. (por Antônio Samarone)

Encontrei Seu Bento de Zé de Sá Joaninha contrariado. Chegou um padre novo em Itabaiana dizendo não acreditar em milagres. Seu Bento se azedou! Ele, devoto de Santo Antônio, nascido e criado na Sambaíba, passou a vida vendo milagres. Sempre obteve as graças de Deus, com as promessas, e as ajudas dos santos. Como não acreditar em milagres? Esse padre é doido! Os milagres estão por todos os cantos.

Bento só acredita no catolicismo penitencial. Ele não perde novenas, ofícios, benditos, santas missões, trezenas, jejuns, penitências, procissões, terços, romarias e vias sacras. “O cristão é um peregrino em busca da porta estreita do céu”, sentenciou ele. Acho que os padres sem batina perderam a autoridade. No fundo, quem faz o monge é o hábito! Perderam o temor de Deus. A culpa é da igreja! Mudou tudo. Eu procurei esse padre novo, para pedi-lo penitências, daquelas bem sofridas. Ele fez de conta que não me ouviu.

Bento nunca perdeu a encenação da Paixão de Cristo na Cajaíba, em Itabaiana. E vai paramentado, como se fosse um dos apóstolos.

O bisavô de Bento morreu em Canudos. Como herança, a família carregou consigo um manuscrito com os sermões do Conselheiro. Perguntei-lhe se eu podia ver a relíquia. Meu amigo, eu não sei onde botei, se achá-la, está em suas mãos. Fiquei curioso...

“Todos somos forasteiros, o céu é a nossa pátria.” Não sei de onde ele tirou isso, mas não perguntei, deixei ele falar. “Não se engane, o fim do mundo está próximo! Nunca mais teve uma santa-missão em Itabaiana. O anticristo já nasceu, e pode ser qualquer um. Ele vem disfarçado.” Eu comecei a suspeitar de uma meia dúzia de mal-assombrados que conheço.

Eu sigo um pouco as pregações de Conselheiro, me disse Bento: não como carne na quaresma. Outra coisa, o Beato ensinava que só podia comungar quem passasse por uma boa confissão, hoje os padres dão a hóstia até aos hereges. A coisa mais difícil é encontrar um padre desocupado para uma confissão. Não está certo. De tanto procurar, já desisti.

Deus governa o mundo, disse-me Bento. Só existem três leis: a da natureza, dada a Adão; a escrita, dada a Moisés; e a da graça, dada a Jesus Cristo. Deus governa agora com amor, e cita uma passagem dos sermões do Conselheiro: o sangue do meu filho não me pede vingança, como o de Abel; ele me pede misericórdia e compaixão. Mas a justiça e a ira santa terão o seu tempo. Deus é paciente, porquê é eterno! Não tive dúvidas, Bento leu os manuscritos.

Somos pó, profetizou Bento. E citou-me de memória uma longa passagem dos sermões do Conselheiro:

Permitiu Deus que a vida do homem fosse breve, para ele nem com a riqueza se ensoberbasse, vendo o pouco tempo que as havia de gozar; nem com as adversidades perdesse o ânimo, vendo que em breve havia de acabar. Os dias do homem se desvanecem como sombras e seca como as ervas. O mundo é uma passagem, um desterro, um lugar de sofrimento e resignação.

Prosseguiu Bento, citando Conselheiro: Quando Nosso Senhor vier a julgar todos os homens, dos bens e males que fizeram em sua vida, não haverá mais tempo, tudo será eternidade. O sertão vira mar, e o mar vira sertão.

A conversa ia e conversa vinha, e eu com pressa de voltar para Aracaju. Tentei concluir: valeu meu amigo, vou lhe procurar para ver o manuscrito. Ele se fez de surdo. Só mais duas coisas, insistiu Bento, estamos nos fins dos tempos, e o Conselheiro foi um homem santo. Eu cá comigo, o mundo tá só começando! Mas sobre a santidade do Conselheiro, Papa Francisco bem que poderia botá-lo no mesmo lote de avaliação do meu padim Padre Cícero.

Antônio Samarone.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

MAMÃE NÃO QUER OBEDECER



Mamãe não quer obedecer... (por Antonio Samarone).

Encontrei com Rosana, uma amiga de infância, e perguntei como andava a sua mãe. Ela, com o ar impaciente, me respondeu: minha não tem jeito, já está com 79 anos, e não quer ir aos médicos. Pensa que ainda é menina. Ela não sente nada, dorme e come bem (não abre mão da carne frita, aos sábados); e ainda faz a feira sozinha, em Itabaiana. Anda para cima e para baixo, e continua alegre e conversadeira. Já quis trazê-la para Aracaju, e ela não quis nem saber.

Eu não me controlei, e você quer leva-la aos médicos para que? Hum! Para quê? Para fazer um check-up. Ela não lembra mais nem o dia que papai morreu, começou a ficar esquecida. Você sabe que as demências podem ser evitadas, ou pelo menos adiadas. 

Rosana aprofundou a conversa. Argumentei com mamãe, vamos a um geriatra que a senhora está ficando esquecida. Hoje eles fazem uns exercícios para a memória que são maravilhosos. É a ciência, mamãe! Dona Lúcia, retrucou: “mas o esquecimento faz parte da vida, Deus sabe o que faz. Tem muita coisa que eu preciso esquecer, muitos sofrimentos impostos pela velhice que eu preciso não prestar muita a atenção. A felicidade tem os seus segredos.”

Rosana, sua mãe tem razão! Os Serviços de Saúde no Brasil não estão preparados para atender os idosos. São raros os profissionais com formação holística e humanizados. E fui em frente... 

A medicina tem pouco a oferecer, e o que oferece cobra um preço inaceitável. A condição imposta pela medicina é um regramento absoluto: isso não pode, isso não pode e isso também não pode. Viver ficará resumido ao cumprimento da disciplina médica. Se não bastasse, teremos ainda que engolir uma dezena de comprimidos, tem até uma caixinha com os horários. Os idosos consomem 80% dos medicamentos produzidos. Nas proximidades da morte, sobrará um leito de hospital, para os que podem pagar.

Envelhecer é um exercício de desapegos, mas de duas coisas não se pode abrir mão: independência e autonomia. Exatamente as duas coisas que a sociedade quer suprimir. Todo mundo quer mandar nos idosos, a começar pelos filhos, mesmo os bons. É uma atenção cheia de cobranças impacientes.

Rosana silenciou. Não sei se concordando comigo ou para não discutir. 

Antonio Samarone.

O CHEIRO DAS DOENÇAS


O cheiro das doenças. (por Antonio Samarone).

Em minha viagem pelos cheiros, duas constatações. Primeira, o cheiro é individual, como a impressão digital, cada um tem o seu. A especificidade genética se expressa também no cheiro. Segunda, as doenças têm cheiros. 

A medicina antiga diagnosticava com a ajuda do olfato. Avicena aconselhava aos médicos a exercitar bem o seu faro. Segundo ele, o odor da urina do seu paciente revela a sua patologia. No final do século XIX, o diagnóstico olfativo perdeu a sua ascendência.

No fundo, trata-se de um mesmo princípio: o cheiro específico de cada um se modifica com as doenças. As afecções possuem odores próprios, que se misturam com o odor do doente. Como não exercitamos o nosso olfato, não percebemos.

Não falo das doenças externas, dos abcessos, fistulas, feridas e perebas; nem do odor das carnes deterioradas do câncer no maxilar de Freud. Não falo do hálito cetônico dos diabéticos, nem do hálito urêmico dos renais crônicos, com cheiro de peixe; não, não trato disso. Isso qualquer recém-formado em medicina sabe.

A novidade é que as doenças possuem cheiros, mesmo aquelas em que os olfatos destreinados nada percebam. Trata-se de identificar os estados psicológicos dos pacientes pela linguagem dos odores. A competência olfativa do médico permite uma forte intuição sobre o estado de saúde dos seus assistidos.

Claro, fiquei em dúvida sobre essa importância do olfato na medicina, como afirmava os antigos. Sair perguntando. Fiz a mesma pergunta a vários especialistas: você consegue suspeitar um diagnóstico pelo cheiro? As doenças possuem Cheiros? A pergunta causou espanto a maioria, e as resposta foram genéricas e vagas.

Kraepelin, psiquiatra alemão, acreditava que a esquizofrenia possuía um cheiro próprio. Procurei um velho psiquiatra sergipano, um erudito em medicina, e perguntei-lhe: a esquizofrenia tem cheiro? Ele me contou uma história:

“Trabalhei muito tempo em hospitais públicos, com precárias condições de higiene dos ambientes e das pessoas, sempre senti um cheiro diferente junto aos esquizofrênicos. No interior de São Paulo, trabalhei num hospital totalmente higienizado, tudo limpo, entretanto, quando ia atender um esquizofrênico, a minha memória olfativa identificava o mesmo cheiro. Não tenho dúvidas, a esquizofrenia tem cheiro.”

O encanto com a medicina científica monopolizou os saberes. Mesmo assim, vários princípios da medicina hipocrática retornam timidamente. Por exemplo: a medicina grega acreditava na cura natural (vis medicatrix naturae), que as doenças evoluíam para a cura, e que a função do médico era não atrapalhar.

O médico sensato, na visão hipocrática, não se avexava, assumia uma posição expectante. Existe um movimento mundial (slow medicine), que restabelece, em parte, esse princípio.

A medicina hipocrática era holística, defendia que a doença era um desequilíbrio do homem consigo mesmo, com a família, com o meio ambiente, com a sociedade e com o cosmo. Alguma dúvida? O movimento das marés e as fases da lua interferiam com o andar de várias doenças. Que nos digam os lunáticos.

Nessa volta ao passado, na Inglaterra, o National Health Service (NHS), o serviço público de saúde mais antigo do mundo, aprovou o uso de cães treinados na identificação do câncer, pelo faro, na triagem dos pacientes. Um “pet scan” natural, mais barato e sem exposição às radiações ionizantes. Os cães treinados podem detectar câncer de próstata na urina em 93% dos casos. O teste Antígeno Específico da Próstata (PSA), tem uma alta taxa de "falsos positivos".

A Dra Claire Guest, co-fundadora da Medical Detection Dogs, percebeu que ela tinha câncer de mama depois que seu cachorro, Daisy, começou a cutucar uma área do seu peito que parecia machucada. Testes mais tarde revelaram que ela tinha dois tumores.

A ciência começa a demonstrar o que a medicina antiga afirmava: as doenças possuem cheiro, mesmo que o olfato humano não perceba.

Para se evitar mal-entendidos, o faro dos cães não substitui os demais exames e recursos usados pela medicina em seus diagnósticos dos cânceres, nem de outras doenças; apenas comprova que através do olfato, se pode suspeitar de várias patologias.

Antonio Samarone.

AS VENTAS E AS VENTOSIDADES


As Ventas e as Ventosidades. (por Antonio Samarone)
Entre os sentidos, o olfato é o mais desprestigiado. Tido como um sentido animal, tosco, inferior. Apesar de se possuir um nariz apurado, um bom faro, tenha lá as suas vantagens. O papel do odor, do cheiro e do fedor das pessoas e das coisas passam despercebidos. Já existem provas que o cheiro de cada um é único, específico, e que os cegos desenvolvem o olfato a ponto de reconhecer as pessoas pelo cheiro.
A importância do olfato só é sentida quando se perde. Lembro-me do desespero de Seu Germano, um paneleiro de Itabaiana, que teve anosmia temporária (perda do olfato), pela destruição das papilas olfativas, em decorrência do peido de um saruê (gambá), na tábua da venta.
O cheiro (perfume) é um item fundamental na sedução amorosa. No século XVIII, na Inglaterra, existia uma lei que punia as mulheres que atraíssem, seduzissem, ou levassem traiçoeiramente às núpcias um cidadão britânico, valendo-se de perfumes, maquiagem ou loções cosméticas. Aqui em Aracaju, eu acompanhei a campanha de certo candidato a prefeito, que para atrair o eleitorado, no corpo a corpo, a cada meia hora, aspergia perfume no corpo, atenuando o mau cheiro do suor dessas ocasiões.
“Perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo”, diz a mulher adultera dos Provérbios (7,17). O Profeta Maomé adorava três coisas: as mulheres, as crianças e os perfumes.
O homem é um animal malcheiroso, catinguento. O suor, o bafo, a urina, o sovaco, o chulé, as secreções sebáceas, a caspa, o esperma, o peido, o arroto, os excrementos, exalamos podridões por todos orifícios e poros. Com um detalhe, só quem fede é o outro. O corpo precisa ser higienizado com frequência, para se tornar suportável.
As doenças e a morte têm os seus cheiros. Avicena aconselhava aos médicos a exercitar bem o seu faro. Freud, afetado por um câncer no maxilar, sofreu ao ver o seu cachorro volta-lhe as costas, por causa do odor que emana de suas carnes deterioradas.
Modernamente, conferirmos o cheiro alheio, com aqueles dois beijinhos na face, quando nos encontramos. O ranço do desodorante vencido e o fedor de boca (halitose), são sempre conferidos.
Os lugares, os fatos, os bichos e as coisas têm os seus cheiros. A terra molhada, o café torrando, os alimentos, a manga rosa, a carocha, o carro novo, os mangues, os peixes, as rosas, o fumo, o mar, o caxixe, a cebola, os vinhos e a praia formosa, em Aracaju. Essa última, cheira a ovo podre!
O Beco Novo tinha cheiro. Quando se assava tripa, se sabia qual era o cardápio do sujeito naquele dia. O cuscuz cheirava quando estava pronto. O beco novo não tinha rede de esgoto, e poucas casas possuíam latrinas. Na escola de Dona Helena, as necessidades eram feitas no mata-pasto. A cocada-puxa de Dona Rosita, o arroz-doce de Dona Marinete, o manauê de puba de Dona Gemelice e os pasteis de Birunga tinham cheiros. As rezas de Seu Mané Barraca tinham cheiro.
“Isso não está me cheirando bem”, se diz sobre os fatos desagradáveis.
As missas tinham cheiro. O Vaticano II acabou com o uso do incenso nas missas. Tirou o encanto. Está gravado em minha memória olfativa, a passagem do coroinha balançando o turíbulo, borrifando uma fumaça cheirosa sobre os fiéis e os infiéis. Os Reis Magos levaram de presente a Cristo, ouro, incenso e mirra. Em Itabaiana até o padre tinha cheiro, era o Bode Cheiroso.
Se um cheiro é bom ou mau é apreendido. São os valores culturais que cheiram ou fedem. As crianças não têm repulsa pela urina, nem pelas fezes. Elas adoram cheirá-las, brincar ou divertir-se com elas. Se deixar, levam à boca. As crianças evocam o pum, não escondem. Os excrementos não possuem mau cheiro para quem os produz.
Vamos parar por aqui, para que não comece a cheirar mau.
Antonio Samarone.