sábado, 30 de setembro de 2023

DOCES E ESPECIARIAS


Doces e Especiarias.
(por Antonio Samarone)

Em 1497, a frota de Vasco da Gama zarpou para a Índia, em busca de especiarias. A frota voltou carregada de Pimenta do Reino, cravo, canela, gengibre, gergelim e noz moscada.

O amendoim (mandu'wi, mendubi) e a mandioca são nativos do Brasil. Os ingredientes estavam prontos. Itabaiana misturou e inventou a “espeça”, para os mais sofisticados, a “espécie”.

O uso do amendoim no Brasil foi descrito em 1587, por Gabriel Soares de Souza. Uma curiosidade: só as mulheres plantavam e colhiam os amendoins.

Gente, “espeça” não é paçoca. Essa última é mineira. A “espeça” é uma cocada de amendoim e especiarias, inventada em Itabaiana. Sei que vão dizer: “em minha terra também tem “espeça”. Entendo! Ou levaram a receita do Agreste ou é outro doce parecido.

Em São Cristóvão, as freiras portuguesas inventaram a queijada. Itabaiana criou a “espeça”. São tipos especiais de cocadas.

Os doces típicos de Itabaiana são a “espeça” e o “tijolo” (uma cocada a base de raiz de imbuzeiros). Ouvi dizer que o tijolo vinha de Jeremoabo. Em Itabaiana não existem imbuzeiros.

O tijolo foi extinto e a “espeça” falsificada. Ainda existem, mas com outro sabor, outro aroma e outro gosto. Não é a “espeça” de minha memória.

A “espeça” foi o primeiro doce que eu pedi a mamãe. A “espeça” da bodega do Seu Floriano, na esquina das ruas de Macambira e da Pedreira.

Seu Floriano era um velho de bigode branco e uma cigarro Astória no canto da boca. Nunca se sabia se o cigarro estava aceso ou apagado. Ele era o distribuidor do melhor charuto da cidade.

Depois de 50 anos, retornei a Itabaiana para trabalhar com a Cultura. Passei a procurar se ainda existia “espeça”, com o sabor de minha infância.

A doceria é cultura!

Eu saí procurando a "Espeça" com a receita original! Como saberei se são as verdadeiras? Simples, o paladar é eterno, nem o Alzheimer apaga. Lembro-me perfeitamente do cheiro e do gosto.

Finalmente, encontrei. Um amigo das Flechas me informou: “mamãe faz espeça das antigas.” Só usa amendoim dos pequenos, esmaga no pilão e acresce as especiarias. Não usa farinha.”

Resolvido: fiz a encomenda! Ontem fui buscá-las. A senhora não é doceira, não faz para vender. Fez por consideração. Ela não quis ser fotografada, muito menos filmada. Foi taxativa: “não gosto desses chamegos de redes sociais.”

O seu desejo será respeitado. Nada de fotos, nem de nome e endereço.

Quando abri o pacote de “espeça”, o cheiro antigo estimulou a minha salivação. Quando experimentei, caiu uma lágrima de alegria. Era aquele o sabor guardado em minha memória.

Sair espalhando a novidade. Distribuindo o doce e pedindo a opinião. E aí, o que acharam? Para minha surpresa, a imensa maioria não gostou. Desconheciam aquele sabor.

Disseram: “não tem gosto de “espeça”, deve ser outra coisa.”

Eles gostam das “espeças” atuais, esfarelentas, entupidas de farinha. Constatei que o sabor tem história, se transforma.

Gente, perdi!

O meu desejo de recuperar os doces antigos de Itabaiana não encontrou aliados. Virou uma esquisitice de velho, com um castigo adicional: a diabetes não permite que eu mate à vontade e coma sozinho a bacia de “espeça”.

Importante: Eu copiei a receita.

Antonio Samarone – Médico Sanitarista.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

HOMO ITABAIANENSIS


 “Homo itabaianensis”
(por Antonio Samarone)

Ainda rapazinho, ouvi uma palestra do intelectual Alberto Carvalho, sobre a singularidade do Itabaianense. Sobre quem era esse tipo específico? Todas Aldeias se acham especiais e únicas. De Paris ao Zanguê.

O carioca, o paulista, o baiano, aliás, todos se enxergam tipos genuínos, diferentes dos demais. Geralmente, melhores.
Não quero me meter na areia movediça da “sergipanidade”, se existe e o que seria.

Quem nos visita, acha Aracaju neutra, sem traços distintos, muito parecida com as cidade do interior de São Paulo. Organizada, bonita, mas com baixa nordestinidade. Claro, isso é polêmico.

A minha curiosidade é menor: existe o itabaianense, o papa cebola, um ser com traços culturais distintos? Um tipo único e diferenciado.

Na palestra de Alberto Carvalho, há mais de 40 anos, ele defendeu, usando a antropologia, que o Itabaianense carregava traços distintos e singulares. Essa singularidade foi forjada pelas lendas, pela Serra e pelos traços físicos. Claro, essa análise poderia ter sido feita pela sociologia, psicologia, história, literatura, e atualmente, pela inteligência artificial (que serve para quase tudo).

Mas Alberto usou a antropologia.

Na época, ele acentuou que as lendas, nos remetia as origens, com as minas de Belchior Dias Moreia e o bezerro de ouro. Um espírito de mineiros. Mesmo a globalização e a TV tendo esmagado as lendas locais, o pesquisador Wanderlei Menezes já identificou treze delas, em Itabaiana. Se aprendia sobre as lendas na infância.

A Serra era o outro condicionante. A montanha marca as personalidades. Segundo Alberto.

E quais seriam esses traços dos Itabaianenses, para Alberto Carvalho?

O primeiro e destacado traço é o bairrismo. Somos os únicos sergipanos que reafirmamos a nossa origem, com a boca cheia de orgulho: somos de Itabaiana. Concordam?

O segundo é a sagacidade para os negócios. O comercio de Itabaiana é imbatível, em Sergipe del’ Rey. Juramos ser herança judaica. Sendo ou não, se acredita. O Itabaianense é visto como hábil com o dinheiro.

Essa parte, eu não herdei. Sempre perco nos negócios.

Também atribuída a herança judaica, o Itabaianense possui um senso crítico acentuado, adoram a auto-gozação e as aparências modestas. Quem tem, não parece.

Alberto joga um balde de água fria em nossa ilusão batávica, de que somos descendentes de holandeses. Alberto discorda. O nosso branco sardão, cabelo de fogo, sarara, manga rosa, sardento é de origem ibérica.
Pode ser! Mas o moreno de olhos verdes, como meu pai, era a miscigenação do Preto com holandês.

Durante muito tempo, a presença negra em Itabaiana foi omitida. A história já revelou a presença de vários quilombos, voltados para a cerâmica, e mais recentemente, a produção de castanha assada.

Na Cultura, Alberto cita a força do teatro em Itabaiana. No Grupo Escolar Guilhermino Bezerra, a professora Anamira Cesar, na década de 1950, usava encenações teatrais como método didático.

Alberto cita a força do grupo teatral de Zé Bezerra, na década de 1940, no cinema de Zeca Mesquita.

Outro traço do Itabaianense citado por Alberto Carvalho, é a sua paixão pelo jogo. Aqui se aposta em tudo. Conta-se que um filho foi pedir a bênção ao pai, e ele respondeu: “Deus lhe dê sorte no jogo.”

Não sei dizer se Alberto Carvalho tem ou não razão. Ele era um observador profundo da alma Itabaianense.

São 40 anos dessa análise de Alberto Carvalho. Muita coisa mudou, inclusive o Itabaianense.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O TEATRO EM ITABAIANA


 O Teatro em Itabaiana.
(por Antonio Samarone).

O teatro vem de longe, da Grécia antiga, acompanha a civilização.

O Prefeito Adailton Souza, anunciou que irá construir um grande Teatro em Itabaiana. Foi uma satisfação popular. Entretanto, sempre aparece os cagas raivas. Um comerciante conhecido, me questionou: “para que Teatro, isso não faz parte de nossas tradições.”

Fui pesquisar. Quando começou o teatro em Itabaiana?

No final do século XIX, existem registros em Itabaiana, de uma representação teatral na Praça da Igreja, celebrando Conselheiro e a batalha final de Canudos. O cenários de guerra era montado com muito realismo. Não sei até quando durou.

Na década de 1920, junto com o cinema mudo, atividades teatrais foram frequentes. O primeiro cinema de Itabaiana, junto com o teatro, funcionou na esquina da Rua de Vitória com o Canto Escuro.

O cinema foi iniciativa de Zezé da Lagoa, o que está sentado com a esposa Dona Dulce e família ao fundo, nessa foto rara. O nosso primeiro cinema não foi o Popular, de Zeca Mesquita.

Depois funcionou no imóvel do antigo cinema de Zezé da Lagoa, o Tiro de Guerra. O imóvel passou para Firmino de Cândido. Atualmente o imóvel pertence à família do ex-líder político Chico de Miguel.

No sábado, 23 de setembro, iremos comemorar o centenário desse nosso teatro tradicional, no cinema mudo de Zezé da Lagoa, com uma apresentação do Imbuaça.

Na década de 1950, o teatro voltou a cena em Itabaiana, no cinema de Zeca Mesquita. O talentoso Zé Bezerra, aluno de Procópio Ferreira, filho de Tibério Bezerra e Dona Antonieta, dona da pensão, assombrou Itabaiana com a sua arte.

Zé Bezerra depois criou o “Circo Teatro José Bezerra. Foi nesse circo onde eu conheci o teatro, que se chamava drama. Zé Bezerra (ator e autor de peças) é o patrono do teatro em Itabaiana.

Ressalte-se que o teatro religioso é muito forte nos povoados. Na Cajaíba existe um anfiteatro em praça pública, com arquibancada para a plateia. Um coliseu rural. A Paixão de Cristo é encenada em outros povoados, com um realismo fantástico.

Na década de 1970, a Academia de Ana Angélica, irmã de Djalma Lobo, montou e encenou em Itabaiana, várias peças teatrais. Tudo documentado. Eu tenho as fotos. Lembro-me de Santo Antonio Fujão.

Em março de 2012, foi inaugurado um anfiteatro na Praça Chiara Lubich, com a peça “Flor de Macambira, com o Grupo de Ser tão Teatro, da Paraíba. O local tornou-se ponto tradicional de Cultura.

Nos últimos 20 anos, vários grupos amadores de teatro foram montados e desmontados.

Amanhã, sábado, as 16 horas, na Praça da Igreja, o grupo Imbuaça se apresenta, trazendo o palco para onde o teatro começou em Itabaiana, comemorando o centenário do Teatro de Zezé da Lagoa e acenando para novos tempos, a construção de um teatro, o primeiro do interior sergipano.

Não sei se fui claro. Não sei se o comerciante entendeu. Não quero polemizar. Itabaiana tem longa tradição teatral e a construção de um teatro é uma necessidade. O prefeito Adailton Souza, acertou.

“A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte.”

Antonio Samarone – Médico sanitarista.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

DA EXCOMUNHÃO À SANTO.

 


Da excomunhão à Santo.
(por Antonio Samarone).

A Expedição Serigy vai à Meca sertaneja. "Minha santa beata Mocinha, eu vim aqui, vir ver o meu Padim..."

Na segunda metade do Século XIX, o Vaticano reagiu ao iluminismo, endureceu as teses do Concílio de Trento e centralizou a doutrina.

O Concilio Vaticano I foi invadido a cavalo por Garibaldi. A Igreja perdeu vastos territórios, com a unificação italiana.

Foi nessa conjuntura, que nasceu nas brenhas do Ceará, em 24 de março de 1844, Cícero Romão Batista, filho de Joaquim Romão, descendente de sergipanos, que ocuparam o Cariri, cem anos antes, e de Dona Quinô.

O pai de Cícero morreu durante a epidemia de cólera, de 1862.

Cícero foi um menino influenciado pelas pregações do Padre Ibiapina. Cícero fez parte da primeira turma do Seminário de Fortaleza. Um seminário voltado para a recém-criada disciplina romana, o chamado ultramontanismo.

Era um freio nos catolicismos populares. A missa foi unificada no credo tridentino.

Cícero ordenou-se padre em 1870, aos 26 anos. Um padre que já nasceu rebelde, convencido da crença sertaneja.

Voltando ao Crato, Cícero teve um sonho com Cristo, que ordenou: Cícero, toma conta dessa gente. A Igreja não destinou a Cícero nenhuma Paróquia.

Somente no Natal de 1871, ele celebrou a sua primeira missa, na capela de Nossa das Dores, no ermo povoado de “Joaseiro”.

E foi ficando no Vilarejo. Mudou-se com a mãe e as irmãs para aquele oco do mundo, com 80 casas e 400 habitantes.

Cícero, com o seu pesado cajado, passou a enfrentar os valentões, os desordeiros e as mulheres perdidas. Qualquer arruaça acabava: “lá vem o padre!” Cícero seguia a doutrina de Ibiapina.

A grande seca de 1877, transformou o Sertão no inferno. A fome foi generalizada. A fúria divina era atribuída aos desregramentos e aos pecados daquela gente.

Em 1880, houve muita chuva, a fome foi reduzida. Em 1884, Cícero, aos 40 anos, concluía a nova Capela de Nossa Senhora das Dores. A sua fama de milagreiro crescia. Os devotos acreditavam que o Padre dormia em pé, visto por muitos.

Cicero enfrentou a fome com rezas, penitencias, romarias e caridade. O padre era um deles. Estimulou os ofícios, e doou terras nas encostas da Serra do Araripe, para os romeiros plantarem.

Ele próprio morava em casa humilde, modos franciscanos, hábito roto e sandálias furadas.

Cícero pregava aos camponeses do Araripe: “não toquem fogo nem na roça nem na catinga, não cacem mais e deixe os bichos viverem. Façam uma cisterna no oitão da casa e cavem um cacimba a cada cem metros.” Juazeiro era uma pequena Canudos.

Juazeiro crescia em torno da fé, com a chegada de romeiros atraídos pela salvação.

Em 1886 ocorreu um milagre. A beata Maria de Araújo, a mãe preta, lavadeira e cozinheira, uma pequena cafuza, coberta pelo véu, sentia o sangue de Cristo sempre que comungava. A beata falava com Jesus Cristo.

A Diocese de Fortaleza reagiu desmentindo. Cícero e os devotos de Juazeiro, não tinha dúvidas do fenômeno.

Essa discórdia colocou Cícero em confronto com o Santo Ofício. Uma longa polêmica. A Igreja proibiu o Padre Cícero de exercer as atividades eclesiais. Como era de se esperar, Juazeiro ficou ao lado do Padim. A verdade é filha do tempo.

O Santo Ofício não aceitou uma Santa, negra, pobre, uma beata do fim do mundo. A inquisição puniu o Padre Cícero, pelo milagre da beata Maria de Araújo. “A inquisição não falhou na condenação de Galileu? Pode também estar falhando agora”, disse Cícero. Isso irritou muito a igreja.

O dogma de que “Extra ecclesian nulla salus” (fora da igreja não há salvação) foi desmentido. Juazeiro continuou crescendo, movido pela fé no Padre Cícero. Se ele não podia mais batizar como padre, Cícero virou o padrinho de quase todas as crianças. Padim Ciço não era apelido.

No ano da derrota de Canudos, a Troia de taipa, Cícero estava exilado em Salgueiro, expulso de Juazeiro pela Igreja.

Conta-se que Cícero mandou um portador a Canudos. Conselheiro mandou um recado: “Conte a Cícero o que viu. Ainda vai haver três fogos. Ele também terá o seu foguinho.” O ano de 1897 foi o da derrota de Conselheiro e da excomunhão de Cícero.

Somente em 1908, Cícero com 64 anos, ele começou a se meter em política, com dois objetivos: emancipar o seu Juazeiro e torná-lo sede do novo bispado, que estava para ser criado no Ceará.

Foi nesse momento que o médico baiano, rábula e garimpeiro, Floro Bartolomeu chegou ao Juazeiro.

Cícero encontrou um parceiro audaz e competente. Cícero convocou o povo para a Guerra. Se tornou o primeiro Prefeito do Juazeiro emancipado, vice-governador, chefe político do Cariri (16 municípios). Juazeiro foi emancipado em 22 de julho de 1911.

O Padim Ciço, um cabeçudo de 1,60 metros, meio torto de um lado, virou chefe político somente aos 67 anos, com um lema: “Quem bebeu não bebe mais, quem matou não mata mais, quem roubou não rouba mais. Estão todos perdoados.” Acabou-se o tempo em que o lobisomem corria solto no Sertão.

Em 1913, o Governo do Ceará mandou uma tropa de mil homens para invadir o Juazeiro, era preciso tocar fogo covil. Floro Bartolomeu buscou ajuda com Pinheiro Machado, no Rio de janeiro.

A guerra estava declarada. Fundou-se uma Assembleia Legislativa dissidente no Juazeiro.

Nessa guerra, 1914, os beatos do Padre Cícero foram comandados por Antonio Vilanova, um guerreiro já idoso, sobrevivente de Canudos, que não poderia negar um chamado do Padim. Um grande fosso de nove km de extensão, oito metros de largura e cinco de profundidade foi cavado em torno de Juazeiro, em seis dias. O Padre chamou de “Círculo da Mãe de Deus.”

Cícero pregava: “quem for para a guerra confesse os pecados a Deus. Pois se morrer pelas balas dos soldados, pode ter a certeza de que vai para o céu.” Durante o combate, Cícero jejuava de joelhos aos pés do crucifixo, ouvindo os tiros.

O Padre Cícero ganhou a guerra!

O comandante das tropas do Governo reuniu o que restou, e bradou: “Deus é grande. O padre Cícero é maior. Embrenhem-se no mato, que é maior que os dois.”

Floro, que comandou a defesa, decidiu: não vamos cometer o erro de Conselheiro, vamos para o ataque e invadir o Crato. O padre Cícero fez o sinal da cruz.

Por meu Padim, vou até para o inferno, gritavam beatos, jagunços e cangaceiros. O governo estadual pediu apoio a União. Hermes da Fonseca mandou um telegrama: “Eu sou neutro, a favor do Padre Cícero.”

Depois do Crato derrotados, as tropas do Padre partiram para Barbalha, que foi devastada. A meta passou a ser invadir Fortaleza. Depois da invasão, o Governo Federal decretou intervenção no Ceará.

Foi a glória militar do Padre Cícero. 450 jagunços, escolhidos a dedo por Floro, passariam a fazer parte da Força Pública do Ceará.

O Vaticano criou o bispado no Crato, uma derrota do Padre Cícero. Em 1916, a inquisição condenou Cícero a excomunhão.

No final, em 1917, Cícero submeteu-se a igreja e condenou até as romarias, com a condição de voltar a celebrar missas na Igreja Nossa Senhora das Dores.

Em 1918, Cícero, tido como muito rico, deixou todos os seus bens para a Santa Sé.

Em 1926, Floro organizou uma batalhão patriótico, de jagunços, para combater a Coluna Prestes. Convidou Lampião, com a promessa de muito dinheiro e a patente de capitão do Exército brasileiro. Mesmo desconfiado, Lampião não podia rejeitar um convite assinado pelo Padre Cícero.

Lampião foi ao Juazeiro e conversou com Padre Cícero. Depois, Glauber Rocha imortalizou num filme famoso: “Deus e o Diabo na Terra do Sol.”

Lampião, a partir dessa data, passou a se intitular de Capitão Virgulino.

Com a morte de Floro, carcomido pela sífilis, o velho Padre Cícero (82 anos), quase cego, resolveu se candidatar ao Congresso Nacional. Eleito por quase a unanimidade. Entretanto, nunca compareceu a uma sessão, não foi nem buscar o diploma de deputado.

Após muito sofrimento, cego, em 20 de julho de 1934, com 90 anos, faleceu o Padre Cícero Romão Batista.

A Expedição Serigy está indo a Meca sertaneja, no início de outubro. Uns para reconhecer a santidade do Padim Cíço e da beata Maria de Araújo.

Muitos vão se arrepender dos pecados e pagar promessas.

Outros vão apenas passear, tomar banhos nas águas milagrosas de Barbalha, visitar Exu e Expedito Celeiro, em Nova Olinda.

No meu caso é uma despedida.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

sábado, 16 de setembro de 2023

A VOLTA DO PADRE IBIAPINA.


 A volta do Padre Ibiapina.
(por Antonio Samarone)

José Antonio de Maria Ibiapina (1803 – 1883). Ibiapina formou-se Bacharel em Direito, em 1832, aos 26 anos. Assumiu o cargo de Juiz de Direito em Quixeramobim, terra natal de Antonio Conselheiro.

Ibiapina, abandonou a carreira jurídica e ordenou-se padre em 1853, aos 47 anos. Trocou a toga pela batina. Fundou a ordem dos beatos e beatas e percorreu o Sertão nordestino. O padre andarilho. Ouvi dizer que Ibiapina passou por Itabaiana.

O pai do Padre Ibiapina foi fuzilado em 1825, por seu envolvimento com os rebeldes da Confederação do Equador.

Ibiapina passou a percorrer o Sertão nordestino, mobilizando as populações dos lugares por onde passava, para a construção de igrejas, capelas, hospitais, açudes, cacimbas, cisternas, barragens, cemitérios, cruzeiros e Casas de Caridade.

O Padim Ciço e Antonio Conselheiro são discípulos de Ibiapina, cada um ao seu modo. O fenômeno é o mesmo.

As Santas Missões, as romarias, as penitencias, as promessas são inspiradas no catolicismo popular do Padre Ibiapina. Sobretudo os milagres. Sem o temor de Deus, a fé acaba, pregava o Frei Damião.

Os atuais devotos de Santa Dulce em Itabaiana, rezam o mesmo terço. Buscam saídas para as aflições e os sofrimentos na fé, nas orações e na caridade. As Casas de Caridade de Santa Dulce, são heranças do Padre Ibiapina.

O Vaticano II modernizou a igreja, combateu o catolicismo popular, chamou a fé popular de superstição. Deus é amor, diz Roma. Reconheço, é uma formulação profunda, mas o povo busca misericórdia, proteção e esperança. O povo espera milagres.

O Vaticano II revogou o Concílio de Trento.

A missa tridentina era rezada em latim, com o padre voltado para o sacrário, de costa para os fiéis. A bíblia era a traduzida por São Jerônimo, no século VI. A excomunhão e o fogo do inferno mantinham o medo.

Dizem os mais instruídos, a fé não pode ser tributária do medo. Tudo bem. Só que o medo aumentou e as aflições foram generalizadas. Mudaram de nome. A psiquiatria assumiu. O sofrimento humano não precisa mais da redenção. Os remédios estão nas farmácias.

O povo continua esperando milagres. Eu também!

Aqui reside uma contradição: a fé do povo na salvação cresceu, e as igrejas católicas se esvaziaram.

A Expedição Serigy, tida com morta, ressuscitará no início de outubro. Vamos pagar as nossas promessas no Juazeiro do Norte, do Padim Ciço.

Vamos também a Exu e Nova Olinda. Aos esquecidos: Exu de Luiz Gonzaga e Nova Olinda de Expedito Celeiro. Se houver tempo, iremos ao Assaré, de Patativa.

A Expedição Serigy observa a fé popular pelo olhar da Cultura, mas não descuida do sagrado.

A nova trilha da Expedição Serigy não é penitência. Confesso, é muita prazerosa. Vamos em busca de curas milagrosas, sobretudo de rejuvenescimento. As águas medicinais do Caldas, em Barbalha, onde ficaremos, foram abençoadas pelo padre Ibiapina.

A Expedição Serigy retornará ao Nordeste Profundo.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

CAPITÃO JAGUNÇO


 Capitão Jagunço.
(por Antonio Samarone)

No domingo, recebi de um amigo gentil, culto e bem-humorado, Pedro Moraes, um livro de presente. Um mimo em desuso. Pedro me presenteou “Capitão Jagunço”, de Paulo Dantas. Tenho amigos de direita, bem a direita, mas grandes amigos.

Paulo Dantas, sergipano de Simão Dias, foi um escritor de grande fôlego e elevada cultura. Faleceu em 2007, aos 85 anos, em São Paulo. O seu livro mais conhecido, Capitão Jagunço (1964), conta ao seu modo, a história de Canudos.

Paulo Dantas encarregou a um personagem, Jerônimo Jagunço (Capitão Jagunço), a responsabilidade de recontar o massacre de Canudos. O Capitão Jagunço foi traidor de sua gente, guiando as tropas do exército, na tarefa de eliminar a comunidade de Monte Santo, liderada por Antonio Vicente Mendes Maciel (o Conselheiro).

O Capitão Jagunço faz uma narrativa preconceituosa sobre Canudos, defendendo uma versão desmontada pela história, inicialmente por outro sergipano, José Calazans.

O Capitão Jagunço transformou o massacre do Canudos, numa guerra justa. Numa versão onde houve exageros de lado a lado.

Capitão Jagunço foi cantado por Luiz Gonzaga, o que não é pouco.

Edmundo Munir (Canudos, Guerra Social) e Vargas Llosa (A Guerra do Fim do Mundo) defenderam que Conselheiro era comunista. Um exagero ideológico. Conselheiro foi um líder messiânico.

Segundo José Calazans:

“Canudos foi uma questão religiosa, depois passou a ser econômico-capitalista, depois política. Ninguém pode esquecer que houve uma revolução no Nordeste, chamada de Quebra-Quilo, por causa da mudança do sistema de pesos e medidas. O que fortaleceu muito a união em torno do Conselheiro foi a seca terrível de 1877. Além de cemitérios e capelas, ele fazia tanques de captação d'água.”

Uma nova versão sobre Canudos, surgiu após as pesquisas de José Calazans.

O médico Cícero Dantas, o Barão de Jeremoabo, defendia que Canudos era uma consequência do treze de maio. Um amontoado de ex escravos. A preocupação dos fazendeiros do Sertão baiano não era a terra, mas perder mão-de-obra para Canudos.

O Capitão Jagunço, personagem de Paulo Dantas, trata Canudos como uma guerra a favor da restauração da Monarquia, feita por Antonio Conselheiro, um louco. Canudos como um caso de loucura coletiva é a tese defendida pelo médico Nina Rodrigues: “A Loucura Epidêmica de Canudos.”

O Capitão Jagunço tem um grande peso na consciência pela traição. Ele confessa: “Depois do massacre, não passo em Canudos. Seus moradores não gostam de mim. Quando passo, eles jogam sal e viram as vassouras de cabeça para baixo.”

Paulo Dantas exagera, pela boca do Capitão jagunço: “Além do mais, aqueles ignorantes todos mereciam mesmo um castigo. Era gente fora da lei, vivendo nos desmandos das safadezas e das espertezas. E não queriam de jeito nenhum reconhecer o poder supremo do nosso Governo federal.”

Era uma jagunçada terrível, continua o Capitão Jagunço: João Abade, Pajeú, Vilanova, Lalau, Pedrão, Venancio, Macambira, André da Jibóia, Chico Ema e Major Seriema. O povaréu brabo de Canudos não prestava. Só Conselheiro, valia alguma coisa.

Paulo Dantas justifica a traição do Capitão jagunço por sua expulsão de Canudos, um ressentimento pessoal.

Não tenho a pretensão de julgar a obra de Paulo Dantas por suas posições políticas sobre Canudos, aliás, na juventude, Paulo teve simpatias pelo credo vermelho. O homem escreveu muito, escrevia bem e era muito culto. Para que não haja dúvidas, a minha leitura também tem lado: eu sou um conselheirista.

Canudos teve forte influência sobre Itabaiana. A estrada real Itabaiana/Jeremoabo passava pelas Flechas, meu berço. O cemitério de lá foi obra de Conselheiro, ainda não reconhecida. Conselheiro, passou um tempo em Itabaiana, na Rua da Pedreira, onde hoje existe um monumento. Mamãe falava de Canudos com intimidade.

O Padre Gumercindo, em seu livro de memórias, retrata os festejos na Praça da Igreja, em Itabaiana, celebrando Canudos. Itabaiana, ao contrário de Simão Dias, terra de Paulo Dantas, sempre foi conselheirista. Portanto, herdei!

Simão Dias ganhou economicamente com a guerra, Itabaiana perdeu.

O Exército brasileiro nunca comemorou o massacre de Canudos, pelo contrário, a Glória coube aos derrotados. Releiam os Sertões, de Euclides da Cunha.

Entretanto, o livro de Paulo Dantas não é só ideologia. A leitura é agradável, uma imitação de Guimarães Rosa. O livro reforça uma versão pouco divulgada, mas verossímil: Conselheiro boiou nos mares do Aracaju.

Vamos aos fatos:

Canudos foi derrotado em 05 de outubro de 1897. O ano seguinte foi de grande seca. Entretanto, em 1899, houve um dilúvio no Sertão. O discreto Vaza Barris vingou-se dos sofrimentos que presenciou. Encheu arrastando tudo, uma procissão de ossos e cadáveres mal enterrados.

Uma velha jagunça bradava: “Degolaram o meu santo Conselheiro, amarraram uma pedra em seu pescoço, mas ele apareceu boiando nas ondas do Mar.” Antes das barragens, as enchentes do Vaza Barris desaguavam no Mosqueiro.

Conheci um velho pescador, Seu Matias, com quase cem anos, que contava sobre os cadáveres de Canudos sendo enterrados pela natureza nos mangues do Mosqueiro. O profeta tinha razão: “O Sertão vai virar mar e o mar virar sertão.” Matias não viu Conselheiro boiando no mar, mas ouviu dizer.

“Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se não sabe o nome nem a doutrina. Já este mistério é poesia.” (...) – Machado de Assis.

Adorei o presente de Pedro Moraes. Reavivou a minha memória conselheirista.

Antonio Samarone – Médico sanitarista.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

A ATUALIDADE DE JOÃO RIBEIRO.

 

 

A atualidade de João Ribeiro.
(por Antonio Samarone)

A obra de João Ribeiro é desconhecida em Sergipe.

Esse desconhecimento, está empurrando o próprio João Ribeiro ao esquecimento. Mesmo gente bem-intencionada, quando ouve o nome de Ribeiro retruca: um gramático que escreveu livros didáticos sobre a história do Brasil.

Gente, as obras completas do intelectual sergipano, compõem-se de 47 volumes. Na culta livraria “Sebo Xique”, não possui obras de João Ribeiro à venda. Nem de comentadores. Nem o belo livro sobre João, de Núbia Marques.

Em pouco tempo, o seu nome restará apenas na Avenida João Ribeiro, uma das principais do Aracaju.

Como se fez com Tobias Barreto e Sílvio Romero, a obra de João Ribeiro precisa ser republicada. Como não existe interesse do mercado, das academias, das universidades, das confrarias, das irmandades, creio que seja uma tarefa do Poder Público. Vejo tanto livro pueril publicado com recursos públicos, que republicar João Ribeiro tornou-se uma obrigação.

Não sei quem deve tomar essa iniciativa. A Cultura do Estado? Na passagem de José Carlos Teixeira, muita coisa relevante foi republicada. Conheço a sensibilidade de Amorosa! O Prefeito Edvaldo me revelou que a Prefeitura do Aracaju, possui um serviço editorial. Quem sabe?

João Ribeiro foi o percursor do modernismo de 1922. Pelo menos Sergipe, tão carente de talentos, não pode esquecê-lo.

“Reputo os meus artigos como sonetos. Pioram com as emendas.” João Ribeiro.

Eu escrevo terapeuticamente, para amenizar as horas de insônia.
Recentemente, critiquei uma certa medicina. Recebi telefonemas de um jornalista conhecido, com duras críticas ao que ele considerou erros gramaticais crassos, em meus textos. Não tocou no conteúdo tema. Nada!

Frades e confrades, as algemas gramaticais não tiram o meu sono. Não reviso o que escrevo.

Esse leitor eventual, jornalista, quando comenta privadamente os meus textos, refere-se apenas aos pontos, vírgulas e crases. Nunca questionou o conteúdo. Acho que nunca prestou a atenção ao que estou querendo dizer.

Eu sou um afeiçoado ao coloquial.

Disse ao jornalista corretor: sigo as orientações do gramático João Ribeiro e devo a ele, a minha liberdade em escrever. Percebi que o jornalista, meu crítico gramatical, não conhecia João Ribeiro.

Não existe civilização sem memória. Vamos comemorar João Ribeiro! Comemorar, como indica a etimologia, e para evitar mal-entendidos, é construir em comum uma memória, commemorare.

Insisto, Sergipe ganhará muito com a republicação das obras completas de João Ribeiro.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

sábado, 9 de setembro de 2023

CAMINHADA...


 Caminhada.
(por Antonio Samarone).

“Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém, fundo sem fundo” – Ferreira Gullar.

Envelheço percebendo que o existencialismo de Sartre tem as suas verdades. A natureza humana não vem pronta. Não é verdade que o pau que nasce torto, até a cinza é torta. Não, o pau torto pode ficar linheiro e vice e versa.

Venho me ajeitando à vida.

Entrei de corpo e alma na Cultura. Acho que será o Porto final.
Perdi muito tem na política. Sair e deixei as coisas do mesmo jeito. Talvez piores. Entendi a máxima de Lampedusa: “É preciso que tudo mude, para tudo continuar como estar.” Um jogo de faz de contas.

A política é arte de convencer os outros que o bom para você é o bom para todos.

Entre os desejos universais do homem: poder, glória, honra e salvação, o Poder é mais ilusório. No fundo queremos é ser felizes. Mesmo a opção pelo suicídio (estamos no setembro amarelo), é uma busca por felicidade.

Seu Sancho, do Beco Novo, estava certo: “política só presta para rico besta e pobre sabido.” Eu era um pobre besta. Achei que deveria fazer uma revolução, para adaptar o mundo às minhas crenças. Queria botar o mundo de cabeça para baixo.

Uma ilusão!

Entretanto, reconheço que se a opção for a guerra, eu prefiro a política. A política é a guerra por outros meios.

Quando ingressei no Movimento Estudantil, Ivan do Cachimbo, o nosso intelectual, me emprestou um texto de Jean Paul Sartre. Gravei uma verdade, que na época não concordava: “Para se fazer política é preciso sujar as mãos, sujá-las fundo, sujar na merda e sujar no sangue.”

Foi difícil entender que a política era inimiga da moral, incompatível com a moral apregoada. Foi preciso conhecer Weber, com as suas duas éticas, a de convicção e de responsabilidade. Na política, precisamos levar em conta as consequências dos nossos atos.

O velho marxismo também prega duas éticas, a dos trabalhadores e a da burguesia. A nossa e a deles. Eu sonhava com as mãos limpas de Kant. Antes da política, pensei em ser santo, igual a Santa Dulce. Um caminho espinhoso.

Em Sergipe, os marqueteiros políticos sempre usaram as mãos como metáforas. Teve candidato de “mãos limpas”, e outro com “mãos às obras.” Lembram-se? No final, ficamos na mão.

Não é fácil educar os homens. Sem coerção, a civilização se torna impossível.

O próprio Deus reconheceu o erro em ter criado o homem. Tentou refazê-lo, com o dilúvio. Não deu certo! Em pouco tempo, eles estavam adorando o bezerro de ouro.

Luiz Antonio Barreto me ensinou: Tudo tem dono! A política, a religião, as forças armadas, a ciência, os ofícios liberais, os sindicatos, os esportes. Só a Cultura não tem donos. Na época não entendi. Agora entendo.

A estupidez humana é quase infinita, mas foi com ela que dominamos o mundo. Assisto conformado a preparação da terceira guerra, dessa vez nuclear. A mãe de todas as guerras, como se diz no Alcorão.

Penso em cavar um bunker em meu sítio, pelo menos para assistir o final.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

CORDEL É ARTE?

 Cordel é arte?
(por Antonio Samarone)

“O poeta quer o céu, a cova rasa lhe abraça.” – Aderaldo.

Assisti ontem em Itabaiana a conferência sobre o Cordel, do intelectual paraibano Aderaldo Luciano. Uma viagem poética de Leandro Gomes de Barros a pôs modernidade. Aderaldo acredita que o Cordel, nasceu com Leandro.

“Por que existem uns felizes E outros que sofrem tanto? Nascemos do mesmo jeito, moramos no mesmo canto. Quem foi temperar o choro E acabou salgando o pranto?” Leandro.

Uma constatação do palestrante: o Cordel é o paraíso dos charlatões. Mesmo os desprovidos da sensibilidade poética, acreditam que sabem fazer Cordel. E muitos ousam.

O Cordel também é visto como uma forma simplificada de transmitir uma ideia complexa, de forma que os mais rudes entendem.

Aderaldo fica impaciente com quem não entende que o Cordel é um ramo da literatura brasileira escrito com estrofação em sextilha, com rima soante alternada e versos de sete sílabas. Confesso a minha ignorância: nunca soube desse mistério.

Aprendi a ler com o Cordel. Ler de carreirinha e cantando. O meu avô Totonho, possuía um quarto cheio de livros Cordel e Almanaques. O seu livro de cabeceira era o “Lunario Perpetuo.”

Aderaldo Luciano me ensinou outras novidades: “que Cordel não é feito para se cantar e violeiros e cordelistas não se batem bem.”

Aderaldo já um caboclo rodado, cascudo, com perdão da palavra, um velho. Perguntei-lhe do que vivia. Ele respondeu sem pestanejar, da poesia. Lembrei-me da definição de escritor dada por Paulo Coelho. “Escritor é quem vide do que escreve.” Perdi o receio: Aderaldo Luciano é um poeta.

Sergipe sempre teve muitos poetas e pouca poesia, inclusive no Cordel. Mas tem gente talentosa. Não vou citar para não arrumar inimizades. Todos se considerem exceções.

Eu não sei responder o que é e o que não é arte. Um colega médico, filosofo, me diz abertamente: a arte não tem compromissos com a realidade social. A arte é eterna! Nada que seja útil pode ser arte.

Outro amigo, intelectual do mesmo calibre, acredita que a arte na pós-modernidade precisa causar impacto imediato, e logo sair da prateleira. Existe um excesso de oferta. A Arte é efêmera. feita para ser consumida.

É muita teoria!

“Hoje, a importância da obra de arte é mediada pela publicidade e notoriedade. Quanto maior a plateia, maior a obra de arte.” Baudrillard. Por esse critério, o Cordel está relegado. Nenhuma ontologia universitária considera o Cordel.

Como no início eu perguntei se o Cordel era arte, eu vou responder. Se o Cordel for de Leandro Gomes de Barros, José Pacheco, Izabel Nascimento, Aderaldo Luciano, Patativa do Assaré, entre outros, escrito por gente talentosa, poeticamente sensível, é arte.

Já o Cordel dos charlatões, gente simplória e pretenciosa, que pensa que o Cordel é feito para gente simples, e qualquer coisa serve. Esse não arte.

Sei que os teóricos das artes vão detonar essa minha compreensão, senso comum. Mas não tenho outra. O que me espanta, me causa admiração, eleva o meu espírito e estimula a minha alma, eu acho que é arte. O que não me toca, mesmo por minha insuficiência, para mim não é arte.

Tem uma terceira via. Coisas que não me tocam, por limitações do meu entendimento, quando um sabido me explica, eu termino me convencendo, mesmo sem muito entusiasmo.

“A poesia é um movimento escapista, de fuga para outro mundo”. Leandro Konder.

Aderaldo Luciano, seja sempre bem vindo a Itabaiana.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

O PARQUE DOS LOBOS

 O Parque dos Lobos.
(por Antonio Samarone)

Algumas entidades médicas carregam a bandeira de uma medicina humanizada, de boca para fora, sem ações efetivas nessa direção. De positivo, assumem que a medicina está desumanizada, caso contrário, a medicina não precisaria dessa humanização.

Sou do tempo que existia um movimento sanitário ativo, lutando por essa humanização. São águas passadas...

A Reforma sanitária brasileira construiu o SUS, é verdade, um fruto primoroso. Entretanto, o resultado da Reforma foi a implantação da medicina de mercado. Uma medicina voltada para o lucro.

Concordo com o Frei Hans Stapel Ofm, “uma medicina que explora os pacientes mesmo em condição de vulnerabilidade, sem qualquer sensibilidade para a dor e o sofrimento do próximo.”

Acabo de ler “O Parque dos Lobos”, de Henrique Prata. Isso mesmo, um “Prata” neto de Ranulfo Prata, médico e escritor lagartense, que migrou para São Paulo, no início do século XX. Henrique é um fazendeiro rico de São Paulo, muito rico, movido pele fé cristã.

Se eu acredito? Acredito! Estou vendo...

O livro coloca o dedo na ferida. Aponta, sem arrodeio, o porquê da medicina está desumanizada. Vai mais longe, esclarece como o mundo político tira proveito.

A medicina de mercado é uma terra de lobos. Muitos não precisam das peles de cordeiros. São lobos com a pele de lobos.

Deus nos proteja!

O livro de Henrique também fala das mazelas da política sergipana. Entendi o porquê o ex-governador ficou tão aborrecido, quando eu falei que ele, mesmo sendo de Simão Dias, não dava a menor importância ao Hospital de Amor, em Lagarto. Ele me chamou de mentiroso num palanque. Uma palavra pesada. Prezo pela verdade.

O capítulo 10, do livro de Henrique, abre o jogo, sem meias palavras, como funciona o atendimento ao câncer em Sergipe. Como sergipano, terminei a leitura envergonhado, com a falta de vergonha alheia. Agora entendi a raiva de sua excelência.

Como se sabe, o governo estadual está construído outro Hospital do Câncer, em Aracaju. Isso se arrasta a décadas. Sergipe pode ter a maior oferta de leitos oncológicos per capita do mundo. Isso é bom?

Perguntei a um colega oncologista, como ele via o Hospital de Amor. Sem ir ao fundo, ele fez aquele ar de desconfiança com a filantropia: “Acho o Henrique um sabidão, que deve tirar proveito disso.” Perguntei o que ele sabia, se tinha evidências. Nada! Só suspeitava. Ainda deu aquele risinho inteligente.

Eu não suspeito! Viva o Hospital de Amor.

Os Hospitais de Amor são espaços onde se pratica a medicina humanizada. Os médicos trabalham em regime de dedicação exclusiva, não precisam ficar no corre-corre, de um emprego para outro. Soube que os primeiros médicos estão chegando. Soube também, que a maioria vai morar em Itabaiana. Rsrsrsrs Fazer o quê?

Vivemos sob a tutela da malandragem. Qualquer ato de grandeza é logo posto sob desconfiança. Se acredita em qualquer suspeita, mesmo as maldosas e as interessadas.

Henrique Prata encontrou o caminho dos serviços públicos, não estatais. O colega oncologista ainda questionou: “mas os hospitais dele recebem financiamento público, emendas parlamentares.” Claro, são públicos. O acesso é universal e gratuito.

Quem quiser entender as razões da desumanização da medicina, compre e leia o livro de Henrique Prata. Aos amigos, eu empresto, desde que me devolvam. Emprestar livro é um perigo, nunca voltam.

Comprei o “Parque dos Lobos” na livraria Sebo Xique, de Clóvis Barbosa. Enfim, Aracaju voltou a ter uma livraria cuidada por um homem de letras. Bosco Rollemberg teve uma livraria, que deixou saudades. Viva os “Boscos” da cultura. Procurei livros de João Ribeiro. Não tinha. Comprei um de Genolino, “Um Menino Sergipano”.

Voltando ao Parque dos Lobos.

Henrique Prata é o Presidente da Rede Hospitais de Amor, onde se presta assistência oncológica de primeira qualidade, gratuita e equânime. Tudo o que eu desejo para o SUS. Estamos longe.

Estamos às vésperas da inauguração de mais uma unidade de amor, em Lagarto. Junto com os cursos da Saúde da Universidade Federal de Sergipe e do Hospital Universitário, Lagarto se constituirá num polo avançado de Saúde.

Eu tenho enfrentado com bom humor, a provocação: E aí, Lagarto agora tem aeroporto. Tenham calma, o aeroporto de Itabaiana já está no forno. Aos desavisados: o aeroporto em Lagarto, é parte do Hospital de Amor.

Brincadeira à parte, parabéns a Henrique Prata pelo livro: bem-feito, verdadeiro e corajoso.

“Muitos se ufanam: não devo nada a ninguém! Engano, devemos muito a todos.” Cora Coralina.

Antonio Samarone (médico sanitarista).

OS GRANDES DA MEDICINA, EM SERGIPE

 Os Grandes da Medicina, em Sergipe.
(por Antonio Samarone)

Felisbelo Freire, o primeiro Governador de Sergipe republicano, é mais conhecido como historiador, por sua obra. Publicou muito sobre a história de Sergipe.

Entretanto, como médico, Felisbelo disputou com o Dr. Bragança, o título de maior clínico de Sergipe, daquela época. Era quase um mágico dos diagnósticos.

Felisbelo nasceu em Itaporanga, em 1858. Formou-se em medicina na Bahia, em 1882. Retornou à Sergipe, e montou consultório em Laranjeiras. Em sua passagem pela Bahia, formou-se músico de grande talento.

Em Laranjeiras, Felisbelo Freire liderou o movimento republicano em Sergipe.

Após a Proclamação, assumiu o Governo do Estado por poucos dias, logo se desentendeu com os oligarcas, que dominavam (ou dominam) a política em Sergipe.

Felisbelo migrou para o Rio de Janeiro. Por competência e identidade política, assumiu o Ministério da Fazenda do Governo Floriano. Foi Deputado Federal por Sergipe, por vários mandatos.

Genolino Amado (cadeira 32, da Academia Brasileira de Letras) conta um fato revelador da competência médica de Felisbello.

Mimi, irmã de Genolino, adoeceu gravemente. A família buscou os cuidados de Augusto Leite. O grande causídico não atinou um diagnóstico. Aconselhou a família: “procurem Felisbelo, que está de passagem por Aracaju.”

Mesmo com os ressentimentos políticos (os Amados de Itaporanga eram ligados aos Cabaús) a vida da filha era mais importante. Gilberto Amado, o filho famoso, ficou encarregado dessa missão. Felisbelo atendeu prontamente.

Existia uma tradição dos médicos em Sergipe, de não levarem em conta as divergências políticas, em suas profissões. Esse rancor atual, onde alguns médicos são movidos pela paixão política e pela adoração ao “mito”, são fatos novos. Espero que passageiros.

Mesmo sendo adversários políticos em Itaporanga (a política local é rancorosa), procuraram Felisbelo Freire.

O médico Felisbelo Freire esqueceu a política e compareceu à casa dos Amados. Prontamente, fez o diagnóstico e prescreveu os medicamentos adequados. Estabeleceu também uma dieta rigorosa (água de arroz, por três dias).

Depois da consulta, Felisbelo sentenciou: “Sei o que a moça tem. O que me disse o Dr. Augusto Leite antes de vir, ajudou-me no diagnóstico. (foi elegante com o colega). O caso é sério, porém não desesperador. Com boa medicação e dieta conveniente, creio que vou salvar a filha de vocês. É jovem, tem por si a natureza e o vigor dos Amados.”

Dito e feito, em poucos dias, a filha dos Amados (Melk e Donona), estava de pé, curada.

A descrição que Genolino Amado faz de Felisbelo é primorosa: “um senhor de meia altura, cabelos grisalhos, bigode fofo, lentes com aro fino de metal, colarinho engomado e gravatinha escura de laço feito.” Perfeito, Felisbelo Freire.

Estou convencido, que a rica biografia de Felisbelo Freire, pode incluir um capítulo: Um grande clínico.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.