terça-feira, 23 de agosto de 2022

PARTEIRAS, APARADEIRAS E BOULAS.


 Parteiras, Aparadeiras e Doulas...
(por Antonio Samarone)

Eu nasci em casa, pelas mãos de uma parteira.

Hoje, no geral, os partos são hospitalares, feitos pelas mãos dos médicos, com elevada incidência dos partos cirúrgicos (cesáreas).

As parteiras são profissionais registradas no Conselho de Enfermagem. O número é bem pequeno.

No primeiro Governo João Alves (1982/86), a política de saúde pública investiu nas parteiras, com o seu treinamento, obra da Dra. Jaci Meireles e de várias enfermeiras capacitadas.

João Alves mandou construir “Casas de Partos”, nos municípios que não possuíam maternidade. Quase todos.

A obstetrícia é uma especialidade recente, do final do século XIX.
Durante todo o período de Colônia e mesmo durante o século XIX a obstetrícia era praticada pelas parteiras e pelas comadres ou aparadeiras. Os médicos só eram chamados nos casos complicados.

No Brasil, as parteiras francesas não só realizavam os partos, como também sangravam, vacinavam e tratavam das moléstias do útero. A mais célebre e a mais conhecida foi à madame Durocher, Maria Josefina Matilde Durocher, nasceu em Paris em 1808 e faleceu no Rio de Janeiro em 1893. Foi membro titular da Academia Imperial de Medicina. A primeira mulher a merecer tal distinção, foi uma parteira.

Para exercer a profissão, tanto as parteiras estrangeiras como as nacionais, precisavam submeter-se a um exame perante o delegado do Cirurgião Mor, para obter a “carta de examinação”, que deveria ser registrada nos livros das Câmaras Municipais.

Com a criação das Faculdades de Medicina (1832), três cursos passaram a serem ofertados: medicina, parto e farmácia.

Inicialmente a intervenção restringiu-se ao controle na formação e no exercício da atividade de partejar, mas logo em seguida as habilidades inerentes à profissão foram incorporadas como uma fração do corpo médico (a obstetrícia).

As pessoas que já possuíam o diploma de parteira, e mesmo as curiosas, continuaram a exercerem as suas atividades, consentidamente, por boa parte de todo o século XX.

Durante o século XIX não houve a criação de maternidades anexas às faculdades de medicina. Data de 1877 a fundação da primeira maternidade na Capital do Império. A Maternidade Santa Isabel, que teve o Dr. José Rodrigues dos Santos como seu diretor.

Em Sergipe, a maternidade Francino Melo, a primeira, data de 1930, funcionava anexa ao hospital de Cirurgia, a maternidade João Firpo, do hospital Santa Isabel, é de 1957.

A maternidade São José, em Itabaiana, foi inaugurada no início da década de 1960, sob o competente comando das Irmãs de Misericórdia.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

A PSIQUIATRIA SOCIAL EM SERGIPE


 A Psiquiatria Social em Sergipe.
(por Antonio Samarone)

A psiquiatria nasceu em Sergipe sob a inspiração da Escola do Recife, da experiência do Hospital de Alienados da Tamarineira, sob o comando de Ulysses Pernambucano de Mello.

Ulisses Pernambucano nasceu no Recife, no dia 6 de fevereiro de 1892 e faleceu no Rio de janeiro, em 5 de dezembro de 1943, aos 50 anos.

Em 1930, Ulisses Pernambucano assumiu a missão de dirigir os serviços do "Hospital de Alienados da Tamarineira", o segundo hospital psiquiátrico do Brasil, onde criou a psiquiatria social brasileira.

A psiquiatria em Sergipe implantou-se inicialmente sob a orientação da Escola do Recife. Foi Luiz da Rocha Cerqueira, discípulo de Ulysses Pernambucano, que veio dirigir a Colônia Eronides Carvalho e o Serviço de Higiene e Saúde Mental do Estado.

Dr. Luiz Cerqueira viveu em Sergipe por dois anos, depois seguiu o seu caminho, na luta contra os manicômios e pela reforma psiquiátrica. O primeiro CAPS de São Paulo leva o seu nome.

A experiência da higiene mental durou pouco em Sergipe, o segundo hospital psiquiátrico, o Adauto Botelho, foi uma instituição de exclusão e isolamento, tendo no eletrochoque a sua “terapia” exclusiva.

O primeiro hospital privado de Sergipe foi a Clínica Psiquiátrica Santa Maria, do Dr. Hercílio Cruz.

Voltemos ao fundador da psiquiatria social no Brasil.

Em 1935 Ulisses Pernambucano foi preso, acusado de ser comunista, passou 60 dias na Casa de Detenção do Recife. Em decorrência das perseguições políticas Ulysses infarta, situação que arruinou a sua saúde até a morte, sete anos depois. A partir da doença, viveu cercado pela morte.

Um dos motivos para a sua prisão, teria sido o fato de Pernambucano pretender “a realização de um inquérito de caráter sociológico sobre as condições de vida e de trabalho nas usinas do Nordeste”,

Com grandes preocupações sociais, Ulisses passou a estudar a cultura negra. Em 1934 foi realizado o 1º Congresso de Estudos Afro-Brasileiros, no Recife.

Ulysses foi professor da Faculdade de Medicina do Recife e Presidente do Sindicatos dos Médicos. Em 1936 fundou o Sanatório do Recife e a Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste. Em 1938 fundou a Revista de Neurobiologia.

O II Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental ocorreu em Aracaju, no Instituto Histórico. Os seus anais constituem-se num retrato histórico sobre a psiquiatria em Sergipe.

Do ponto de vista nosográfico, Ulysses Pernambucano dividia os transtornos mentais em três grandes grupos:

1) as psicopatias constitucionais (que incluíam a psicose maníaco-depressiva, as psicoses degenerativas, a esquizofrenia e os quadros paranoicos);

2) as psicopatias com lesão orgânica definida (como a epilepsia, a psicose de involução, as psicoses por lesões cerebrais – tais como a neurossífilis e as demências arterioscleróticas – e as oligofrenias;

3) e as psicopatias decorrentes de auto e hetero intoxicações (alcoolismo, morfinomania) e as psicoses causadas por toxinas microbianas.

Pouco sobrou em Sergipe dessa experiência da psiquiatria social, na Colônia Eronides Carvalho. Hoje, a psiquiatria de mercado reina absoluta.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

domingo, 21 de agosto de 2022

PEREBAS E PEREBENTOS.

 Perebas e Perebentos.
(Antonio Samarone).

“Procurando bem/ Todo mundo tem pereba/ Marca de bexiga ou vacina/ E tem piriri, tem lombriga, tem ameba...” Chico Buarque

A higiene pessoal nos primórdios da humanidade está relacionada com a religiosidade. “As pessoas se mantinham limpas para se apresentarem puras aos olhos dos deuses, e não por razões higiênicas. Egípcios, mesopotâmios e hebreus, e outros povos, davam valor a esses hábitos”.

Herdamos o desleixo com o asseio pessoal dos portugueses. Os índios tomavam vários banhos por dia, mas urinavam dentro da Oca e defecavam nas bananeiras, nas margens dos rios.

“Os cristãos peninsulares dos séculos VIII e IX eram indivíduos que nunca tomavam banho, nem lavavam a roupa, nem a tiravam do corpo senão podre, largando os pedaços. O horror a água, o desleixo pela higiene do corpo e do vestuário permanecem entre os portugueses.” Gilberto Freyre

Foi na escola primária onde aprendemos a tomar banho, escovar os dentes, limpar as unhas e as orelhas, evitar os piolhos, lêndeas, bicho do pé e impinges.

Em Sergipe, relacionados, direta ou indiretamente, com a precariedade da higiene pessoal e alimentar, nossos escolares pobres eram acometidos de bicho de pé, frieira, terçol, conjuntivite, sarna, lêndea, piolho, pulga, dermatite seborréica (caspa), tinha corporis (empinge), pyteriase versicolor (pano branco), ancilostomíase (amarelão), ascaris (lombriga), ameba, anemia, boqueira, dor de dente, halitose (fedor de boca), dor de ouvido, unheiro, pelagra, nanismo, raquitismo, escorbuto, piodermite (pereba), furunculose, fleimão (maldita), chulé, subaqueira, cegueira noturna, oxiúros (caseira), infecção respiratória (catarro) e gastrenterite (diarréia ou caganeira).

A infestação por piolhos era combatida com cafuné, na tentativa de diminuir a população de parasitas. Se catavam os insetos adultos, esmagando-os entre as unhas, e os ovos fixados na raiz dos cabelos, carinhosamente chamados de lêndeas.

Outro método bastante usado na caça aos insistentes parasitas era a aplicação de banha de porco nos cabelos e posterior alisamento com o pente fino. Colocava-se uma pequena toalha no colo para não deixar que os piolhos e ovos caídos do pentear não se espalhassem pelo resto da casa.

Uma vez removidos, os pequenos insetos eram triturados mecanicamente com as unhas, resultando numa massa imunda de pus e sangue, quase nunca removidas, pois o modesto hábito de se lavar as mãos com água e sabão, era pouco apreciado.

Tardes inteiras ocupadas na inútil tarefa de erradicação manual dos piolhos. Com a tecnologia química do DDT (Neocid pó), a matança tornou-se eficiente, mas com graves consequenciais para os hospedeiros.

Os banhos de rio, tanque, gamela, assento, cuia, lata furada e o lava pé na pedra, nos livraram da sarna gaiteira e das perebas.

Não se conhecia sabonetes, isso era um luxo dos ricos. O sabão era feito em casa. (sebo de boi, hidróxido de sódio - NaOH (soda cáustica), água). Cansei de tomar banho com sabão de soda, que mamãe fazia.

Não foi fácil trocar a touceira de bananeira pela latrina. O grosso dos meninos do Beco Novo defecava no mato, nos fundos de quintais, ao pé dos murros e até nas praças. Era de costume dos homens urinarem nas ruas; e de nas ruas se jogar a urina choca das casas.

As tecnologias dos “walter closet” WC, inglês e do bidet francês chegaram tarde a Sergipe, o povo demorou a ter acesso a esses avanços sanitários.

A falta de higiene pessoal estendia-se aos domicílios. A permanência de pocilgas perto das casas, a convivência intima com animais domésticos, gatos, cães, galinhas, patos, sagüis, pássaros, cágados, habitando o mesmo espaço, as camas, sofás, redes, etc.

A proliferação de insetos de todas as espécies, principalmente as baratas e ratos completavam o zoológico familiar brasileiro.

Muito da mortalidade infantil decorria da completa falta de higiene no momento do corte do couto umbilical.

Mãos sujas, tesouras infectadas, uso de fezes de galinha como unguento anti-hemorrágico, entre outras barbaridades, apressava a morte dos anjinhos. Era o temido “mal dos sete dias”, ou simplesmente tétano umbilical, que por ignorância e falta de higiene aumentava os habitantes do “Limbo”.

Eu perdi três irmãs com o mal dos sete dias.

Foi com a criação da Inspetoria de Higiene Infantil e Assistência Escolar, sob a direção do pediatra Lauro Dantas Hora, que se estabeleceram açoes efetivas de higiene nas escolas.

Foi o tempo em que o escolar sergipano recebeu a melhor e mais rigorosa assistência médico higiênica: correção de vícios, prevenção de estados mórbidos, tratamento de verminoses, assistência dentária, educação sanitária, inspeção de prédios e classes escolares. Uma transformação de mentalidade, realmente digna de registro.

A saúde escolar foi prioridade no Governo Luiz Garcia. Devemos essa revolução nos hábitos de higiene pessoal a escola pública, que nos tirou do analfabetismo e do lodo.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

sábado, 20 de agosto de 2022

CANNABIS MEDICINAL E PSIQUIATRIA

 Cannabis Medicinal e Psiquiatria.
(por Antonio Samarone)

Emil Kraepelin (1856 - 1926), estudou medicina em Leipzig, onde depois foi professor. Ensinou e fez pesquisas em diversas escolas alemãs. Em 1883 escreveu o seu Compendio de Psiquiatria, onde estabeleceu uma classificação para a loucura. Um dúzia de doenças.

Hoje, nos manuais americanos (DSM), chega-se a quatro centenas de transtornos mentais.

Até 1840, se achava que todas as doenças mentais eram transtornos do intelecto, Pinel foi o primeiro a levantar que em alguns transtornos era a emoção que estava prejudicada.

Pinel listava cinco categorias nosológicas: melancolia, mania sem delírium, mania com delírium, demência e idiotismo. Delírium significava perturbação da razão (confusão, fala incoerente, delírios e alucinações).

Esquirol desenvolveu a concepção da monomania. Morel (1857) a ideia da degeneração, inspirado no mito religioso da “queda”. O transtorno mental seria uma expressão das mudanças degenerativas afetando os centros cérebro-espinhais.

O homem era afetado por forças externas destrutivas, que a qualquer hora poderia iniciar o processo de degeneração. “

Lima Barreto, que escreveu o Cemitério dos Vivos, narrando a sua passagem pelo hospital de alienados Pedro II, no Rio de janeiro, era obcecado com a ideia da degeneração. Uma tese racista.

A teoria da degeneração influenciou Cesare Lombroso, que em 1876 desenvolveu a noção de criminoso nato (delinquente nato). Inspirado pelo evolucionismo de Darwin, Lombroso via a criminalidade como uma forma de atavismo humano, um passo atrás na filogênese da humanidade.

Os atos criminosos estariam enraizados na biologia!

Há pelo menos dois séculos que a violência, o crime, o pecado, a excentricidade, o vício e o temperamento passaram a receber rótulos psiquiátricos: transtornos de personalidade, insanidade moral, personalidades psicopáticas, antissocial, neurose de caráter.

No final do século XIX, pais de família, padres, conselheiros e curandeiros foram suplantados pelos médicos no direito quase exclusivo de cuidar e de custodiar o louco. A dúvida era se o psicopata era mau, e deveria estar sujeito a sanções legais, ou louco, e deveria receber o tratamento médico.

A questão central era controlar o poder da loucura

As substâncias psicoativas têm sido usadas há milênios. O livro de farmacologia mais antigo, O livro do Imperador Amarelo (2.500 a.C), trata da cannabis. Heródoto (século V a.C) descreveu a inalação de cannabis entre os Citas. O ópio era usado pelos sumérios. Os antigos egípcios usavam para acalmar as crianças.

Parece que o uso medicinal da cannabis foi redescoberto pelos doutores. Galeno prescrevia o ópio, para o Imperador Marco Aurélio.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

PENSADORES SERGIPANOS

 Pensadores Sergipanos.
(por Antonio Samarone)

A Era de ouro da intelectualidade sergipana foi o final do século dezenove. Desconheço as causas. Vários sergipanos se destacaram nacionalmente.

Se usarmos a Academia Brasileira de Letras como referência, além de Tobias Barreto, Patrono da cadeira 38, e Sílvio Romero fundador, nos primeiros 30 anos, mais cinco sergipanos ocuparam cadeiras na ABL. Foram imortais da Casa de Machado de Assis.

Eu falei sete: os dois citados acima, Tobias e Sílvio; os Freires do Lagarto, (Anibal e Laudelino); os Amados de Itaporanga, (Gilberto e Genolino; e o maior, João Ribeiro, de Laranjeiras. Esqueci alguém?

Hoje, quando surge uma vaga na ABL, alguém lembra de Sergipe?

O sábio pernambucano Gilberto Freire, na abertura do 2º Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste, ocorrido em Aracaju, em 1940, afirmou:

“De Sergipe, o brasileiro de outro Estado, por mais ignorante que seja da geografia, da paisagem, da produção agrícola, da atividade econômica deste pequeno, mas ilustre pedaço do Brasil, saberá sempre dizer, para caracterizar no mapa brasileiro a província sergipana: aqui há inteligência.”

Havia!

Hoje Sergipe possui muitas academias e poucas letras, muitos poetas e pouca poesia e muitos escritores e pouca literatura. A safra não é boa!

Nessa constelação de intelectuais do final do século dezenove predominavam os juristas, talvez influenciados pelo sucesso de Tobias Barreto no Recife.

Porém, houve uma exceção: entre os intelectuais engajados no movimento republicano em Sergipe, os médicos se destacaram. Felisbelo Freire, o médico mais conhecido, foi primeiro governador de Sergipe do período republicano. Thomaz Cruz, também médico, foi o último do Império.

Além Felisbello Freire, outros médicos participaram ativamente da luta republicana em Sergipe: Davino Nomísio de Aquino (Propriá), José Maria Moreira Guimarães (Aracaju), José Hermenegildo Pereira Guimarães, Josino Menezes (farmacêutico), Serafim Vieira de Almeida (Riachuelo), Firmino Rodrigues Vieira (Aracaju) e o homeopata Olintho Rodrigues Dantas (Itabaiana).

O que levou a esse engajamento dos médicos sergipanos no Movimento Republicano? Eu acompanho o pensamento de Luiz Antonio Barreto e Baltazar goes: “o estímulo principal para o envolvimento dos médicos, foi a presença do colega baiano Guedes Cabral em Laranjeiras, clinicando e fazendo agitação republicana.”

Guedes Cabral foi um intelectual consistente, ativista, envolvido com as teses republicanas. Cabral atuou apenas 4 anos em Laranjeiras, morreu cedo, de tuberculose, mas deixou o exemplo.

Falei sobre ele recentemente.

Antonio Samarone (médico sanitarista).

O VOTO JÁ FOI SAGRADO

 O voto já foi sagrado.
(por Antonio Samarone)

Pelo menos em sua origem, o voto era um pedido solene, uma promessa dos devotos aos deuses. O “ex-voto” é o pagamento de uma promessa. Se fazia votos de pobreza, de obediência e de castidade. “Faço votos que você se recupere dessa doença”, era um dito corrente.

Com as democracias, o voto passou a ser a vontade livre dos eleitores. O voto como mercadoria é recente.

Na contramão de muita gente, eu gosto da política, gosto de votar. Não estou falando da política enquanto filosofia, ciência, teoria, não, eu gosto da prática, sobretudo da política eleitoral. Estou com saudade dos comícios, uma velha tradição romana. “Zoada e empurrão eu só tolero em comícios”, dizia o finado Zeca Cego.

Em Roma, os “candidatus” se vestiam de branco. Uma referência ao cargo que iriam ocupar no Fórum Romano, onde usavam uma toga branca, devido a crença de que o branco era a cor da pureza e da probidade. Hoje quem usa branco são os médicos, barbeiros, pais de santo e o Papa Francisco.

Só somos iguais na vida em duas ocasiões: na morte e nas eleições. Da morte ninguém escapa e o voto tanto faz dos magnatas como dos miseráveis, têm o mesmo peso. Somos iguais apenas no voto secreto e unitário.

A igualdade perante a lei é uma utopia jurídica. Somos iguais apenas perante as urnas. Elegemos periodicamente essa fauna de políticos, por nossa conta. Os eleitos refletem a sociedade, nem mais, nem menos.

Se um espelho reflete uma imagem degradante, quebrá-lo não resolve, não altera a realidade.

Reconheço que mesmo atentos, podemos errar. Tem candidato que engana bem. Apresentam-se com um discurso de mudanças, que são diferentes, nem políticos são. Quando se elegem, são farinha do mesmo saco.

Outro ponto: a democracia representativa só garante o direito a eleição. Em caso de arrependimento, o direito a revogação do mandato não é o de eleitor.

Alexis de Tocqueville acreditava que a força da democracia americana estava na democracia direta. Agora, com as tecnologias de comunicação, a democracia direta precisa voltar a pauta.

Muita gente não gosta de eleições por sua natureza igualitária. O voto universal foi uma conquista. No Império o voto era censitário, só votava quem possuía renda elevada. Até 1937, as mulheres não tinham direito ao voto. Os votos dos analfabetos e dos maiores de 16 anos são recentes.

Bertolt Brecht condenou os analfabetos políticos. Os mais sofisticados são contra o voto obrigatório. O direito a omissão.

O Brasil precisa encontrar o seu caminho pela via democrática.

Somos a maior nação latina do mundo, herdeiros de Roma (língua, direito, religião). Herdeiros dos povos originários e dos povos africanos. Somos uma civilização híbrida, complexa e criativa. Como Darcy Ribeiro, acredito que o Brasil termina dando certo.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A SAÚDE NÃO TEM PREÇO

 A Saúde não tem preço!
(por Antonio Samarone)

A sabedoria desejada pelos velhos consiste em livrar-se dos chatos, dos aborrecimentos miúdos do dia a dia, das pequenas mazelas e da pretensão de arrumar o mundo segundo os seus caprichos.

Alguns conseguem!

Entretanto, ninguém escapa da tolice suprema, a ilusão de querer comandar o próprio corpo, de mantê-lo dentro das normas médicas.

A medicina não tem limites, não lhe basta enfrentar as enfermidades. A medicina impõe regras aos comportamentos, as condutas e ao corpo humano. A vida foi medicalizada.

Foucault achava que a medicina era parte do controle social, da dominação política através da subordinação disciplinar do corpo. Isso era antes, nas sociedades industriais centradas na disciplina do corpo.

A atenção aos doentes deixou de ser tarefa da caridade. Ao final da Segunda Guerra, a saúde virou um direito. O Estado passou a cuidar do bem-estar físico das pessoas.

A atenção a saúde deixou de ser apenas uma preocupação do Estado em manter a higidez da força de trabalho. A atenção a saúde subordinou-se a lógica do mercado.

A medicina de ciência da enfermidades e arte da cura, tornou-se um bem de consumo, uma atividade macroeconômica. Ao incorporar-se ao mercado, a medicina subordinou-se a lógica da mercadoria e do lucro.

Para atender as exigências da forma mercadoria (padronização, impessoalidade, produtividade e lucro previsíveis), a medicina afastou-se da subjetividade do cuidado e fragmentou-se em procedimento. A atenção deixou de ser o doente, o ser, a pessoal, o paciente, e centrou-se na doença, no corpo, no ente, no objeto.

Nisso consiste a essência da chamada desumanização da medicina: a relação deixa de ser médico/paciente (homem/homem), transformando-se numa relação médico/doença (homem/objeto). A medicina deixa de ser uma relação humana, submetendo-se a fetichização das coisas.

A opção da biomedicina pela evidência científica na condução de sua prática foi a forma de livrar-se das pessoas e concentra-se no corpo.

A arte médica da cura, voltada para a subjetividade do sofrimento humano tornou-se inadequada as regras objetivas do mercado. A empatia e a misericórdia freiam a produtividade e o lucro.

Por séculos, o erro médico foi atribuído aos desconhecimentos da medicina. Hoje, a medicina erra por saber demais sobre o corpo. A medicina voltada para o lucro é iatrogênica, incompatível com as necessidades dos que sofrem.

Um velho amigo, movido pela crença de manter o corpo dentro das exigências médicas, submeteu-se aos exames de rotina. Daqueles genéricos, onde se examina tudo, tentando encontrar alguma parâmetro fora da normalidade.

Uma pessoa de 70 anos, passar por esse baculejo sanitário e achar que vai sair com uma “nada consta”, é muita ilusão.

Não deu outra: os valores do PSA, uma antígeno produzido pelas células da próstata, estavam aumentado.

O amigo não sentia nada. Levava a vida familiar e social dentro dos padrões. Com a notícia, a vida desabou, teve a força de uma condenação a morte.

O sofrimento dele foi provocada pelo conhecimento do resultado dos exames. O saber médico acena para o risco de uma câncer de próstata, com os seus dissabores. E basta!

A medicina de mercado apressou-se, com a promessa de uma sobrevida maior, ofereceu-lhe vários paliativos, entre eles a castração. A supressão da testosterona reduziria os riscos em 32%. É o que garante a medicina por evidências.

E agora, 32% é muito ou pouco, significa quantos dias a mais de sobrevida, me perguntou o angustiado amigo, sobrecarregado por um profundo sofrimento mental. A vida acabou, com essa notícia.

Qual o melhor caminho?

Antonio Samarone (médico sanitarista)

POR QUE O SÍMBOLO DA MEDICINA É UMA COBRA

 Por que o símbolo da medicina é uma cobra?
(por Antonio Samarone)

O símbolo da medicina é uma serpente que sobe pelo bastão de Asclépio. Esse símbolo remonta aos primórdios da humanidade. Os romanos deram a Asclépio o nome de Esculápio.

O bastão é um símbolo do poder, como o cetro dos reis e o báculo dos bispos; símbolo da magia, como a vara de Moisés; apoio para as caminhadas, como o cajado dos pastores.

A serpente é o símbolo do bem e do mal, da saúde
e da doença; da astúcia e da sagacidade; símbolo do poder de rejuvenescimento, pela troca periódica da pele; ser ctônico, elo entre o mundo visível e o invisível.

No Paraíso, a serpente era o prolongamento do braço do demônio, que levou o homem ao caminho do desenvolvimento.

A serpente está presa à terra como nenhum outro animal, tanto devido ao banimento divino ocasionado pelo pecado original como por sua forma.

A serpente, além de seus dois dentes que injetam veneno, ela possui a língua bifurcada, um símbolo da deslealdade, da discórdia e da desunião. Ela possui a capacidade de deixar radicalmente para trás o velho e o já vivido e a cada ano, ao trocar de pele, estabelece um início totalmente novo.

Mas ela tem acima de tudo o veneno, que pode matar e curar. Na Antiguidade, a serpente era mantida nos templos sagrados de Asclépio.

Recentemente, a medicina de mercado propõe substituir o bastão de Asclépio pelo Caduceu de Hermes, o deus grego do comercio. Os romanos deram a Hermes o nome de Mercúrio, de merx, que quer dizer mercadoria, negócio.

A medicina de mercado também questiona o Juramento de Hipócrates, sobretudo a visão da medicina como um sacerdócio (ócio sagrado). Acreditam ser a medicina um negócio.

No dizer popular, o símbolo da medicina é uma cobra, porque ela sempre cobra. Se a medicina curar cobra, se remediar cobra, se matar também cobra. A medicina sempre cobra.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A PRATA DE ITABAIANA

 A Prata de Itabaiana.
(por Antonio Samarone)

Antes da chegada dos Sesmeiros para fundarem o Arraial de Santo Antonio e Almas de Itabaiana, os europeus por aqui andaram esgravatando a Serra em busca de prata.

O interesse pelo Brasil não era por terras férteis, pássaros e animais raros, paus de tintas preciosos, nada disso, a prata era o grande sonho do século XVI. A prata era um negócio da China, literalmente.

Havia entre os nativos a lenda da uma serra branca, toda de prata. O primeiro a aventurar-se no sertão em busca dessa serra foi João Coelho de Souza. Embrenhou-se sertão adentro por três anos, vindo a falecer de sezão. Os segredos das descobertas ficaram com o irmão, o famoso Gabriel Soares, o mesmo que escreveu o Tratado Descritivo do Brasil.

Gabriel Soares também morreu abandonado nas matas em busca da Serra da Prata. Quem ficou os mapas das minas? Melchior Dias Moreia, neto de Caramuru e primo de Gabriel Soares se apresenta com herdeiro.

Melchior Dias Moreia, vivia no sertão do Rio Real, atual Tobias Barreto. homem abastado de terras e de bens, filho de Vicente Dias, português e fidalgo e da mameluca Genebra Álvares, filha do Caramuru.

De posse dos mapas, embrenhou-se Melchior Dias Caramuru por oito anos nas Serras de Itabaiana e Jacobina em busca da prata.

Oito anos de sertão! Oito anos atrás da serra da prata! Tão longa se tornou a ausência, e tão sem notícias, que, ao cabo desses compridos oito anos, a gente do Caramuru já o supunha morto por esses matos.

Foi o espanto para todos, surpresa para mulher e filhos, que um dia surgiu em sua fazenda do Rio Real, inesperado, asselvajado, avelhentado, vestido de gibão de anta, a figura peluda do baiano desbravador Melchior Dias Caramuru.

O homem descobriu as minas de prata da Serra de Itabaiana.

O Caramuru não se fez de rogado, enfiou o roteiro das minas na sacola de couro, meteu-se num galeão e partiu em direção a Madri, disposto a revelar ao soberano o segredo da prata. Naquele período vivia-se sobre o domínio da União Ibérica.

O Caramuru, em troco da revelação das minas de prata pleiteou para si a alta nobreza de marquês. Sim, o neto de Caramuru pretendeu, nada mais nada menos, do que ser afidalgado com o título de Marquês das Minas.

Melchior Dias ficou quatro anos na corte dos Felipes à espera da mercê. Que ousadia, dizia a nobreza espanhola: um caboclo da Capitania de Sergipe, um mameluco encoscorado, filho de índia e branco, cerdoso, mãos encodeadas, ia ser galardoado com a magnificência de Marquês das Minas.

Melchior Dias retornou a Sergipe sem o brasão, com a promessa que receberia à Mercê depois que mostrasse o local da mina de prata. Criou-se um impasse: o Caramuru, por seu lado dizia, me conceda a mercê que eu mostro a mina. Uma crise de desconfiança.

O Governador Geral do Brasil, Dom Francisco de Souza. fincou pé, primeiro mostre a mina.

Depois de muitas idas a vindas, muita insistência do Caramuru, o governador de Pernambuco, Luiz de Souza resolveu ir pessoalmente acompanhar Belchior Dias ao local da mina, garantindo a liberação das mercês.

D. Luiz de Sousa não veio só, foi acompanhado do governador da Bahia. trouxe muitos de negros e uma soldadesca numerosa em busca das minas de prata.

Partirão da Bahia os dois governadores com Melchior Dias, que os levou direito a serra de Itabaiana". Itabaiana, era a serra encantada? Sim, Itabaiana era a famosa serra da prata!

Chegando a Itabaiana disse Melchior Dias aos governadores que Suas Senhorias estão com os pés sobre as minas. Estavam com os pés sobre as minas, faltava agora que o Caramuru indicasse a lombada onde deveriam roncar os alviões.

Um gesto do sertanista, um simples gesto - e eis afinal desvendadas as jazidas de prata!

Melchior Dias insistiu: onde está o decreto com o meu título de Marques. Me mostrem o papel que eu mostro as Minas. Para surpresa do Caramuru existia o decreto de Marques das Minas, não para ele, mas para o fidalgo governador Luiz de Souza;

No início do século XVI, travou-se uma grande polêmica no alto da Serra de Itabaiana: exclamava Melchior Dias, como? Mostrar eu as minas a essa gente falsa antes de ter em mãos o alvará das mercês? Jamais!

E o Governador D. Luiz de Sousa por seu turno: Como? Entregar eu o alvará esse caboclo antes de ver as minas?

E não houve acordo a partir de então, entre o governador e o caboclo. Itabaiana saiu perdendo. Porém não existe dúvidas, foi lá que se iniciou o famoso ciclo do ouro no Brasil e Minas Gerais levou a fama.

Encurtando a história, Melchior Dias não revelou o local das minas, não recebeu à mercê e acabou preso e humilhado.

Melchior Dias, tal como João Coelho, Gabriel Soares, pagou o tributo dos desbravadores. Certo dia, o descobridor das minas de prata da Serra de Itabaiana, amanheceu morto no seu engenho em Tobias Barreto, por volta de 1619.

Grande prejuízo para Itabaiana. O local da mina continua desconhecido ou conhecido por poucos. O certo, a cidade é hoje um grande centro de produção e venda de joias e pedras preciosas, sem que se saiba a origem da matéria prima.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

SINTO DOR, LOGO EXISTO.

 Sinto dor, logo existo.
(por Antonio Samarone)

“As predisposições biológicas do sofrimento serão dissolvidas. Dores corporais e físicas estão destinadas a desaparecer. As dores da alma perderão o sentido, surgirá uma felicidade sublime. O tédio será eliminado numa sociedade paliativa, pós humana.” Escreveu David Pearce, em seu Imperativo Hedonista.

Esquecem os pós-modernos, que a dor não é apenas uma manifestação do corpo, ela é parte da condição humana. Deixar a dor por apenas por conta da medicina é uma simplificação perigosa.

Lembrando Nietzsche: “Contra o tédio, até os deuses lutam em vão.”

A nossa relação com a dor diz em que sociedade vivemos. Hoje predomina o medo generalizado da dor, a algofobia! Toda situação dolorosa é evitada, a dor e o sofrimento perderam o sentido.

A epidemia dos opioides é um sinal. A ideologia do bem-estar leva a que pessoas saudáveis recorram a esses medicamentos. Em breve, viver sem dor passa a ser um direito constitucional.

A dor é vista como um sinal de fraqueza que deve ser eliminada ou ocultada. A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho.

Nas sociedades do martírio (idade média) a dor era exaltada. Nas sociedades da disciplina (idade moderna) a dor era um ingrediente importante de dominação. Nas sociedades pôs moderna a dor deve ser abolida. O corpo hedonista se generaliza, destinado apenas ao desfrute.

A vida é amortecida numa sobrevivência confortável.

A forma como uma pessoa reage a dor diz muito sobre ela. A algofobia se prolonga no social. As lutas políticas que envolvem dificuldades e confrontações dolorosas são abandonadas. Busca-se os consensos, uma política paliativa. O Centro difuso acomoda a todos.

Apenas verdades doem. Tudo que é verdadeiro é doloroso. A sociedade paliativa é uma sociedade sem verdades, um inferno do igual. Vivemos a Era da pós verdade, dos fakenews, da apatia a realidade.

Marchamos para uma democracia paliativa, uma pós democracia.

A dor é uma negatividade indesejada. A psicologia atual se ocupa da positividade, do bem-estar e da felicidade, por isso abandonou Freud.

A resiliência, forma espiritual da resistência, é desejada pela sociedade do desempenho. A cultura da curtição esqueceu-se que a dor purifica, permite a catarse. A dor foi condenada a calar-se. O sofrimento deixou de ser caminho da redenção.

É a dor que distingue o pensamento do cálculo da inteligência artificial. Não haverá nenhum algoritmo da dor. Apenas a vida é capaz de sentir dor, consegue pensar. Os algoritmos da inteligência artificial tornam o comportamento humano transparente, ou seja, calculável e controlável.

A ordem digital é anestésica, leva aos esquecimento do ser. A sociedade paliativa recusa qualquer conduta heroica. É tempo do hedonismo, do bem-estar onírico, sem dor e contradições, tempo da fruição do consumo. É o fim do último ser humano, previsto por Nietzsche

A sociedade paliativa elimina a empatia, o outro desaparece. Os seres humanos morrem solitários em UTIs, sem qualquer atenção humana. O distanciamento social da pandemia acentuou essa perda de empatia.

É o fim da compaixão, do afeto de solidariedade. Somos movidos pelo afeto da indiferença. A bolha digital nos blinda contra o outro.

A medicina de mercado não conseguiu ainda transformar os cuidados paliativos em mercadoria, em procedimentos padronizados e contabilizados. Aí reside os limites à sua expansão: como transformar empatia e acolhimento em procedimentos lucrativos?

O que há em mim é sobretudo o cansaço da alma, parodiando Fernando Pessoa.

As ideias aqui expostas são releituras de Byung-Chul Han.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

sábado, 6 de agosto de 2022

GARCIA MORENO, FREUD E O MARKETING DA ODONTOLOGIA

 Garcia Moreno, Freud e o Marketing da Odontologia.
(por Antonio Samarone)

O anúncio pela imprensa e pelo rádio é objeto de uma atividade especializada, onde os conhecimentos da psicologia têm ampla aplicação. Dizia Garcia Moreno: “O racional e o afetivo, a sugestão e a convicção, tem o seu lugar próprio, a convocação estratégica, na redação de um anúncio.

Uma divagação:

O nome do psiquiatra sergipano João Batista Perez Garcia Moreno é uma dupla homenagem; o “João Batista” refere-se ao avô, Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro, e o “Perez Garcia Moreno” ao ditador equatoriano Juan Perez Garcia Moreno.

João Batista Perez Garcia Moreno foi um intelectual vigoroso, psiquiatra, professor, autor do belíssimo livro de contos “Cajueiros dos Papagaios (1959), falou sobre quase tudo. Entretanto, esse texto, analisando um anúncio de jornal com o instrumental teórico da psicanálise, foi para mim uma grande novidade.

Vamos ao pensamento de Garcia Moreno:

“O publicitário fita o mundo subterrâneo do sentimento e das tendências instintivas para impor, de maneira certa e segura, quase irracional, automática, com o império de um estímulo associativo, a sugestão útil e calculada.”

“Quem quiser que manuseie as revistas ilustradas deste doce mês de dezembro, mês dos presentes e dos orçamentos atomizados, e veja as seduções psicológicas dos anúncios.”

Mas não é tais anúncios que ele analisava, eles são muitos evidentes, não demandam a ginástica mental de uma psicanálise. Já o anúncio abaixo, publicado no jornal O Nordeste, de 20/12/1952 – 1ª pag., 3ª coluna é mais discreto.

O.M.L.

“Não decepador de boca, por ser consciente nos serviços de clínica dentária. Especialista no aproveitamento dos dentes, inclusive os condenados ao boticão e a lata do lixo, com rara exceção. Não pagará um centavo, se o trabalho de clínica ou prótese não for perfeito.”

É sobre esse anuncio banal, que Garcia Moreno aplica a doutrina freudiana da psicanálise. Vamos a bela reflexão do nosso intelectual:

“Note-se que castrar e castigo são galhos de uma mesma árvore etimológica. A castração é, pois, o supremo castigo, experimentado e vivido, com suprema angústia, na pré-história da personalidade."

Se a chamada amnesia infantil varre-a do campo da consciência, vai viver, para sempre, na obscuridade do inconsciente, dissimulada mais ardente, como fogo de monturo.”

“Na mecânica psíquica, transmuta-se nas realidades simbólicas. Qualquer mutilação corpórea é um nexo de associação inconsciente que reacende a ansiedade do temor remoto da castração.”

“Psicanaliticamente, a queda dos primeiros dentes tem o sentido vivencial inconsciente de uma castração imposta pela mãe natureza, tão poderosa quanto o pai vingador.”

“Mas a natureza é ambivalente e generosa. Castra, arrancando os dentes. Apiedada, regenitaliza com a segunda dentição. Ao trauma psíquico, da simbólica castração dentária segue-se o momento triunfal da refalização com os novos dentes que repontam, com o sentido exato de natural compensadora prótese genital.”

“Note-se que o dentista do anúncio é castrador e refalizador, um especialista no reaproveitamento dos dentes. O odontólogo dos primeiros tempos, dos passos iniciais da profissão, era o tira dentes, o castrador por excelência.”

“O clássico horror ao dentista mutilador tem uma razão bem mais profunda do que a dor do arrancamento em si mesma. É a revivescência do medo ansioso da castração.”

“O odontólogo moderno, com a sua engenharia de pontes e os recursos da prótese atual, faz renascer no homem aquele menino, perdido de contentamento, com a sua alegria de regenitalizado, no triunfo inefável de quem sente, na 3ª dentição, a realização compensadora e suspirada.”

“Quem repara na expansão jubilosa dos que inauguram uma dentadura nova, anatômica e funcionalmente perfeita, enxerga algo mais do que o prazer do sentimento estético da fachada humana reconstituída ou da fisiologia restabelecida.”

“O dentista é identificado a mãe natureza generosa e apiedada, que regenera, simbolicamente, o pênis e mergulha mais fundo, no inconsciente do homem, o complexo trágico da castração.”

“Prometer no anuncio, não decepar a boca, primeira zona de fixação exógena da criatura, aproveitar os dentes condenados ao boticão, constituem uma projeção de vivências e uma mensagem de maravilhosa intuição, endereçada aos permanentes anseios de refalização do homem.”

Esse artigo foi publicado por Garcia Moreno, numa revista médica de 1953.

Antonio Samarone. (medico sanitarista)

O DARWINISMO EM SERGIPE

 O darwinismo em Sergipe.
(Antonio Samarone)

O presidente da Academia Sergipana de Medicina anunciou no almoço da SOMESE, que a entidade iniciaria um serie de “tertúlias” pelo interior de Sergipe, e a primeira seria no centenário Gabinete de Leituras de Maruim.

Ponderei: ótimo, vamos poder discutir a importância do médico Guedes Cabral no alvorecer do movimento republicano em Sergipe. Segundo o historiador Adailton Andrade, Guedes Cabral foi orador do Gabinete de Leituras, por sete anos, o tempo que passou em Sergipe.

Senti que a minha lembrança não foi bem aceita. E quem foi Guedes Cabral, pensou a maioria.

Domingos Guedes Cabral nasceu em Salvador, em 29 de outubro de 1852, sendo seus pais o educador Domingos Guedes Cabral e Faustina Maria do Nascimento.

Tentou, inicialmente, a carreira jurídica. Depois, estudou Filosofia, mas terminou descobrindo que a Medicina seria a sua profissão. Para ele "a Medicina era a nova e única verdade filosófica"

Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1870 e por ela concluiu o curso médico no ano de 1875. A sua tese “Funções do Cérebro”, foi rejeitada pela Faculdade.

A tese que Domingos Guedes Cabral apresentou à Faculdade de Medicina da Bahia, “Funções do Cérebro”, defendia ideias darwinistas e materialistas.

Trata-se de um dos primeiros trabalhos de orientação darwinista produzido por um brasileiro, aceitando inclusive a descendência simiesca do homem.

Foi um assombro para uma Faculdade de Medicina voltada para a religião. A medicina brasileira não descende da tradição hipocrática, muito menos do iluminismo, ela é filha dos mosteiros portugueses e da medicina religiosa ensinada em Coimbra.

A tese de Guedes Cabral procurou localizar a alma humana no cérebro, e concluiu: “sensação, movimento, pensamento, sentimento, encontramo-los nós como propriedades dos elementos cerebrais. A alma. porém, não, nem lhe encontramos vestígios aí”.

A tese tirava da alma essas funções da psique humana. Comprou uma briga e pagou um preço alto por sua verdade.

Para receber a carta de doutor em medicina, Guedes Cabral precisou escrever uma nova tese, banal, repetitiva, com o tema: “Qual o melhor tratamento para a Febre Amarela”.

Funções do Cérebro era um trabalho de fôlego, com mais de duzentas páginas, na qual o autor demonstrava que conhecia as principais obras de anatomia, antropologia e fisiologia de sua época.

A Faculdade de Medicina da Bahia rejeitava até o paradigma celular.

Mesmo derrotado na Faculdade, Guedes Cabral reafirmava a sua opção pela ciência:

“A ciência falou primitivamente pela boca dos augures, das sibyllas, dos bardos, dos poetas, dos profetas e dos patriarcas; depois, pela dos alquimistas, dos metafísicos e dos monges; depois, pelos dos astrólogos, dos matemáticos, dos naturalistas e dos reformadores. É chegada a hora de render os postos, cabe a vez ao antropólogo e ao anatomista.”

Cansado de responder a editoriais em diversos jornais, em 1876, Guedes Cabral terminou por mudar-se para Laranjeiras, no estado de Sergipe, visando um ambiente tranquilo para exercer a sua clínica.

Acreditava ele que a tradição intelectual sergipana com o darwinismo, a tese de doutoramento apresentada por Sylvio Romero à Faculdade de Direito do Recife, propunha a aplicação do darwinismo ao Direito, inspirado no jurista alemão Rudolf Ihering, garantiria a ele uma boa recepção em Sergipe.

Puro ilusão, em vez de encontrar um local de paz e tranquilidade, onde pudesse começar sua carreira de médico, foi recebido de forma hostil por um editorial no jornal local, que convidava os habitantes da cidade a enfrentar o novo ateu que havia chegado.

Anos mais tarde, um religioso católico, o cônego Philadelfo de Oliveira, que escreveu a História de Laranjeiras, afirmava que as atitudes do jovem médico Guedes Cabral eram fruto do medo da morte. Esse medo seria o responsável por seu ateísmo e sua irritação com o mundo do sagrado.

Escreveu Philadelfo:

“Laranjeiras também teve sua luta religiosa, não chegando ao fanatismo, limitando-se a defender energicamente a sua religião e as suas tradições como legados sagrados dos seus antepassados. Todas as revoluções têm os seus precursores. A luta religiosa em Laranjeiras teve como precursor o Dr. Domingos Guedes Cabral, médico pela Academia da Bahia, onde foi perseguido por causa do seu irritante e inoportuno ateísmo. [...]
Era o Dr. Guedes Cabral tuberculoso e eis a causa da irritabilidade e do seu desespero na vida. O céptico tinha, porém, grande inteligência, caráter rígido e inquebrantável.”

Guedes Cabral não cedeu!

Na visão de Jackson da Silva Lima, o médico Domingos Guedes Cabral se estabelecera em Laranjeiras, por volta de 1876, após ser banido de Salvador, enfrentou o clero e seculares que se insurgiram contra a sua tese de doutoramento – As funções do cérebro. Não vinha fazer filosofia, e sim clinicar. Mas, não ficou indiferente às provocações, quando fustigado por médicos e magistrados locais, incomodados com o seu “irritante e inoportuno ateísmo”.

Carcomido pela tuberculose, Guedes Cabral retornou à Salvador, com a saúde já bastante deteriorada, vindo a falecer prematuramente nessa cidade, a 27 de janeiro de 1883, com trinta e um anos de idade.

Na visão de Guedes Cabral, o que a sociedade via como “perverso” e o Direito como “criminoso”, a ciência chamaria “doente”; onde o catolicismo classificava como “diabólico” e os espiritualistas a “impossibilidade de manifestação do Eu psicológico”, a ciência explicava em termos de desarranjos anatômicos ou desvios fisiológicos.

O fim dos exorcismos, das penitenciárias, masmorras e patíbulos, pregava Guedes Cabral. Triunfando a ciência positiva, viveríamos sob o domínio da “mão sábia do mestre e da droga farmacêutica”.

A medicina católica do século XIX excomungou Guedes Cabral pelo seu materialismo, tentou bani-lo da história, apagar a sua memória. A Academia de Medicina de Sergipe precisa revogar o decreto de excomunhão de Guedes Cabral.

Para a medicina sergipana, os fatos mais relevantes ocorridos na Sala de Leituras de Maruim, foram as conferência de Guedes Cabral sobre a luta republicana, por volta de 1880.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

OS PRIMEIROS HOMEOPATAS EM SERGIPE

Os Primeiros homeopatas em Sergipe.
(por Antonio Samarone)

O médico alemão Samuel Christian Friderich Hahnemann (1755 – 1843) publicou o seu “Organon der rationellen heilkunde” (“Organon da arte de curar”) em 1810, em Dresden, onde expõe o seu método terapêutico (similia similibus curantur).

As bases da homeopatia estavam lançadas.

O Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, é apontado como o primeiro brasileiro a dedicar-se ao estudo da homeopatia, amigo de Hahnemann, com quem mantinha correspondência regular.

A partir de 1840 a homeopatia começa a ser praticada no Brasil por profissionais. Os principais introdutores foram o francês Benoit Jules Mure (1809 – 1858), e o médico português João Vicente Martins (1808 – 1854).

Em 10 de março de 1844 eles fundaram no Rio de Janeiro o “Instituto Homeopático do Brasil”, sendo o Doutor Bento Mure o seu primeiro Presidente. Em 1845, fundaram a “Escola Homeopática do Brasil”, visando à formação profissional, um curso com duração de três anos, tendo o mesmo Bento Mure como diretor.

O próprio João Vicente Martins viaja para Recife, Salvador, Maceió e Aracaju para instalar filial do Instituto Homeopático do Brasil.

Em Sergipe, ele encontrou adesão e apoio do médico sergipano Sabino Olegário Ludgero Pinho, seguidor da doutrina homeopática desde 1847.

O Doutor Sabino é natural de São Cristóvão, nascido á 11 de julho de 1820. Recebeu o grau de doutor em medicina em 21 de novembro de 1845, defendendo a tese “Considerações acerca da música e a sua influencia sobre o organismo”.

O Dr. Sabino clinicou em várias províncias do Norte, fixando-se em Recife. Foi o fundador e Diretor da Escola Homeopática de Pernambuco, fundador das Sociedades Homeopatas da Paraíba e do Maranhão.

Ele foi membro do Instituto Homeopático do Brasil. Foi o criador da famosa “Farmácia Sabino” em Recife, cidade aonde veio a falecer em 17 de novembro de 1869.

O doutor Sabino Pinho foi deputado provincial por Pernambuco, nas legislaturas de 1856 e 1863. Autor de vários trabalhos sobre a homeopatia: “vade-mecum do homeopata”, “Propaganda homeopática em Pernambuco”, “A homeopatia e a Cholera”, “Apontamento para a história da homeopatia”, entre outros.

O doutor Sabino Pinho teve sua biografia escrita pelo irmão, bacharel Themistocles Belino de Pinho, publicado no “Jornal de Recife” entre os anos de 1860 e 1863.

O segundo médico sergipano a aderir a homeopata foi Joaquim José de Oliveira. Homeopata, literato e músico.

Joaquim José nasceu em S. Cristóvão em 1820. Depois de formado em medicina na Bahia, em 1844, voltou a Sergipe e foi deputado provincial, comissário vacinador, provedor da saúde pública, capitão, cirurgião-mor da guarda nacional e vice-presidente da Província.

Joaquim esteve algum tempo no governo provincial. Em 1863, foi inspetor da tesouraria, cargo em que se aposentou, e por fim inspetor da alfândega de Aracaju, depois da do Maranhão e mais tarde da de Pernambuco.

Médico homeopata, distinto literato e músico de influência. Tocava piano admiravelmente. Indo ao Rio de Janeiro em busca de alívio aos seus sofrimentos, ali faleceu a 16 de setembro de 1872.

Joaquim José foi um homem de talento pujante, escreveu: História de Sergipe, Histórias perdidas, Apontamentos para a História de Sergipe, e diversas composições musicais sacras e profanas.

Chama à atenção que os dois primeiros sergipanos homeopatas possuíam profunda ligação com a música.

Antonio Samarone (médico sanitarista)