sábado, 27 de abril de 2019

GENTE SERGIPANA - PROFESSORA HELENA MENESES


Gente Sergipana – Professora Helena Meneses (89 anos).

Dona Helena, filha de Dona Branquinha e Seu Zé Goioiô. Minha professora do primário, no Educandário Santa Terezinha, no Beco Novo.

Dona Helena era uma educadora austera, com a palmatória sempre à vista. Nos ditados, a gente tinha que perceber, pelo tom de voz e respiração da professora, se era ponto, dois pontos, exclamação, interjeição ou vírgula. E até ponto e vírgula.

Foi na escola de Dona Helena que aprendi a tabuada. Oito vezes nove, e nove vezes sete, foram os últimos que decorrei. E isso, cantado. Aos sábados, aula extra, era a temida sabatina. Errou, a palmatória cantava. Apesar de um excesso de rudeza, Dona Helena foi uma boa professora. Disciplinadora, só passava quem apreendia.

Na escola de dona Helena não tinha latrina. As necessidades eram feitas no quintal, num mata-pasto. Para evitar que saísse ao mesmo tempo um menino e uma menina, existia uma pedra na mesa dela. Quem saía levava a pedra. O curioso é que a gente chamava a pedra de licença. Professora cadê a licença? Se não está aqui é porque alguém está fazendo as necessidades, espere, respondia ela.

Quase que diariamente chegava uma mãe pedindo para Dona Helena liberar os alunos para acompanharem um enterro de anjo. Poucos meninos escapavam da mortalidade infantil. Só lá em casa foram três, dois do mal de sete dias.

Dona Helena morreu só, num abrigo em Itabaiana. Tentei visitá-la, mas não deu certo. Ao avistar-me, ela baixou a cabeça. Achei que ela ficou constrangida, e recuei. Fiquei de longe, pensando na dureza da vida.

Dona Helena de Branquinha, como era conhecida, foi uma católica praticante, fervorosa. Filha de Maria. Puxava os cantos das missas e organizava as procissões. Não merecia a solidão que teve na velhice. Morreu moça, nunca casou.

Cada um cumpre a sua sina. Foi a senhora que me ensinou a tabuada. Em reconhecimento estou indo ao seu sepultamento, no Cemitério de Santo Antônio e Almas, em Itabaiana.
Descanse em Paz!

Antônio Samarone. 

quinta-feira, 25 de abril de 2019

GENTE SERGIPANA - SINVAL ANDRADE DOS SANTOS.


Gente Sergipana - Sinval Andrade dos Santos, médico acupunturista. 

Nasceu em 31 de julho de 1938, em Itabaiana/SE, filho de José Rodrigues Santos (Zeca de Áurea) e Dona Rosália Andrade Santos. Ceboleiro de quatro costado. Vejam um pouco da genealogia de Sinval, no estilo Itabaianense.

Seu Zeca, o pai, era alfaiate, filho de Dona Áurea e Seu Manezinho Priscina, dono de loja de tecidos, na esquina do Beco Novo com a Rua da Pedreira. Seu Zeca de Áurea foi casado com Dona Rosália, irmã de Antonio Magneto. Seu Zeca de Áurea era irmão de Juca Cego, que fazia o melhor vinagre artesanal do Brasil.

Sinval Andrade tem as suas raízes no Beco Novo, residiu na casa número 06, vizinho a Antonio de Mojica. É irmão de Antônio, também médico, que mora para as bandas de Araraquara; de Clodomir, homem de vasta cultura; de Maria, viúva de Benedito de Candoca e da professora Zelinda.

Sinval Andrade fez o primário em Itabaiana, no Grupo Guilhermino Bezerra. Formou-se em medicina no Rio de Janeiro, em 5 de dezembro de 1967. Retornou à Sergipe, e exerceu a anestesiologia por muito tempo. Autor da história da anestesiologia em Sergipe. Em 1973, assumiu a chefia da primeira UTI de Sergipe, no Hospital de Cirurgia. 

Sinval Andrade é casado com Katia, irmã do famoso Dr, Wagner da Diagnose, é pai de Vinicius/ cirurgião de aparelho digestivo, Tatiana/anestesista, Marcelo radiologista, alem da advogada Bianca, figura de destaque no departamento jurídico da Petrobras.

Foi meu professor de Farmacologia e de Anestesiologia, na Faculdade de Medicina da UFS.

Antônio Samarone.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

GENTE SERGIPANA - ZÉ BIGODINHO



Gente Sergipana (memória) – Zé Bigodinho (por Antônio Samarone)

José Alves dos Santos (Zé Bigodinho), descendente dos ferreiros. Nascido em 01 de março de 1918, na Matapoã. Filho de Claro Alves dos Santos e Dona Francisca Bernardina de Jesus. Casado com Maria Irene Oliveira, filha de Manoel Antônio de Oliveira (Manoel da salgadeira) e Maria Leobina de Oliveira, gente do povoado Porto, bem próximo ao matadouro.

Zé Bigodinho, era agricultor e pequeno comerciante (bodegueiro). Nas horas vagas, trabalhava como alfaiate. Foi inspetor de alunos no Murilo Braga. No seu "ponto" comercial, esquina da Praça Santa Cruz, vendia-se bilhetes da loteria federal, e dos estados de Minas Gerais e Pernambuco.

Foi na casa lotérica de Zé Bigodinho que Antônio Fernandes de João do Volta tirou primeiro prêmio na Federal, com o bilhete 24.979, caso único em Itabaiana. Ganhou uma fortuna! Comprou um relógio de ouro e um Simca Chambord novo, de duas cores, em Recife. Foi uma novidade em Itabaiana.

Zé Bigodinho era girento, mexia com tudo. Foi agente da Sul América Capitalização e da INTERCAP (companhia internacional de capitalização).

O que ficou em minha lembrança, foi Zé Bigodinho na frente das procissões, com o sobretudo verde, sem mangas, carregando as insígnias da Irmandade das Santas Almas de Itabaiana, de onde ele era o eterno tesoureiro.

Para se ter o sagrado direito de um sepultamento no Cemitério de Santo Antônio, passava-se pela liberação de Zé Bigodinho. Os meus 4 irmãos que morreram ainda anjos, mamãe conseguiu enterrar no Campo Santo.

Controlar o cemitério e sair na frente das procissões, com aquela tradicional indumentária da Irmandade das almas, fazia de Zé Bigodinho um homem importante, aos meus olhos. Quando podia, ainda me gabava: é meu parente.

Faleceu novo, em 12 de julho de 1972, aos 54 anos. Deixando nove filhos: Maria, José Oliveira (o que queria ser padre), personalidade renomada na justiça pernambucana; Agdo (o popular Maceta), Libória, Milton (meu colega de turma), Teresinha, Jackson (o filosofo), Maristela e Alda Oliveira Santos.

Os tempos mudaram. Zé Bigodinho morreu novo, aos 54 anos. Mas a imagem em minha memória é de um velhinho, baixo, sério, importante, sentado em seu pequeno estabelecimento, vendendo aqueles bilhetes compridos da loteria federal.  

Antônio Samarone.

LATA D'ÁGUA NA CABEÇA




Lata d´água na cabeça. (por Antônio Samarone)

A água era rara em Itabaiana, antes da água encanada. Os ricos construíam cisternas, para garantir a sua água. Os remediados comprovam aos carregadores, e os pobres se largavam em busca das águas barrentas dos tanques e açudes. Tanque do Povo, no centro; Tanquinho, Santa Cruz, Aloque, Açudes Velho, Novo e do Matadouro na periferia.

O Beco Novo se acordava alvoroçado, uma procissão de gente em direção ao Tanquinho, em busca de água, para se fazer o café e lavar o rosto. Banho, banho mesmo, era uma fidalguia.

Nem menino escapava dessa via-sacra em busca de água. Quando eu passava na esquina do Beco do Ouvidor gritava: Dona Mãezinha, não vai mandar os meninos buscar água? Ela já levantava com cipó na mão: acorda preguiçosos, o filho de comadre Lurdes já fez três viagem ao Tanquinho. Eu saia rindo da perversidade.

Entre os carregadores de água, que abasteciam a cidade, com quatro latas no lombo dos jegues, duas de cada lado, e que viviam disso, lembro-me de Seu Carbureto, um senhor baixinho, pés descalços, sempre avexado, que enchia a caixa d’água do Bar Brasília e dos ricos da Praça. Eu achava que uma lata d’água de Seu Carbureto deveria custar uma fortuna. Quem fim levaram os filhos de Seu Carbureto, são vivos?

Sei que é quase impossível uma pessoa que sempre teve água na torneira imaginar o que estou contando. No dia em que chegou água em Itabaiana, ficamos acordados esperando os primeiros pingos na torneira. Por volta das 9 horas da manhã, surgiu o boato: na Rua da Vitória já chegou. Eu sair na carreira para ser o primeiro a ver novidade na casa de Rosália. E era verdade! Uma aguinha fraca, chirriando, passava horas para se encher um pote. Mas chegou.

Aquele conforto acabou com a festa nos caminhos dos tanques. Como já tínhamos água da Ribeira, dentro de casa, entupiram os tanques para se fazer casa. Eita povo sem juízo. Aterraram a Santa Cruz, ali perto do cabaré de Laura; o Tanque do Povo para se construir um mercado. Taparam tudo. Não sobrou nem a memória.

Tem as lembranças negativas. Conta-se que o finado Euclides, chefe político da UDN, mandou prender Seu Vital da Lapa, pequeno comerciante, um homem de bem, só porque ele era do PSD. E nessa prisão arbitrária a tortura correu solta: além de apagarem um charuto no rosto de Seu Vital, ele foi obrigado a encher a caixa d’água da cadeia com uma lata furada, indo buscar no Tanque do Povo.

Não sei se o fato é comprovado pelos historiadores; mas todo mundo em Itabaiana daqueles tempos sabia dessa estória. Eu se fechasse os olhos via Seu Vital todo molhado, com a lata furada na cabeça.

Antônio Samarone.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

O CRISTO DA MANGABEIRA.



O Cristo da Mangabeira (por Antônio Samarone).

A Mangabeira é uma pequena comunidade camponesa, no pé da Serra Comprida, em Itabaiana. Vive-se plantando e irrigando hortaliças, com a água da barragem da Ribeira. Exporta-se coentro e cebolinha para Salvador.

A Mangabeira não tem nem ricos nem pobres. Não tem fome, desemprego, prostituição, morador de rua, nem gente fumando crack. A juventude tem escola. O povoado é todo pavimentado, tem água encanada e luz elétrica.

Mas nada disso caracteriza o povoado. Na redondeza, outros possuem a mesma qualidade de vida. A Mangabeira situa-se no entorno de um grande anfiteatro, essa é a novidade. É uma pequena Roma com o seu Coliseu. É nesse anfiteatro onde ocorre uma grande e inexplicada manifestação popular.

Há 25 anos, a comunidade celebra a Paixão de Cristo com uma surpreendente encenação teatral. No início era uma via sacra dramatizada, depois evoluiu. Uma Nova Jerusalém de pé de serra. Tudo é grandioso.

A comunidade entra de corpo e alma. Cada figurante arca com as despesas do seu figurino, e não é nada simples. Cristo, Herodes, Pilatos, Madalena, Barrabás, até o Satanás. Estão todos bem vestidos. Um elenco de 90 pessoas, além dos figurantes e do pessoal de apoio.

A Mangabeira é uma comunidade de católicos (a moda antiga). Tem uma capela patrocinada por São Joaquim e Santa Ana. O padre, Fábio Gomes Negromonte, é da Paróquia da Imaculada Conceição e São Lucas. No entanto, o vigário só assiste. Nem ajuda, nem atrapalha.

Tudo é por conta da comunidade. A professora Vera e o agricultor Alex são os líderes. Seu Clóvis é a referência, a quem todos respeitam. Alex é também o diretor artístico.

Edézio, um serralheiro, é o Cristo, e Gladston (Gagá), o Satanás. Adailson é Herodes. Tudo ensaiado minunciosamente ao longo do ano. Todos conhecem as suas falas. A sonoplastia é com Adelmo, tudo no computador. O fundo musical é perfeito. A qualidade do som é garantida por uma empresa especializada de Itabaiana. Todos os principais personagem tem um microfone na lapela, daqueles que o William Bonner usa no Jornal Nacional.

A iluminação cênica fica por conta de Lambão. Um gordo simpático, que usa tecnologia de primeiro mundo. Tudo importado. Na retaguarda, um gerador de 700 KVA, para garantir que não faltará energia. Tudo com efeitos especiais, focos e luzes coloridas. Numa cena, um anjo surge das alturas, como se descesse do céu, movido por um guindaste de 60 metros.

Sei que vocês estão perguntando: e quem paga essa conta? A prefeitura de Itabaiana ajuda. O evento é patrimônio imaterial da cidade.

O que me parece é que no Brasil o povo está pronto para crescer, para prosperar, construir um país civilizado, para viver sem violência, sem esses ódios bestas. A elite é quem estragou, ou já nasceu estragada.  

Eu vi o Cristo na Mangabeira, na religiosidade do povo. Tudo a moda deles. A narrativa, as estórias, a fé e a falta de fé. Vi um público de três mil pessoas encher as arquibancadas, encher a praça. Dezenas de ônibus despejando gente. Outros de carros, bicicleta, no lombo de uma animal, a pé.  Lotou de tabaréus, para ver o Cristo na Mangabeira.

Todos muito atentos para ouvirem as mesmas passagens bíblicas. A tentação de Cristo, a expulsão dos vendilhões do templo, o perdão de Madalena, o sofrimento de Jó. Só o vinho não precisou seu multiplicado, poucos na redondeza bebem na Semana Santa. Nenhuma barraca vendia bebida alcoólica, isso eu investiguei.

Sei que vocês estão curiosos, e uma festa desse porte não é manipulada pelos políticos. Achei que não... Todos lá, apertando mãos, distribuindo sorrisos, mas sem protagonismo. Na Mangabeira o povo tem de o quê viver. Essa condição é a base da liberdade. Não vi ninguém arrodeando os políticos.

Assisti uma manifestação religiosa autônoma. Ao mesmo tempo senti como a cultura possui um papel agregador, como une as pessoas. Vivenciei uma manifestação de vaidade coletiva, de força comunitária.

O Felipe, um garoto de 12 anos, me disse orgulhoso: já fiz a minha parte, cumprir a minha missão. Eu perguntei curioso, qual foi a sua parte? Ele encheu o peito: fui pegar o jegue que vai carregar Jesus, e ainda vim montado.

Antônio Samarone.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

OS RETRATOS DA INSANIDADE.


Os Retratos da Insanidade... (Por Antônio Samarone)

Dr. Hugh Welch Diamond (1809 – 1886). Psiquiatra e um dos primeiros fotógrafos britânicos. Diretor do Departamento Feminino no Surrey County Asylum. Ele fez uma série de retratos de seus pacientes pelos quais agora é famoso. Os retratos eram para o trabalho dele em fisionomia, uma ciência baseada em “a avaliação do caráter de uma pessoa ou personalidade de sua aparência exterior, especialmente a face.”

O Dr. Diamond acreditava firmemente em sua capacidade de decifrar a doença de um paciente com base em sua aparência facial, que essas fotos deveriam ilustrar o seu artigo de 1856:  "Sobre a aplicação da fotografia aos fenômenos fisionômicos e mentais da insanidade".

O Dr. Diamond postulou que os retratos dos seus pacientes poderiam ser usados para registrar a aparência de pacientes insanos, a fim de usá-los para comparação e diagnóstico para futuros pacientes; ​​para identificar o paciente na readmissão; e para mostrar aos pacientes o que eles mesmos pareciam, uma visão realista de si mesmos em vez de distorcida em suas mentes e, portanto, ajudar a tratar sua doença mental.

No século XIX, o semblante (semblant) era visto como uma janela para o inconsciente. Os olhos são o espelho da alma, no dizer do senso comum. Essa corrente foi desacreditada pela proximidade com a frenologia, teoria que reivindicava ser capaz de determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade pela forma da cabeça. Desenvolvida por médico alemão Franz Joseph Gall.

Hoje se sabe que havia um exagero determinista, influência racista e contaminação eugênica nessa pretensão. A fotografia não possuía essa capacidade diagnóstica defendida pelo Dr. Diamond.

Contudo, o retrato inesperado, quando capta o semblante sem a proteção do persona (máscara de ator), quando pega a pessoa distraída, sem saber que está sendo fotografada, revela muito de suas tendências. Mostra aparências que o próprio fotografado desconhecia. Prestem a atenção.

Antônio Samarone.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

ASSIM FALOU ZARATRUSTRA...


Assim falou Zaratustra... (por Antônio Samarone)

Para legendar uma foto de 1906, início da psicanálise nos Estados Unidos, expressei uma velha opinião formada: os americanos trocaram a psiquiatria de escolas (Kraepelin, Freud, Bleuler, Jaspers, etc) por uma de escalas (sequência de perguntas com alternativas, com o cálculo final dos escores, para definir o perfil dos pacientes). Isso para atender os interesses da indústria farmacêutica. E passaram a detonar Freud.

Átalo Crispim de Souza, velho e erudito clínico homeopata, me respondeu:

“A medicina como um todo, não somente a psiquiatria, entrou num beco sem saída quando passou a ter uma visão única: a norte americana, propagada no resto do mundo. Neste paradigma, somente são dignos de serem usados os conhecimentos que possam ser comprovados por todos (Um dos pilares do método científico).”

“Jogou-se no lixo a intuição, a experiência pessoal, os conhecimentos obtidos por métodos não científicos e, last but not least, a participação de entidades superiores a nós - o basileu de Cós, por exemplo, que em certos momentos nos socorre, e aos pacientes.” 

“A doença é algo pessoal, por ser decorrência da vida de um indivíduo, que é única e irrepetível. Colocá-la na camisa de força do método científico leva à pobreza conceitual, ao afastamento das raízes arquetípicas do viver e do adoecer - no ser humano nada está feito, estamos sempre andando no escuro, temos sempre uma expectativa a atingir, etc...”

Eu acrescento:

A medicina abandonou o imperativo de aliviar o sofrimento humano, secundarizou o paciente, e voltou-se para as razões econômicas. Tornou-se uma “medicina baseada no lucro”. Para manter as aparências, revestiu-se com um suposto manto científico.

Quando a assistência à saúde se transformou em atividade econômica, o cuidado virou mercadoria e assumiu as suas características (padronização, impessoalidade, supremacia do valor de troca sobre o valor de uso, e o lucro como o seu principal objetivo), todas as subjetividades foram desconsideradas. Os procedimentos previstos nos protocolos precisam de justificativas de uma suposta ciência (o método estatístico), que recebem o pomposo nome de “medicina baseada em evidências”!

“A dúvida e a incerteza sobre o destino e a finitude dos seres humanos, constituem o cerne da prática médica” – Ali Ramadam.

Antônio Samarone.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

DOIDOS DE TODOS OS GÊNEROS.



Doidos de todos os gêneros. (por Antônio Samarone)

A saúde pública desconfia que o século XXI será dominado pela loucura. Os transtornos mentais, como chamam eufemisticamente os americanos, ocuparão o topo do sofrimento humano. Sem entrar na falsa polêmica se os transtornos mentais são doenças da alma, do espírito, da psiquê; ou distúrbios físico químico dos neurotransmissores, a verdade é que eles chegaram.

Tomando o The Global Burden of Disease Study (GBD) como fonte, no Brasil, os transtornos mentais representam a terceira maior carga de doenças, crescentes desde 1990. Esse estudo calcula a carga global das doenças em cada país, usando como principais indicadores o DALY (Disability Adjusted Life Years - Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade); e o YLD (Years Lived With Disabilit – Anos Vividos com Incapacidade).

Em 2015, os transtornos mentais foram responsáveis por 9,5% do total do DALY, ocupando a terceira posição na carga de doenças, atrás apenas das doenças cardiovasculares e dos cânceres. Entre os transtornos mentais foram responsáveis pela maior carga de doenças: transtornos depressivos 37,0%; transtorno de ansiedade 30,0%; esquizofrenia 6,0% e transtorno bipolar 6,0.

Em 2015, os transtornos mentais (TM) foram as principais causas de incapacidade, sendo responsáveis por 24,9% do total de YLD por todas as demais causas. Deixando mais claro, do total de pessoas incapacitadas por doenças no Brasil, 25% deve-se aos transtornos mentais.

Mesmo sendo mais graves no Brasil, esse crescimento dos transtornos mentais é mundial. Cinco entre as dez principais causas de incapacidade no mundo (YLD), pertencem as seguintes categorias: transtorno depressivos 13,0%; transtorno pelo uso do álcool 7,1%; esquizofrenia 4,0%; transtorno bipolar 3,3% e transtorno obsessivo compulsivo 2,8%.

Como os transtornos mentais, o terceiro maior problema de saúde pública no Brasil, observando-se a carga de doenças (DALY), não aparecem em nenhuma pauta de discussão? 78,8% dos brasileiros com sintomas depressivos clinicamente relevantes não recebem nenhum tratamento. O Brasil gasta menos de 2,00 US$ per capita no tratamento e na prevenção dos transtornos mentais; já os países ricos gastam, em média, mais de 50 US$.

Uma das razões do esquecimento dos transtornos mentais é a baixa mortalidade, apenas 1,2% do total do YLL (Years of Life Lost) no Brasil, sendo que 81% desses óbitos são decorrentes do uso de álcool. Esse baixo número decorre do aparecimento das comorbidades como causa ´principal nos atestados de óbito. As pesquisas apontam que a mortalidade em pessoas com transtornos mentais é 2,2 superior a população geral, e 80% dos suicídios são atribuídos aos transtornos mentais.

Você que chegou até aqui, nessa leitura árida e cheia de números, restou dúvidas sobre a gravidade dos transtornos mentais? Pois as autoridades sanitárias em Sergipe andam em direção contrária. (Sendo mais justo, no Brasil como um todo)

O Estado assumiu a urgência no Hospital São José, mas acabou com o núcleo de saúde mental, sobrando duas ou três pessoas para cuidarem dos problemas.

O município de Aracaju, que já teve uma rede de atenção psicossocial elogiada, e equipou as unidades básicas com profissionais de saúde mental, psiquiatras e psicólogos, passa na atual gestão por uma descalabro. Estamos no auge da desassistência, do descaso e da desorganização na rede psicossocial.

Sei que estou pregando no deserto. O movimento sanitário anda em baixa, e as autoridades competentes têm mais o que fazer, para andarem se preocupando com o sofrimento mental dos outros.

Antônio Samarone.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

AS REDES SOCIAIS SÃO O ÓPIO DO POVO?


As redes sociais são o ópio do povo? (por Antônio Samarone)

Não existem dúvidas: a vida desandou! O fundo do poço sempre pode ser aprofundado. A indignação nas redes sociais não gera uma narrativa consistente, nem leva a ações.

A sociedade do espetáculo criou a sociedade do escândalo, isso mesmo, ondas de escândalos se sucedem como numa série cinematográfica. Ondas de indignação são eficientes para mobilizações efêmeras.

O que está acontecendo?

Não se trata de uma dificuldade conjuntural, uma crise, um momento de dificuldade. Voltei aos clássicos, reli grundrisse, memórias do cárcere, história e consciência de classe, o que fazer, nada, nenhuma luz, eles falam de outra realidade.
   
Encontrei uma análise razoável lendo Byung-Chul, um filosofo sul coreano. Não se assustem, as referências são outras. Veja o que diz o novo guru:

A indignação digital é estéril, um estado afetivo, uma raiva que não visa o bem comum. A massa de indignação nas redes sociais não gera futuro, não produz movimentos consistentes. A indignação digital é parte da desagregação social em que vivemos.

A primeira grande narrativa ocidental, a Ilíada, é uma canto de cólera, relata e sustenta as ações heroicas. A indignação digital é raiva, impotência, um estado afetivo que não leva a nada. A indignação digital não é cantável.

O enxame digital não tem alma de massa, são indivíduos singularizados, não desenvolve o nós. O exame digital não se externa como uma voz, ele é só barulho. O homo digitalis é um aglomerado sem alma, sem espírito, uma massa isolada diante das telas. As mídias digitais singularizam o homem.

As massas tradicionais tinham poder, objetivos estáveis, marchavam numa direção. As massas digitais são efêmeras, enxames digitais, dissolvem-se rapidamente, não criam energia política.

 A globalização criou multidões, ajuntamentos de singularidades que se comunicam através de redes sociais. Essa multidão de solitários é subproduto da capitalismo financeiro, do novo espírito. A pós modernidade criou uma sociedade quem nem é de produção nem de consumo, uma sociedade da pós verdade.

A solidariedade desapareceu, o amor ao próximo perdeu o sentido. A privatização avançou até a alma. O sujeito do desempenho explora a si mesmo até ruir. Ele desenvolve uma auto agressividade que não raramente desemboca no suicídio.

A enxurrada de informações efêmeras leva a indiferença, agudiza a fadiga mental. O TDHI (déficit de atenção) não é uma doença, mas um mecanismo de defesa. Um fuga do precipício, uma recusa à corrida do desempenho, uma tentativa de retorno ao essencial.

Mídias narcisistas (Facebook, Twitter), sobrecarregam a auto referência, base dos processos depressivos. O tempo é desmontado numa sucessão de presentes disponíveis. É o fim do futuro, da esperança, do sonho e da expectativa. Não esperamos mais nada.

Em síntese, segundo o sul coreano, as redes sociais além de não ajudarem, atrapalham. São partes da dominação, da criação de um novo consenso, de uma nova sociedade, onde o único valor é o econômico. Tudo vira mercadoria.

Antônio Samarone.