sábado, 30 de outubro de 2021

O DIA DOS MORTOS


O Dia dos Mortos!
(por Antonio Samarone)

“Lembra-te que és pó e ao pó retornarás” (Gn 3,19)

A Vala Comum já foi o destino, a sepultura dos pobres e miseráveis. A principal reivindicação das Ligas Camponesas na Paraíba era “sete palmos de terra e um caixão”. A parte que lhes cabiam do latifúndio. Como disse o poeta, nem largo nem fundo.

Enterrar os mortos é um ato de fé e caridade cristã? Cristo ordena numa passagem do evangelho: “deixem os mortos enterrarem os mortos”. Nunca entendi.

Já Tonho Torto, quando anuncia um enterro em seu carro de som, em Itabaiana, faz um apelo: “convido a todos para esse ato de fé e caridade cristã. O timbre, o tom e a impostação da voz de Tonho Torto são convincentes e exclusivos para anunciar enterros.

Em Itabaiana, o culto aos mortos é anterior a chegada dos portugueses. No Pé da Serra, existem restos de um cemitério Tupinambá.

Possuímos uma Irmandade das Santas Almas do Fogo do Purgatório, desde 1665. Foi essa Irmandade que comprou o sítio ao Padre Sebastião Pedroso de Gois, em 1675, para construir a sede da Villa. Isso está registrado nos livros de Vladimir Carvalho, com cópia dos documentos. Não é lenda.

A Freguesia de Santo Antonio e Almas de Itabaiana foi criada em 30 de outubro de 1675. Portanto, estamos comemorando hoje, 346 anos. Nesta data, o Arraial passou a ser Freguesia. Viva a Freguesia de Itabaiana!

Itabaiana passou à condição de Villa em 1697, junto com Lagarto. Antes, existia apenas a cidade de São Cristóvão.

Voltando aos mortos em Itabaiana.

Meu pai nunca reclamou em vida, nada desejava além do pouco que possuía. Tinha apenas uma exigência: ser enterrado num jazigo perpétuo, no Cemitério de Santo Antonio e Almas de Itabaiana. E lá está, aguardando o juízo final.

Papai foi aprovado com louvor no primeiro teste: a pesagem na balança do arcanjo São Miguel. As anotações do anjo da guarda dele, em seu diário, sobre as boas obras de papai, foram positivas.
“Omnium Fidelium Defunctorum”.

O Dia dos Mortos é uma comemoração milenar. O paganismo romano fazia a sua festa. O cristianismo inventou a ressureição, que teremos acesso no dia do Juízo Final.

Itabaiana é uma terra de grandes sepultamentos. O povo presta atenção e comenta onde teve mais gente. Passou um enterro, o povo acompanha, mesmo sem conhecer o defunto.

Os mortos dormem em jardins floridos. Quem morre dorme,
repousa, descansa.

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O NINHO DE ARAPUÁ


O Ninho de Arapuá.
(por Antonio Samarone)

“Oricuri madurou é sinal de que arapuá já fez mel” – João do Valle.

Bateu um peso na consciência: o que fazer com ninho de arapuá, que impera soberano no alto de uma canafístula-brava, aqui em São José dos Náufragos? No fundo não é ninho é uma colmeia.

O ninho é uma bola preta de meio metro, de barro, gravetos e cera. Friável e grudento.

A Arapuá (Trigona ruficus) é uma abelha social, pretas, com reflexos violáceos. São as únicas que fazem ninhos pendurados em árvores, parecendo cupinzeiros.

As arapuás são valentes, mas não possuem ferrão ou se possuem não os usam. Quando são atacadas pelos humanos, reagem enrolando-se nos cabelos do agressor. O cabelo enrola e vira uma gosma inodora.

O mel é pouco e de gosto desagradável. São úteis na polinização das bananeiras. Mas são avexadas, terminam destruindo algumas flores, em especial de laranjeiras e coqueiros, atrapalhando a produção.

O povo acredita que elas são daninhas e prejudicam a frutificação.

São tratadas como pragas, com fogo e veneno.

Fui aconselhado a expulsá-las, mas resolvi protegê-las.

Antonio Samarone (médico sanitarista).


 

domingo, 24 de outubro de 2021

A ÚLTIMA VISITA


A Última Visita.
(por Antonio Samarone)

A morte era um acontecimento público.

Dona Amélia já voltou desenganada do Aracaju. O médico do Sanatório não conseguiu tratá-la. A sua tísica era galopante.

Na chegada, recebeu a visita de Dr. Pedro que disse o mesmo: “podem chamar o padre”. A visita do médico foi vista como um sinal de prestígio da moribunda.

Dona Amélia era viúva e morava só. Era fogueteira. Vivia disso. Morava numa casa ampla, chão batido e sem móveis. A sala da frente era abarrotada de peido de veio, chuvinha, taquarí, busca pé e bomba de breu.

A sua agonia de morte foi acompanhada pela vizinhança durante quinze dias.

Fecharam as janelas, acederam velas e puseram um vaso de água benta na entrada. Formou-se uma grande fila, dia e noite, a se despedir de Dona Amélia.

Menino não podia entrar. Eu tinha sete anos e entrei escondido de mamãe. Deram uma brecha e eu entrei. Foi o meu primeiro contato com a morte. Me despedi de dona Amélia com um olhar, não sabia o que dizer. Como até hoje não sei.

Numa segunda-feira cinzenta, o sino começou a tocar à finados e uma procissão desceu o Beco Novo, saindo da Igreja. A extrema unção ainda era o sacramento dos moribundos. Lembro-me dos detalhes.

Dona Amélia era uma mulher branquinha, de olhos claros, cabelos brancos, parecia uma idosa de cem anos. Morreu aos 67 anos. Dizia-se que ela possuía dinheiro enterrado. Foi a segunda esposa de um viúvo rico, comerciante de fumo.

Dona Amélia vivia de preto, no máximo cinza, era o que convinha as viúvas daqueles tempos.

Na época de São João, todo o dinheirinho que os meninos pegavam, corriam para casa de Dona Amélia. Dizia os meninos: - "Quero cinco cruzeiros de peido de veio". Ela respondia: “pegue vinte ali no canto”. E não fiscalizava. A gente sempre contava a mais. Ela sabia e ficava rindo.

Dona Amélia só saia para a Igreja, a feira e para comprar fumo na bodega de Dona Rosita. Ela gostava de mascar e fumava um cachimbo cheiroso. Só usava fumo do Lagarto ou de Arapiraca, e Dona Rosita vendia.

Mascar fumo era moda!
Mamãe também mascava capas de fumo, para ficar com a boca anestesiada, dizia ela. Talvez uma herança tupinambá. Mascava e cuspia. Um cuspe amarronzado.

Dona Amélia morreu sossegada, solenemente, sem grandes aflições ou angústias metafísicas. Dona Amélia era só, não houve luto.

Hoje, a morte é escondida. Morre-se solitariamente em hospitais, em silencio. O coração para sem fazer barulho. Parte-se, sem nada a dizer.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)


 

A ROTA DA SEDA


A Rota da Seda.
(por Antonio Samarone)

Recebi um convite para a comemorar os setenta anos de um amigo. Tomei um susto e lá não fui. Achei que era uma “pegadinha”.

Comemorar o quê, que o fim está mais próximo?

Eu me pelo de medo de aniversários, procuro esquecer os meus. A partir de certa altura, a contagem é regressiva. Aniversário é um ano a menos.

A quarentena me fez pensar que a vida lá fora anda mais rápido. Essa semana fui ao Centro de Aracaju comprar umas bugigangas numa loja chinesa, na Rua Santa Rosa. O inferno é pouco.

A loja chinesa é um horror, tive a sensação de que estavam me vigiando. Eu não sabia o nome do que queria comprar e eles sem paciência para escutar a minha descrição da bugiganga. Em resumo, fui embora!

Eu queria uma arandela de sítio, que carregasse com a energia solar e piscasse durante a noite, uma luzinha vermelha. Os Xinas têm pressa, não perdem tempo com clientes confusos.

O trânsito catastrófico, a zoada, os avexames do povo, a loja chinesa, me senti no Juízo Final. Todo mundo queria me vender de tudo. Deu vontade de carregar um cartaz: só quero arandela de sítio.

Quiseram me vender até veneno de rato.

Um registro positivo: a antiga loja de caça e pesca, da Rua de Santa Rosa, estava bonita e perfumada. Tinha de tudo, menos as arandelas de sítio. Nem caço nem pesco, mas tive vontade de comprar até os anzóis. Acho aqueles coletes com trezentos bolsos, uma gracinha.

O jeito é ir comprar essas arandelas de sítio em Itabaiana.

Outra coisa.

Tomei uma decisão radical: vou tocar fogo na carteira de habilitação. Eu não estou habilitado para dirigir em Aracaju. Fico estressado e com vontade de brigar. Fui reprovado no “psicotécnico” prático.

Não dirijo mais em Aracaju. Por enquanto.

Antonio Samarone (médico sanitarista)