Eu o tratei, Deus o curou...
(Por Antonio Samarone)
Até o final do século XIX, a medicina era exercida por três profissionais distintos: o médico, o cirurgião e o cirurgião barbeiro. A medicina e a cirurgia eram profissões diferentes.
O cirurgião cuidava das feridas e dos traumatismos, fazia amputações, praticava a talha, lancetava abscessos e usava o cautério.
Zentonho ferreiro, irmão caçula do meu bisavô Bernardinho, era um destemido aprendiz de cirurgião barbeiro. Ele realizava sangrias, aplicava sanguessugas e ventosas. Era um famoso tratador de feridas. Se precisassem, ainda sabia fazer partos e arrancar dentes.
Em sua antiga tenda de ferreiro, entre as Flechas e a Sambaíba, Zentonho guardava algumas garrafas de teriaga, a panaceia dos Jesuítas. Sei por ouvir dizer.
Zentonho antes dos curativos, lavava as feridas com uma mistura de gema de ovos, óleo de rosas e aguarrás (a terebentina usada por Paré).
O pai da cirurgia, Ambroise Paré (1510 a 1590), foi aprendiz de cirurgião no Hotel Dieu, o mais famoso hospital da França. Por sua excepcional habilidade, foi engajado como cirurgião militar.
A sua primeira grande contribuição à cirurgia foi a mudança no tratamento das feridas por arma de fogo. A medicina acreditava que as feridas a bala eram contaminadas pelo veneno da pólvora, e antes de cuidá-las, as mesmas deveriam ser cauterizadas com ferro em brasa ou lavadas com óleo quente.
Em uma certa batalha, com muitos feridos, faltou o óleo. Para que os soldados não ficassem sem os curativos, Paré improvisou: no lugar do óleo quente, para que os feridos não ficassem abandonados, ele usou a mesma mistura que Zentonho ferreiro continuava usando na Matapuan.
Por razões óbvias, quando a medicina deixou de usar o óleo fervendo para lavar as feridas, a cura foi mais rápida e com menos sofrimento. Uma revolução terapêutica.
O tratamento de Paré deu certo, e ele foi reconhecido em todo mundo. Paré publicou esses estudos em francês: “La méthode de traiter les plaies faites par les arquebuses et autres bâtons à feu.” Paré não falava latim. Foi o suficiente para que a medicina não aceitasse o seu livro.
Zentonho, que arranhava um francês, possuía o famoso livro de Ambroise Paré, trazido de Portugal, por seu avô. Quando menino, tentei ver essa preciosidade, enrolado num saco cru de zimbra, no fundo do baú da camarinha.
Ver mesmo eu nunca vi, mas sabia da existência do livro.
Certa feita, diante da resistência ao tratamento de uma ferida braba, na perna do ferreiro Zelito de Sinhá Dona, abaixo do joelho esquerdo, Zentonho perdeu a paciência e cauterizou a chaga com o ferro quente saído da forja.
Há divergências sobre os resultados. Uns dizem que a ferida foi curada a ferro e a fogo, outros dizem que Seu Zelito perdeu a perna. Eu ouvia falar de Zelito pau brocado. Conta a lenda, que o cupim atacou a perna de pau de Seu Zelito.
Se conta em Itabaiana, que Zentonho ferreiro teve uma ferida na perna direita que demorou a curar. Impaciente, ele se automedicou: encheu a ferida de pólvora e tacou fogo.
Ambroise Paré mudou a forma de hemostasia dos vasos sanguíneos nas amputações de membros. Antes era a cauterização com ferro incandescente, Paré passou a usar pinças e ligar os vasos com fios, tal como se pratica hoje.
Em 1552, Henrique II, rei da França, impressionado com a habilidade cirúrgica de Paré, designou-o cirurgião ordinário do Rei. Em seguida, ele foi admitido na Confraria de S. Cosme, que congregava os mais notáveis cirurgiões da França.
Henrique II, faleceu de traumatismo craniano, sob os cuidados de Ambroise Paré e André Vesalius. Morreu assistido pela história da medicina.
Ambroise Paré recebeu o título de Mestre em Cirurgia, apesar da oposição de alguns membros do colegiado, ele não sabia latim.
Ambroise Paré foi um huguenote, um calvinista francês, que escapou de ser morto na noite de S. Bartolomeu, a 23 de agosto de 1572, porque o próprio rei Carlos IX, que ordenara a matança, o escondeu no palácio.
Zentonho, seu colega de profissão, era um católico apostólico romano, Irmão das Santas Almas de Itabaiana. Antes da chegada da igreja dos crentes, de Eulina Nunes.
Ambroise Paré é considerado o pai da cirurgia moderna, e o seu colega Zentonho ferreiro, um esquecido cirurgião prático de Itabaiana. Com um detalhe: Zentonho é sangue do meu sangue e Paré eu conheci nos livros.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
terça-feira, 1 de novembro de 2022
EU O TRATEI, DEUS O CUROU
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