A Pandemia e as Doenças Negligenciadas.
(por Antonio Samarone)
(por Antonio Samarone)
Tem gente que nasce sem sorte. Até na hora de morrer, morre na época errada.
Seu Peba, antigo pataqueiro das Caraíbas, morreu de tísica, aos 49 anos. Parecia um velhinho de 70 anos. Levou a vida passando fome, aliviada pela compulsão do hábito etílico. Seu Peba era o que o povo chama pejorativamente de cachaceiro. Um enófilo!
Seu Peba nunca foi de confusão.
Quando faltava serviços nas roças dos outros, Seu Peba vivia de esmola. Mesmo com todas as mazelas, Seu Peba era um homem cheio de presepadas. Engraçado. Parecia feliz.
Seu Peba era um sertanejo do Carira, veio para as Caraíbas no caminhão de Tonho de Chagas, fugindo da fome. Não tinha nem parentes, nem aderentes por aqui. Mas tinha muitos amigos.
Todo mundo gostava dele. Mesmo quando tomava os seus pileques, seu Peba não incomodava ninguém.
Essa semana Seu Peba amanheceu morto.
Os amigos preparam um breve velório na bodega de Tiquinho. Seu Antenor deu o caixão. E para surpresa, a turma do futebol comprou uma grinalda de flores roxas.
Em ordem de pobre, seria um enterro mais ou menos. Dona Rosinha de Cândido chegou a puxar umas rezas. Os biriteiros começaram a chegar. Veio gente até do Carira.
A certa altura, chegaram os fiscais da Prefeitura. O que está ocorrendo? Vocês não sabem que velório está proibido. Se afastem! A gente veio buscar o caixão. Embrulharam a urna funerária num encerrado velho e jogaram em cima da caminhoneta.
Pera aí, seu Peba era nosso amigo, era tuberculoso há muitos anos, e morreu de cachaça. Essa doença braba ainda não chegou por aqui. Os fiscais retrucaram: vocês têm o atestado óbito?
A turma caiu na risada. Seu Peba era o típico defunto de taverna, pinguço de carteirinha.
Ninguém sabia nem o nome de seu Peba, e os Fiscais da Prefeitura queriam o atestado de óbito.
De todo jeito, os fiscais levaram o corpo de Seu Peba, e jogaram num buraco raso, cavado as pressas, no Cemitério do Povoado.
Os amigos, revoltados, pegaram os pertences de Seu Peba, uma rede, dois lençóis, um travesseiro de junco, quatro camisas, um boné do Itabaiana, dois calções, um rádio de pilha e a imagem de Santo Antonio, botaram tudo num saco, e juntaram ao lado caixão, na cova rasa.
Seu Peba acabou. Fiz essa crônica para deixar a memória do finado nas redes sociais. Procurei uma foto e ninguém tinha. Mesmo na Era das Imagens. parece que Seu Peba nunca tirou um retrato.
Com a tragédia do Coronavírus, as outras doenças foram naturalmente esquecidas. Se já não se falava nelas, agora é que o silencio é absoluto.
Eu sei que existe muita gente morrendo da Peste e está sendo enterrado como outra coisa. Ainda está se calculando.
Mas, quando o Jornal Nacional anunciar o número de óbitos por Coronavírus, descontem um. Seu Peba das Caraíbas morreu de tuberculose.
Os eternos problemas da Saúde Pública ainda existem, estão vivos e matando muita gente.
Em 2019, foram diagnosticados 73.864 casos novos de tuberculose no Brasil. Em Sergipe, no ano passado, tivemos 789 casos de tuberculose diagnosticados, com 42 óbitos.
E a Lepra ainda existe?
Entre os anos de 2014 a 2018, foram diagnosticados no Brasil 140.578 casos novos de hanseníase (Lepra). No mesmo período, tivemos 1.780 casos novos de Lepra em Sergipe. Uma vergonha ocultada.
Lembram-se da Sífilis? Continua fazendo estragos.
Em 2018, foram notificados no Brasil 158.051 casos de sífilis adquirida; 62.599 casos de sífilis em gestantes e 26.219 casos de sífilis congênita (ou seja, a criancinha já nasce com sífilis). Em Sergipe, entre 2010 e 2019, tivemos 6.768 casos de sífilis adquirida, 4.028 casos de sífilis em gestantes e 3.814 caos de sífilis congênita.
Parece números, estatísticas, mas tudo isso é gente doente, consumida pela desigualdade social. Sabem qual é a diferença? Essas doenças são de gente pobre, como Seu Peba. São doenças negligenciadas.
E serão todos, enterrados de qualquer jeito.
Antonio Samarone.
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