São Bento, antes das cobras...
(por Antonio Samarone)
Álvaro Silveira, médico sespiano, formada na Bahia, clinicou durante décadas no interior de Sergipe. Hoje, com 93 anos. Silveira me confessou possuir o secular “Canon da Medicina”, cinco volumes, em francês. “Essa enciclopédia da medicina árabe, sempre foi o meu guia”.
Ele aprendeu francês para ler Ibn-sina e a anatomia de Testut.
O doutor Silveira é um sábio da arte médica erudita. Ao longo de duas horas, me fez um síntese histórica da medicina. Deixo aqui o que consigo me lembrar:
A medicina no Brasil é filha da medicina portuguesa. A cantada origem greco-romana, Hipócrates e Galeno, é pretensão. Talvez, uma reduzida influência árabe (Rhazes e Avicena), trazida pelos cristãos novos. O “canon”, nunca foi traduzido no Brasil.
A medicina brasileira nasceu nos mosteiros de Coimbra. A assistência médica no Brasil era parte das obras de caridade, das Santas Casas de Misericór-dias. Os jesuítas foram os primeiros a exercerem a medicina.
O doutor Silveira foi um curioso do saber popular sobre as doença, as curas, as crença e as superstições da populacho. Disse-me que aprendeu na centenária Faculdade de Medicina da Bahia, que o médico deve conhecer os costumes e o modo de vida do lugar onde for exercer a medicina.
Na Malásia existe um demônio para cada doença. No Brasil, existe um santo protetor: Santa Luzia (doenças das vistas), São Bento (mordida de bichos peçonhentos), Santo Antão (fogo selvagem e erisipela), Santo Apolinário (contra as quebraduras), Santo Amaro (contra os achaques das pernas e dos braços) e São Brás (contra os achaques da garganta).
Lembrei-me da infância. Mamãe sempre apelou a São Cristóvão, o protetor das crianças com fastio. Ela era obcecada: sempre achou que os seus filhos comiam menos do que o necessário. Sempre achava que cabia mais um bocado.
O fastio era um sinal de gravidade de alguma doença oculta, um alerta de que a saúde não andava bem. A gula, mesmo sendo um pecado capital, era bem-vista lá em casa. A obesidade epidêmica é coisa nova.
Muitas vezes, a medicina popular era o único recurso, enfatizou o doutor Silveira.
Jogando bola, tive uma luxação no cotovelo esquerdo. Mal reduzida e engessada de qualquer jeito, no Hospital de Caridade em Itabaiana. Fiquei com uma sequela pavorosa: a articulação ficou imóvel, em 90 graus. A fisioterapia foi a base de sebo de carneiro capado. Aquecia-se o sebo e massageava-se a parte afetada. Foi a salvação!
O doutor Silveira está com a memória quase perfeita. Lembra-se do principal sobre os pacientes, os sofrimentos, os erros e as curas. Um médico que exerceu zelosamente a sua arte.
A desidratação decorrente da insolação, era vista como “olhado”. Tratada com rezas e benzeduras. Passava-se o ramo de vassourinha. No Beco Novo, a xamã era dona Gemelice, que possuía o verdadeiro livro de São Cipriano.
O povo era alucinado por milagres. Por isso, tantas promessas. Dona Dorotéia curou-se de um enxaqueca reincidente, com a promessa de usar luto fechado durante as quaresmas, pelo resto da vida. Cumpriu religiosamente, até morrer.
A medicina científica sabe muito sobre o corpo e quase nada sobre a pessoa, tornando-se aleatória a separação do essencial do secundário. Essa é a principal base dos seus erros. Quando essas análises são contaminadas pela lógica comercial do lucro, os erros acentuam-se, sentenciou o dr. Silveira.
O comércio e o lucro, distorcem mais a prática médica que a magia e a superstição. A medicina pós-moderna no Brasil é majoritariamente uma prática econômica, com o figurino da ciência.
Antonio Samarone. (médico sanitarista)
sexta-feira, 10 de março de 2023
SÃO BENTO, ANTES DAS COBRAS
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