segunda-feira, 20 de março de 2023

O PROCESSO CIVILIZADOR

 O Processo Civilizador.
(por Antonio Samarone)

As sangrias e os enemas eram os grandes recursos da medicina artesanal, no começo do século XX. Os médicos se valiam dos sentidos, para fazer os diagnósticos.

Os médicos valiam-se da língua para perguntar ao paciente, dos olhos para vê-lo, das mãos para apalpá-lo, das ventas para cheirá-lo e das orelhas para escutá-lo (já existiam os estetoscópio de Laennec).

Seu Eliseu das Panelas, padecia de uma fístula anal crônica, infestada de bicho de mosca, resistente aos tratamentos conhecidos. Nem as rezas deram jeito. A medicina antiga chamava essa enfermidade de maculo (mal de culo).

A chegada do doutor Itajay, em Itabaiana, um lagartense formado na Bahia, deu uma esperança. Na primeira consulta o doutor prescreveu para Eliseu: enema (clister) apimentado (água destilada, capsaicina, Cloridato de quinina e tintura de ópio açafroada), a cada 8 dias. Até a cura completa.

Enema ou clister é a lavagem intestinal com um tubo enfiado pelo ânus, para aliviar a prisão de ventre, a constipação intestinal, o
intestino preso.

A novidade eram as pimentas. Foi dessa conduta científica de Itajay que nasceu a assertiva: “pimenta no cu dos outros é refresco.”

O doutor Itajay nada inventou, apenas suavizou um tratamento comum do maculo no período colonial. Doença muito frequente entre os escravizados.

Vejam a descrição de Lycurgo Santos, para a doença do Seu Eliseu das panelas:

“O maculo, o Mal de Culo, consistia, sabemos hoje, numa retite infriltrativa, ulcerante, complicada pela miíase. O ânus ficava exposto, cheio de gusanos. Então, inventaram um tratamento que é uma verdadeira barbaridade:”

“Punham o paciente de cabeça para baixo, encostado na parede, seguro por duas pessoas, abriam as pernas e dentro do ânus enfiavam o que se chamava “saca—trapo”, uma massa de pimenta, Vinagre, verdete, tabaco, tudo o que pudesse ser irritante. Enfiavam, fechavam as pernas e as amarravam, e deixavam o coitado sofrendo por umas duas horas.”

Convenhamos, o enema apimentado do doutor Itajay, era um refresco.

Os médicos no Brasil Colônia eram quase todos cristãos novo. E que medicina era essa que eles exerceram? A mais rudimentar possível, de poucos conhecimentos, levando o arcebispo do Pará, D. Frei Caetano Brandão, dizer: no século XVIII:

“É preferível a gente se tratar com um tapuia do sertão do que com um médico de Coimbra.” E por quê? Porque o tapuia do sertão observa com melhor instinto

O holandês Guilherme Pizo, no livro que escreveu sobre a medicina brasiliense, descreveu a doença, o maculo; e disse que o tratamento seria facílimo: bastava lavar-se com água do mar. Seria um tratamento higiênico.

O doutor Itajay, o primeiro médico a residir em Itabaiana, um médico rude, mas ao prescrever um enema apimentado para seu Eliseu, estava modernizando a medicina.

Itajay depois virou delegado de polícia e chefe político. Foi ele quem proibiu os tabaréus irem à feira de celouras, na verdade, era uns celourões brancos de algodãozinho.

O doutor Itajay chegou a Itabaiana anunciando também o tratamento da lepra, com picada de cascavel. Uma descoberta de Lourenço de Magalhães, um leprologista estanciano, famoso na Alemanha. Que eu saiba, Itajay nunca usou esse tratamento, os leprosos de Itabaiana não aceitaram.

Itajay foi um civilizador, que por uma esperteza, chegou a ser governador de Sergipe.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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