segunda-feira, 27 de julho de 2020

AS CLOROQUINAS E O PENSAMENTO MÉDICO


As Cloroquinas e o Pensamento Médico.
(por Antonio Samarone)
Esse texto é em parte uma resenha do pensamento de Régis Rodrigues Vieira e Carla Rosane Ouriques Couto, publicado no site do movimento “slow.medicine”, em 23/07/2020, e em outra parte uma discordância da tese central do mesmo pensamento.
Por que os médicos estão divididos sobre a utilização ou não da Hidroxicloroquina e da ivermectina no tratamento da Covid 19?
Existem médicos defendendo o uso dessas medicações baseados em suas experiências, no histórico da droga, na fisiopatologia das infecções e em possíveis casos exitosos. Analisam usando o método clínico dedutivo.
O desenvolvimento do raciocínio clínico e consequentemente o tratamento das doenças está fortemente enraizado no pensamento anátomo-fisiopatológico desses médicos que defendem a cloroquina.
Por outro lado, existem médicos desaconselhando o uso das mesmas medicações baseados nos ensaios clínicos realizados, e na falta de evidências estatísticas sobre a eficácia, efetividade e segurança delas no tratamento à covid-19.
Apesar da evolução do pensamento probabilístico, da chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE) e do fato de que todas as Escolas Médicas, de alguma forma, incluírem a Epidemiologia Clínica nas suas grades curriculares, o fato é que a assimilação pelos médicos do método estatístico ainda é pequena.
Portanto, essa dicotomia não é somente uma questão ideológica. O que se observa é o embate entre o pensamento fisiopatológico versus o pensamento probabilístico.
O Dr. João Claudio Flores Cardosos foi quem introduziu a epidemiologia clínica no ensino da medicina em Sergipe. Ele se divertia com o espanto dos alunos, todos catequizados pelo pensamento anátomo-fisiopatológico, adotado na Escola. O Dr. Nestor Piva foi o sumo sacerdote dessa ciência médica em Sergipe.
Diz o texto publicado pela “slow.medicine”:
“Não temos na atual crise sanitária, um manual de comportamento ou pensamento médico único. Diante de nós há toda a ciência produzida, de Hipócrates passando por William Osler e Foucault, aos grandes epidemiologistas atuais, num cenário social, estrutural e político complexo, que muitas vezes pouco contribui para a serenidade na tomada de decisões.”
Os arautos do movimento “slow medicine” defendem integração dos métodos anátomo fisiopatológico e probabilístico na prática médica, não percebendo a incompatibilidade entre os dois caminhos.
Acreditam que basta o médico agir com empatia, compaixão, olhar humano, sob a luz da justiça social e da racionalidade científica, na condução do seu pensamento e na tomada de decisões, que o milagre da unificação dos métodos acontecerá.
O método anátomo fisiopatológico conduz a individualização dos doentes, cada caso é um caso, em sua forma de adoecer e morrer, o objeto do cuidado médico é o doente, que requer cuidados específicos, próprio da medicina artesanal. Nesse método, a Clínica é soberana!
O método probabilístico conduz aos protocolos, a padronização dos procedimentos, a uma terapêutica uniformizada e impessoal. O objeto da medicina é a doença. Esse método estatístico esvazia a subjetividade do cuidado médico, permitindo o seu consumo no mercado, em sua forma de mercadoria.
Claro, os médicos podem usar dos dois métodos, ora um, ora outro, em pessoas diferentes. Mas não podem fundir os dois métodos num mesmo paciente. Ou se usa o raciocínio clínico dedutivo, individualizado, ou se usa os protocolos, centrados em evidências estatísticas, com as suas condutas padronizadas.
Existe uma contradição entre a medicina assumir a responsabilidade de cuidar de uma pessoa doente e que esteja sofrendo, para a assistência sanitária voltada para curar de modo eficiente o maior número de pessoas, reduzindo os custos e os tempos.
As discussões não são bizantinas, elas expressam uma dualidade do pensamento médico atual.
A medicina de mercado é incompatível com as subjetividades, ela precisa dos protocolos, da objetividade, da produtividade medida e da previsibilidade segura dos lucros.
A medicina artesanal produz cuidados, a medicina de mercado produz procedimentos. São consumos distintos.
Quando os médicos ignoram as evidências do método probabilístico, cientificamente dominante, e prescrevem as cloroquinas, optando por seguir a sua casuística, a sua sensibilidade (a arte médica), mesmo que inconscientemente e de forma passageira, eles estão resistindo.
Quantos abdomens os cientistas já palparam? Perguntou enfático um velho clínico, devoto da cloroquina...
Essa discussão metodológica não é excludente, não afasta outras motivações de natureza político ideológica que permeiam a conjuntura.
Antonio Samarone (médico sanitarista)

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