Ars Moriendi (A arte de morrer).
(por Antonio Samarone)
A derrota foi inevitável.
Depois de quase setenta anos de resistência, entreguei-me aos caprichos da medicina de mercado. Para ser mais preciso, da biomedicina, da medicina do corpo, da medicina dos procedimentos. Submeti-me a 137 exames laboratoriais.
Senti o peso da medicina de mercado. Falei baixo. Sussurrei. Esqueci-me de coisas rotineiras. O ambiente médico é ritualizado. Ali, naquela sala fria, cada um pensa que o seu caso é o mais grave. Notei que ninguém prestava a atenção numa TV ligada, à meio som.
Fiz tantos exames, que a recepcionista perguntou rindo: a medicina suspeita de quê, para tanto esmiuçamento? Suspeita não, ela tem certeza, que a transformação do meu corpo em pó está acelerada.
Todos ali, na antessala dos exames, procuram um jeito de adiar a morte e o sofrimento. Existe a ilusão que os exames vão apontar precocemente os riscos e a medicina saberá afastá-los.
A medicina sabe cada vez mais sobre o corpo e cada vez menos sobre as pessoas. Sobre os seres históricos, suas vidas e suas aflições. O Eu, a alma, a psique, a consciência, o espírito, a energia vital, seja lá o que se queira chamar.
Como a alma precisa do corpo, perdendo-o, a alma vagará como um grão na poeira cósmica. Não posso ignorá-lo! Preciso cuidar do corpo, atender aos seus caprichos, tratá-lo à pão de ló.
O meu corpo já deu sinais de que está cumprindo a profecia bíblica de tornar-se pó. Há muito, o meu corpo deixou de obedecer às minhas vontades e ao meu comando.
Na incerteza de quanto tempo me resta, embarquei na ilusão de que a medicina pode retardar esse retorno ao pó. O corpo tem as suas vontades. Não sei se é falsa impressão, mas tem morrido muita gente conhecida. Antes era novidade.
Realizei 137 exames bioquímicos. Pesquisaram tudo: da ponta dos cabelos às unhas dos pés. Todas os íons (metade da tabela periódica), enzimas, hormônios, anticorpos, neurotransmissores, aminoácidos, foram todos quantificados...
Certamente, a medicina vai encontrar uma casa desarrumada. Vários sinais de anormalidades, riscos previsíveis, alertas exagerados e problemas insolúveis. Esses exames servem principalmente para a gente ficar sabendo antes das doenças e aumentar a ansiedade.
O que fazer com os resultados do pacotaço de exames? Entregar-me de corpo e alma à indústria farmacêutica e aos procedimentos médicos, na esperança de ganhar tempo e enganar a morte?
Sinceramente, não sei! Antes, a gente tinha pelo menos um anjo da guarda.
Percebo que não comando essas decisões. Não mando em minha vontade. Ela assume as decisões por conta própria, faz o que quer. A Vontade tem vontade própria. A gente apenas justifica as escolhas.
A medicina irá utilizar produtos, chamados de remédios, e tentará regular o funcionamento do meu corpo. Não sei se os remédios irão ajudar ou agravar a enorme confusão de um organismo determinado a virar pó.
É uma questão de tempo.
Não falo de remédios para disfunções localizadas, uma dorzinha aqui, outra acolá, uma amidalite ou uma insônia eventual. Não! Falo de remédios pretensiosos, que visam rearrumar o funcionamento total do corpo, sobretudo do seu sistema hormonal. Sei não...
Espero que na inevitável desagregação corpórea, pelo menos, o cérebro fique por último.
A distância entre o veneno e o remédio é a dose, dizia o pai da medicina.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
quarta-feira, 10 de maio de 2023
ARS MORIENDI
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