quinta-feira, 30 de maio de 2024

DO SACERDÓCIO AO NEGÓCIO.


 Do Sacerdócio ao negócio!
Por Antonio Samarone.

A medicina perdeu os rumos do humanismo. Aliviar o sofrimento, a sua base ética, dissipou-se nas leis do mercado. Resolvi revisitar os fundadores da chamada medicina científica, para saber se o erro estava na origem.

Fui a Alemanha do século XIX.

Com a publicação, em 1856, do livro “Patologia Celular”, do cientista alemão Rudolf Virchow, estava consolidado o paradigma celular. O paradigma humoral (Hipócrates – Galeno), seria superado. Estavam estabelecidas as bases da medicina moderna.

Contudo, Virchow nunca deixou de transmitir aos seus alunos, a velha concepção hipocrática da natureza curadora. Em condições normais, as doenças evoluem para cura. Talvez seja esse princípio o responsável por boa parte da fama dos médicos.

A natureza cura, tendo os médicos como assistentes. E os médicos precisam compreender os doentes na totalidade. A passagem dos médicos de “artistas da cura” para “cientistas”, se deu com grande perda para os doentes.

O paradigma celular estabeleceu que as doenças são entidades definidas por um conjunto de sintomas e sinais (clínica), relacionadas com lesões anatômicas. A doença é a vida em condições anormais.

Para conhecer a doença é preciso abrir os cadáveres. Entretanto, havendo discordância entre a clínica e a patologia, a clínica seria soberana.

A essência patológica é a célula doente, disse Virchow, e a doença não tem outra unidade distinta da unidade da vida, da qual ela é um tipo particular, um tipo de célula viva comum. Isso deu novos rumos a medicina. “Omnis cellula e cellula” – toda a célula deriva de outra célula.

A nova ciência médica, do final do século XIX, seguiria três caminhos: exame dos doentes na clínica (anamnese e exame físico), com o auxílio de todos os meios da física e da química; experimentos nos testes com animais e; o estudo dos cadáveres com o bisturi, o microscópio e os reagentes.

O pensamento do Velho Morgagni, sobre a localização das doenças no corpo, avançou dos órgãos, em direção aos tecidos, e desses, em direção às células. Nenhum médico poderia pensar numa doença, sem a localizar no organismo. Os médicos bem formados, seguiam essas crenças.

Hoje, o paradigma é outro.

Claro, a bacteriologia de Pasteur, também pesou muito na formação da medicina chamada de científica. Mas não é assunto dessa conversa.

Rudolf Virchow nasceu na Pomerânia, em 1821. Naturalista, médico, cirurgião geral do Hospital Charité, em Berlim. Depois assumiu a cadeira de patologia. Criou a revista “Die medicinische Reform”, A Reforma médica, de repercussão mundial, sobretudo na reformulação dos cursos de medicina.

Ele também coordenou a publicação do “Arquivo de Anatomia Patológica, Fisiologia e Medicina Clínica” – 169 edições, (Virchows Archiv), que se tornou uma fonte preciosas de pesquisa histórica, sobre a formação da medicina moderna.

Virchow ajudou no combate à epidemia de tifo exantemático, na alta Silésia. Apaixonou-se pela medicina social. Foi o maior sanitarista alemão, do século XIX, e fundador da medicina social. Fez o saneamento de Berlim, tornando-a uma cidade saudável. Tornou a higiene pública parte do bem-estar.

Virchow iniciou na Alemanha a luta por uma Assistência Médica pública e defendeu, pela primeira vez, a saúde como um direito (1849). A assistência à saúde sairia do campo da misericórdia cristã para as políticas sociais. No século XXI, tornou-se uma atividade do mercado.

Virchow foi fundador e membro atuante da Sociedade Alemã de Antropologia, com 1.180 trabalhos publicados, sobretudo de antropologia física. Realizou trabalhos na área de arqueologia.

Admirador de Darwin, mas se opôs firmemente ao uso inadequado da teoria de evolução, sobretudo ao darwinismo social de Ernst Haeckel.

Virchow foi o principal defensor de uma nova política cultural na Alemanha, opondo-se a visão da Igreja romana. O Papa Pio IX, publicou, em 1846, a encíclica “Quanta cura”, que condenava o naturalismo, o racionalismo e o panteísmo.

A visão cultural de Virchow, está resumida em seu conhecido discurso sobre Goethe (1861). Nesse discurso, Virchow defendeu que as leis obrigatórias para os homens devem ser buscadas na natureza e na arte, longe da arbitrariedade dos poetas medíocres e da tutela dos beatos. Ele consolidou a sua visão da cultura, quando assumiu o reitorado da Universidade de Berlim, com um discurso intitulado “Apreender e Pesquisar”.

Em seu aniversário dos 80 anos, ele declarou aos amigos: “Fiz objeto dos meus estudos a medicina e as ciências naturais; a antropologia e a arqueologia; ocasionalmente também a literatura, a filosofia, a política e as condições sociais.”

Virchow ocupou uma cadeira no Parlamento Alemão (1880 a 1893), pelo Partido Progressista; sempre em franca oposição a Otto von Bismarck. A polêmica entre eles, era um passeio sobre a cultura alemã.

O homem é o que fascinava Virchow, tanto como médico, quanto como naturalista. Ele concebeu a medicina como uma antropologia médica. A medicina moderna nasceu com grandes sonhos. Não merecia terminar na banca do comércio.

É evidente que muita coisa do pensamento de Virchow sobre a ciência foram superados. Os métodos e a filosofia da ciência passaram por transformações.

Famoso em todo o mundo, Virchow morreu em Berlim, em 1902, aos 81 anos. Foi arremessado de um bonde, numa rua de Berlim (Leipziger St.). O velho nunca se recuperou da fratura de fêmur. Foi a primeira grande morte no trânsito, do século XX.

O conceito da medicina como uma ciência social, como antropologia médica, elaborado por ele, foi banido dos cursos de medicina. A medicina (com uma fina capa de ciência) virou uma atividade econômica. Foi do Sacerdócio ao Negócio!

Antonio Samarone – médico sanitarista.

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