terça-feira, 28 de maio de 2024

A RAZÃO DOS DESATINADOS


 A razão dos Desatinados
(por Antonio Samarone)

É a indústria farmacêutica que detém a verdade da psiquiatria.

Os turistas endinheirados que visitam Veneza, podem desfrutar de um Paraíso: um resort cinco estrelas, na Ilha de São Clemente. O hotel é o antigo palácio de São Clemente, onde, até 1992, funcionou o Hospício de Veneza para mulheres loucas. Foi ali, que Mussolini enclausurou a sua amante, Ida Dalser.

O confinamento em massa dos loucos foi a regra a partir de meados do século XIX. O Adauto Botelho, em Aracaju, chegou a 600 internos, submetidos a solitária, camisa de força e ao choque elétrico.

Esse grande confinamento decorreu da transformação dos loucos em doentes mentais. Essa transformação está bem analisada, em um clássico de Foucault, a História da Loucura, publicado em 1970.

Os grandes manicômios no Brasil, não tiveram o mesmo destino luxuoso do hospício de São Clemente. Em Sergipe, os manicômios transformaram-se em prisões e órgãos de segurança. Mas acabaram!

A reforma psiquiátrica no Brasil, conduzida por um discurso humanitário, teve como produto final uma psiquiatria de mercado. Muita gente bem intencionada embarcou. O resultado, entretanto, foi a redução da psiquiatria ao saber farmacológico. Muitas vezes, um saber subordinado a interesses econômicos.

O esvaziamento dos manicômios no mundo, coincidiu com a introdução dos psicotrópicos. Drogas com efeitos sobre o comportamento mental. Os tranquilizantes reduziram a violência física no tratamento dos insanos. A indústria farmacêutica não precisava dos manicômios, para implementar o consumo.

A clorpromazina, a primeira droga psicotrópica, teve o seu uso aprovado nos USA, em 1954. Treze anos depois, já era administrada a mais de 2 milhões de pessoas. A introdução de drogas farmacêuticas no tratamento das psicoses, neuroses e esquizofrenia, mudaram a psiquiatria.

Houve uma revolução tecnológica na psiquiatria, a revolução dos remédios.

Os hospitais de saúde mental foram considerados instituições condenadas. O delírio reformador foi aos extremos de se negar a existência da loucura. Tudo era ideológico. Franco Basaglia foi o pai dessa antipsiquiatria.

Para nossa desgraça, a Reforma Psiquiátrica nos levou ao lado oposto: todos somos portadores de transtornos mentais. Ninguém escapa de um tranquilizante ou pelo menos um sonífero. Os mais sofisticados, preferem os tranquilizantes naturais e a meditação.

O número de dependentes em drogas psiquiátrica é alarmante. O doping tornou-se necessário, para enfrentarmos a sociedade pós-moderna. Estamos cercados!

O raciocínio atual do psiquiatra, em sua anamnese, não busca descobrir a origem ou as causas do mal-estar dos pacientes. Busca-se qual o medicamento pode aliviar o sofrimento relatado.

A medicina moderna foi centrada na anatomia patologia e na patologia celular. As doenças eram desvendadas com a abertura dos cadáveres, com as necropsias e autopsias. Com as lâminas da patologia. Hoje, o paradigma dominante das doenças é molecular. Entretanto, na prática, ainda prevalece o paradigma celular.

Como decidir quem é louco, pelos paradigmas médicos? Nenhum Raios-x, ressonância magnética, exame de sangue ou descoberta laboratorial oferece qualquer auxílio. As neurociências e a genética ainda não encontraram a etiologia das doenças mentais. A consciência humana não se limita as leis físicos-químicas.

As imagens de ressonância magnética funcional, mostram um mapa colorido do cérebro. Longe da etiopatogenia da loucura. Já se sabe, a nossa biologia é social. O reducionismo biológico é um engano. As raízes da loucura estão fora do nosso corpo.

Na década de 1970, a American Psychiatric Association resolveu reclassificar e padronizar os diagnósticos. Abandonou os esforços para o entendimento da mente, deixou de procurar as raízes do sofrimento. Tiraram o retrato de Freud da parede, e retornaram a uma medicina classificatória, dos séculos XVII e XVIII. Voltaram a medicina das espécies.

As doenças mentais, para evitar aborrecimentos científicos, foram transformados em transtornos mentais, e diagnosticadas pelo conjunto de sintomas apresentados.

Em 2013, o DSM V já estava circulando. Na época, foi considerado por alguns cientistas, como um pesadelo científico. Depois calaram. Entretanto, nunca conseguiram substituir essa psiquiatria descritiva, por outra centrada em diagnósticos construídos sobre fundações biológicas.

Os resultados da nova classificação (DSM) foram promissores: explodiu uma epidemia de autismo, condição clínica até então rara; e a hiperatividade, hoje denominada de TDAH, entrou na ordem do dia.

A indústria farmacêutica precisava para aprovação de novas drogas, de doentes classificados com segurança, porém com extrema flexibilidade. Foi criado o Manual diagnóstico estatístico de transtornos mentais (DSM). Estava fundada a nova psiquiatria.

Essa nova classificação mudou a prática da psiquiatria. Deu uma roupagem material ao discurso. Mesmo causando dependência e não enfrentando as causas, os medicamentos psiquiátricos aliviam parte do sofrimento. A saída química, já tinha sido abordada por Freud, em seu Mal Estar da Civilização.

Na verdade, criou-se um próspero mercado de sofrimento mental. Ninguém escapa. A pós-modernidade, em sua ideologia do empreendedorismo, transferiu para os indivíduos a culpa por qualquer insucesso. O fracasso foi psicologizado.

Com a nova psiquiatria, os antipsicóticos, ansiolíticos e antidepressivos passaram a figurar na lista dos medicamentos mais lucrativos do mundo.

Desde o final do século XIX, a psiquiatria procurava as alterações no cérebro, das doenças mentais. A psiquiatria buscava a relação da mente com o meio social, chegou-se a sonhar com uma psiquiatria preventiva. Com uma higiene mental.

A nova psiquiatria, para felicidade da indústria farmacêutica, reduziu o sofrimento mental a transtornos bioquímicos dos neurotransmissores, a defeitos da dopamina ou escassez da serotonina. Tudo isso, com uma capa científica.

As tradicionais formas de loucura continuam tão misteriosas como antes. Entretanto, a influência do modo de vida, das relações sociais, do modo de produção, da economia, da cultura e da religiosidade nunca foram tão evidentes.

As verdades científicas da psiquiatria, em boa parte produzidas ou financiadas pela indústria farmacêutica, não desvelaram a profundidade da loucura. Pelo contrário, a ocultaram.

Quais os efeitos colaterais desse “boom” do mercado de psicotrópicos. As sequelas, são tratadas com outros medicamentos, potencializando o consumo.

A loucura continua um enigma.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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