sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

NO PRINCIPIO ERA O VERBO.



No Princípio Era o Verbo... (por Antonio Samarone)

Não nasci e nem me criei ouvindo músicas. A minha educação musical limitou-se as aulas de canto orfeônico, no ginásio. Tentei aprender música na Filarmônica, mas não houve jeito. Na verdade, sempre fiz ouvidos de mercador para a música.

Em minhas memórias auditivas permanecem o coaxar dos sapos, rãs, jias e caçotes dos brejos do Tanquinho; e o canto rouco de um galo garnizé, no quintal de dona Maroca. 

Acho que ainda reconheço os repiques dos sinos da matriz de Santo Antonio e Almas. Não sei ainda tocam, ou se pelo menos ainda existem. Assisti à unção desses sinos com o óleo dos catecúmenos. 

Em 1963, aos nove anos, acompanhei com sentimento a morte do Papa João XXIII, através dos repiques dos sinos da matriz em Itabaiana, que tocaram interruptamente na reta final do Pontífice. Era o fim do império da igreja romana. 

A minha memória também guardou (não sei até quando) os sons dos chocalhos das cabras, das matracas, dos ruídos dos carros de bois, das cigarras na quaresma, dos latidos e mugidos, dos grilos, dos trovões, dos berros dos jumentos, dos aboios, dos cânticos das procissões, das cantigas das lavadeiras do açude velho, das dobradiças das cancelas, das lamentações das vias sacras e das gatas no cio. 

Lembro-me do timbre do som da bigorna do ferreiro Bernardino, meu bisavô. Aliás, bigorna centenária que ainda vive. Tá lá, nas Flechas...

Minha relação com o som não se limitou as palavras, forma mais evidente de se expressar os pensamentos. Curioso, Deus criou a luz, antes eram trevas. Faça-se a luz, e a luz se fez. Porém não há registros de ter criado o som. Parece que o som já existia. No princípio era o verbo, e o verbo era o próprio Deus.

O som é anterior a luz, na cosmogonia cristã. Os deuses egípcios nasceram do som, acatando o convite do deus Atum-Ré. Tupã, o deus dos Tupinambás, era o trovão. O profeta Maomé só anotou o que ouviu do anjo Gabriel, enquanto meditava. Não bastava ver, ele precisou ouvir. 

Todos os povos primitivos dançavam e cantavam. A música deve ser anterior ao Homo sapiens. Quem fotografa pássaros guia-se pelo alarido, pelos sons dos cantos, e a visão vem depois. Não se enxerga os pássaros olhando-os, mas ouvindo-os. Quem é peregrino sabe disso.

Durante as noites no sítio do meu avô, nas Flechas, ouvíamos o silêncio. Depois que se rezava o terço, a ordem era dormir. Para mim sobrava uma rede no corredor. Logo cedo me acordavam, pois, as cordas que armavam a minha rede eram as mesmas que amarravam os pés das vacas para se tirar o leite. Foi ensinado a identificar o canto de cada pássaro, mas já esqueci da maioria.

Segundo Breton, “a palavra da mãe é o primeiro som a introduzir a criança já “in útero” no universo humano, carregada de afetividade, de significação. O feto mergulha no líquido amniótico e sente os seus odores, ele prova dos movimentos de sua mãe, está em permanente audição de seu coração, ouve igualmente a sua voz e a de seus próximos.” Depois as cantigas de ninar darão novos tons. 

O barulho é uma patologia do som. A sonoridade das festas de São João, seu fogos e foguetórios sempre me incomodaram. Talvez, por isso, não suporto trio-elétrico, charangas e batucadas. 

Júlio Cesar, 44 a.C., proibiu a circulação de carruagens em Roma, entre o pôr do sol e aurora, por conta da zoada. Ele estava certo! Jusué, filho de Num, derrubou as muralhas de Jericó com o som das trombetas.

A música é o som matematicamente harmonizado. O som se manifesta na política por aplausos e vaias, e o escracho se manifesta com o porrote.

Antonio Samarone.

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