segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A FLOR DA PELE


A flor da pele. (por Antonio Samarone)

Resende é um sobrevivente do Leprosário Lourenço Magalhães, em Aracaju. O leprosário acabou há muito tempo. Resende mora afastado, na zona de expansão. Senti no cumprimento que ele não quis me estender a mão, como se dissesse, o senhor não sabe que eu fui leproso. Eu avancei sobre a sua mão e dei-lhe um abraço, para dizê-lo, eu sei, e isso não tem a menor importância.

Depois da aproximação, de algumas perguntas irrelevantes, quis saber como era a sua vida, se ele era feliz, como convivia com as sequelas da lepra por tanto tempo. Resende levou a prosa para um campo inusitado. Meu amigo é possível ser cego, surdo, perde-se o olfato e o gosto sem desistir da vida; mas sem o tato, perde-se a autonomia, a vida pessoal cessa. A lepra me deixou com a casca grossa.

A subtração do tato é a privação do gozo do mundo, a sua extinção é a morte, continuou Resende. A minha pele perdeu o tato, o verme da lepra corroeu. Eu não sinto nem o quente, nem o frio; nem a dor, nem o prazer, em quase metade do corpo. Para mim, disse Resende, tanto faz banho quente como banho frio.

Eu tinha esquecido, a pele é o maior órgão do corpo humano. O tato está espalhado pelo corpo, emana da totalidade da pele. É ele que nos liga ao mundo, o sentimento de estarmos com os pés no chão. O tato nos permite o contato com o outro e com as coisas. O tato é coisa do corpo, longe da alma.

Seu Resende sabia muito sobre o tato, pois lhe faltava. Não basta ver as coisas, é preciso tocá-las. Se diz erroneamente que São Tomé precisou ver para crer, não foi bem assim, ele precisou tocar nas chagas de Cristo, colocar o dedo nas feridas.

Lembrei-lhe que de vez em quando o tato engana. O Velho Testamento conta uma história deliciosa:

Isaac já idoso, cego pela idade, queria abençoar Isaú, o seu filho mais velho. A esposa, Rebeca, preferia que o abençoado fosse Jacó, o filho mais novo. Como Isaú era peludo, para enganar o marido, Rebeca vestiu Jacó com o pelo de dois cabritos. Na hora da benção, o pai cego chamou Isaú para o reconhecimento. A mãe levou Jacó. Confiando no tato, Isaac apalpou Jacó, e perguntou-lhe: tu és mesmo Isaú, Jacó confirmou. O velho Isaac ficou em dúvidas, a fala é de Jacó, mas a pele é de Esaú; e eu confio mais em meu tato. E abençoou Jacó erradamente, como se fosse Isaú.

E o Velho Testamento ignorou o erro. Nunca houve reparação. O Deus ficou até hoje de Abrahão, de Isaac e de Jacó. O pobre do Isaú foi o grande injustiçado, por falta de tato do velho pai.

Resende encerou o papo com uma história deliciosa. Eu sou do interior de Campo do Brito. Me criei no povoado Murginga, onde o toque, o cafuné era uma prática corriqueira. Nosso tato era afiadíssimo. Sentávamos no chão da varanda, na sombra e na fresca, e passávamos a tarde catando piolhos uns nos outros. Era delicioso, pouco importava se achávamos ou não os piolhos. Era uma forma disfarçada de ternura e carinho através do tato.

A conversa parou por aqui.

Antonio Samarone.

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