quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

BASTA ABRIR OS OLHOS


Basta abrir os olhos. (por Antonio Samarone).

A visão convoca a luz. No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo... Deus disse: haja luz e houve luz. Deus viu que a luz era boa... 

O mundo começou com a luz, e terminará com as trevas. “Em seguida ele voltará os olhos para a terra, por toda a parte só verá angustia, trevas, escuridão. Trevas infinitas.” Isaías 8:22.

A visão é o nosso contato imediato com o mundo. A existência é essencialmente visual. Para os cegos, o mundo é um universo dos odores, dos sons e dos contatos com as coisas. É pouco?

Agostinho é cego de nascença, nunca viu a luz. Ele discorda frontalmente de que o pior cego é o que não quer ver. Isso é conversa de quem enxerga: “o pior cego é quem quer ver e não consegue.

Por outro lado, me disse Agostinho: a visão é um sentido superficial, só vê as coisas que se mostram. Para esclarecer melhor, ele me contou o mito da caverna, de Platão, que eu não conhecia. Agostinho lê em braile. “Os homens vivem numa caverna, acorrentados. A luz só penetra na caverna por uma entrada estreita, projetando uma sombra na parede. O homem acredita que essa sombra é a realidade.” Entendeu? Eu disse, mais ou menos...

O homem não quer ver a realidade, continuou Agostinho. Não sei se para esnobar, citou uma passagem de Sócrates, sobre o mito da caverna: “E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram?”

No dizer de Breton, a visão é um sentido ingênuo. “O homem só percebe sombras que assume por realidade, ele permanece prisioneiro de um simulacro.” A visão transforma o mundo em imagens, e facilmente em miragens. Há uma ilusão de que o que salta aos olhos é evidente, e não se discute, não precisa ser analisado.

Agostinho é agnóstico, mas recorreu a bíblia: “Deixai-os, são cegos conduzindo cegos! Ora, se um cego conduz outro cego, ambos acabarão caindo num buraco.” Mateus 15:14.

Vivemos a era das imagens, filosofa agostinho. Com a descoberta da fotografia, do cinema (da telona), da tela da TV, das imagens digitais, e da telinha da multimídia, o mundo mudou. Todos vivem grudados no celular. Por exemplo: a medicina endoidou, quer dar todos os diagnósticos pelas imagens. Quando a doença não é visível, não produz imagens, a medicina diz que é virose. “Disso eu sinto falta, sentenciou Agostinho: não é fácil ser cego na era das imagens.”

Puxei a conversa para um terreno minado. Freud achava que era a impressão visual que mais despertava a libido, como os cegos lidam com isso, perguntei a Agostinho. “Ora, o amor cega os que tem visão, e faz os cegos enxergarem. Sinto o cheiro do cio à quilômetros. Eu vejo com a alma!” O difícil é a paquera, Eu ponderei, querendo ser engraçado. “Todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração.” Mateus 5:28.

A visão nada mais é senão um determinado uso do olhar, diz Merleau-Ponty. “O olho é sem inocência, ele chega as coisas com uma história, uma cultura, um inconsciente. Ele pertence a um sujeito. O olhar não reflete o mundo, o constrói por suas representações.”

Toda visão é uma interpretação, reforçou Agostinho. Se eu voltasse a enxergar poderia enfrentar um conflito das imagens com a minha visão do mundo. Mesmo assim, eu quero esse conflito. A qualquer hora a ciência vai resolver o meu problema, ainda que seja com olhos artificiais. Já existe até coração feito com a tecnologia de impressão 4D. Só lembrando, nós, os cegos, somos clarividentes. Como assim?

“O pensamento só começa a ter o olhar penetrante quando a visão dos olhos começa a perder a sua acuidade”, ensinava Sócrates... A cegueira não é mutilação, mas a abertura do olhar sobre o tempo ainda desconhecido dos homens. Édipo pune-se por seus crimes, furando os olhos, mas no final da vida tornou-se sábio.

Antonio Samarone.

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