quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

AZEDO OU AMARGO?



Azedo ou amargo? (por Antonio Samarone)

O paladar tem regredido. As refeições rápidas (fast-food), e a comida produzida industrialmente não permitem que se apure o gosto. Comemos rapidamente as mesmas coisas. 

A delicadeza e a arte dos grandes cozinheiros, a distinção dos acepipes, quitutes, iguarias e guloseimas perderam a importância. Reconhecer as nuanças dos sabores tornou-se quase um esnobismo.

Restaram meia dúzia de sibaritas que se tornaram gourmets por ostentação, por distinção social. A fama e o preço do restaurante pesam mais que a qualidade da comida. Uma pretensa aristocracia do bom gosto. No fundo, simples aparências...

Os pitéus populares desapareceram. Não se come mais a tanajura, fêmea da Atta sexdens, com os seus abdomens gordurosos, crus ou torrados, que faziam a festa da molecada. Quem sabe dizer se ainda existem tanajuras? Em tempos chuvosos, corri muito atrás de tanajuras, com um versinho na ponta da língua: “cai, cai tanajura, na panela da gordura”.

Creio que ninguém mais frequente os matadouros, para saborear um fígado ensanguentado e quente, recém tirado do animal abatido. Fígado assado na brasa, e degustado às pressas, numa gula primitiva.

Uma pessoa privada do olfato é incapaz de apreciar os sabores. A consistência, a cor, a apresentação visual e a temperatura dos alimentos determinam o seu sabor. A cerimônia do chá no oriente é uma arte que exige sensibilidade absoluta: o exame visual, o olfativo e o gustativo. Se come com os olhos.

O paladar requer a ingestão de uma parte do mundo. Não é a gula que nos condena! “Não é o que entra pela boca que nos torna impuro, mas o que sai da boca...” Mt. 15:11.

O prazer da mesa é o ultimo a nos consolar, quando os outros nos faltam. A culinária constitui-se em um último acesso às raízes, quando os outros sucumbem. O paladar alimenta as recordações.

Só se gosta do que se come na infância, diz o senso comum. O paladar não é inato, possui história e revela a nossa cultura. A percepção de um sabor depende de um aprendizado.

Os sabores são infinitos. “A criança come a acaba apreciando os manjares da cozinha familiar”. Feliz o homem que, na meninice, girou ao redor das panelas”, diz Bachelard; feliz o homem que raspou o fundo do tacho, digo eu.

“Eu não conheci, e não conheço ainda, uma comida melhor do que a servida numa refeição rústica. Com laticínios, ovos, queijo, ervas, pão de rolão ou vinho, sempre estamos seguros de regalar-nos bem”; diz Rousseau em Les Confesions. Esqueceu o cuscuz!

Os sabores são impregnados de afetividades. O ato de saborear é individual, diz respeito somente a cada um. É um prazer pessoal. “De gustibus non est disputemdum” (gosto não se discute). O primeiro copo de vinho ou de cerveja dificilmente é saboroso. O paladar precisa ser treinado.

Quando alguém é inexpressivo dizemos que é uma pessoa sem sal; por outro lado, quando a pessoa é muito boa, dizemos que é um doce de pessoa. Os sabores nomeiam o mundo.

A cozinha é um definidor cultural por excelência. O chinês só fica saciado com o arroz, o nordestino com a farinha. A farinha cumpre três funções na alimentação: esfria o que está quente, engrossa o que está fino; e aumenta o que está pouco. Na ausência da farinha do reino, foi a farinha de pau dos Tupinambás, que ajudou a colonizar o Brasil.

Todos as comunidades gabam-se da pureza e do sabor da sua água. “Quem bebeu da água da Ribeira, não esquece Itabaiana”, sempre soube disso. Essa conversa que a água pura é insípida é só na teoria. Quem tem o paladar apurado, reconhece os sabores das águas de sua aldeia.

Só a antropofagia salva, nos diz Oswald de Andrade em seu manifesto. Somos descendentes da Nação Tupi, canibais por razões ritualísticas. Já, segundo Freud, foi a interdição da antropofagia que fundou a civilização. Fico com Oswald de Andrade!

Encerro aqui o meu passeio pelos sentidos. Sempre bebendo na fonte de Breton. Finalizo com um apelo do Apóstolo Paulo: Comamos, bebamos e alegramo-nos, pois, amanhã morreremos.” 1 Cor 15:32

Antonio Samarone.

Nenhum comentário:

Postar um comentário