domingo, 19 de fevereiro de 2023

VELHOS AMIGOS

 Velhos amigos.
(por Antonio Samarone)

Encontrei outro dia com o dr. Rocha Gusmão, um bem-sucedido médico de subúrbio. Rochinha ficou rico, podre de rico, em 40 anos de profissão. Foi meu colega de turma, em algumas disciplinas.

Rochinha nunca atendeu por convênios, nem de graça. Cobra pouco, negocia o preço, divide, troca a consulta por qualquer coisa de valor, mas não aceita cheques, nem PIX. Só dinheiro vivo.

A Receita Federal nunca viu a cor do dinheiro de Rochinha. Ele não tem conta em banco, cartão de crédito, não compra financiado, não coloca o CPF na nota fiscal, nada, nenhuma modernidade.

O dinheiro de Rochinha é bem aplicado, e rende, rende muito.

De vez em quando, Rochinha põe o dinheiro em grandes urupemas, para tomar sol e não embolorar. Ele aplica em ouro dos garimpos clandestinos e relógios de ouro. Tudo sigiloso. Dizem que ele possui mais de cem Rolex de ouro. Ele nega, diz que não é isso tudo.

Esse é o segredo, disse-me ele: “o doente está ansioso, com medo de doenças incuráveis, medo de morrer, se ele confiar em você, vende o que tem e paga a consulta. Saúde não tem preço.” Em medicina, só não ganha dinheiro os apoucados. Eu ganho bem, não desperdiço e sei aplicar.

Doutor Rochinha nunca foi a um congresso médico, não lê revistas especializadas, acha tudo isso cosméticos. A Arte Médica, disse-me ele, é a mesma desde Hipócrates. De vez em quando consulto o seu velho manual de clínica, ainda em francês.

Rochinha sentenciou: o médico sabendo o sintoma dominante, o sinal prognóstico e o agente curativo o doente saí satisfeito. Não há sábio que tenha mais interesse em sua moléstia que os próprios doentes, eles são curiosos, inteligentes e perguntadores. Eu sei o que o doente quer ouvir, sei criar esperanças e aliviar o sofrimento.

Eu fiz uma provocação: então você não acredita na ciência?

Rochinha arregalou os olhos: “Acredito! Medicina científica é tudo o que dentro da medicina não é arte e sim base científica para o exercício da Arte Médica.”

Acredito na ciência de Paterson, Wucherer e Silva Lima, Claude Bernard e Pasteur. Já a ciência financiada pela indústria farmacêutica, eu vejo com desconfiança. Disse-me o sábio Rochinha.

Eu tenho empatia pelo sofrimento dos doentes, desde que eles paguem. Eu não sou a previdência social, nem membro da Santa Casa de Misericórdia. Não sou candidato a Santo!

Além de rico, doutor Rochinha lê os clássicos da literatura e, de vez em quando, se arrisca com alguns poemas. Todos inéditos. Ele espera algum dia ser reconhecido.

Rochinha tem hábitos estranhos: coleciona besouros. Possui uma coleção maior que a da Lineu, na Academia de Viena. Como se vê, o meu colega não é um ignorante, um negacionista obscuro. Não, apenas gosta de ganhar dinheiro.

Eu perguntei: quais as vantagens da atual medicina de mercado para os médico? Ele foi socrático: “depende, se o médico é o dono do negócio ou é empregado. Para os paciente, essa medicina tem pouco a oferecer, além das despesas.”

Rochinha tem uma memória de elefante, recitou uns versos panfletários, que ele ouviu em 1978, quando participamos de num encontro de estudantes de medicina em Belém do Pará:

“A medicina vai bem e o doente vai mal / Qual é o segredo dessa ciência original? / Certamente, não é o paciente que acumula o capital.”

Depois caiu na gargalhada. Lembrava-se, ele perguntou. Eu disse não, tinha esquecido.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

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