terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Medicina do Capital (a humanização da mercadoria) Parte III


A Medicina do Capital (a humanização da mercadoria) Parte III

Antonio Samarone

CONTINUAÇÃO...


A revolução tecnológica, do final do século XX, tem provocado mudanças significativas tanto nos saberes como nas práticas da profissão médica. A autonomia técnica, o poder de decisão, a relação médico-paciente, a tradicional hegemonia médica nas equipes de saúde, o domínio e conhecimento globalizante do corpo humano, bem como o prestígio e status quo dos médicos sofreram abalos importantes, alterando não só a dinâmica interna da profissão como, e especialmente, a nova visão social que a sociedade passa a produzir sobre os médicos em geral.

A subdivisão do cuidado médico em procedimentos obedece ao modelo taylorista-fordista, o trabalho é dividido em diversas sub-especialidades, fracionando as tarefas em 4.600 procedimentos, padronizando as intervenções, reduzindo o papel intelectual do médico, aumentando a produtividade; passando o comando para o Capital. Uma linha de desmontagem do corpo humano, coordenada pelo lucro.

Preocupados com valorização do seu trabalho, os médicos brasileiros encontraram nos procedimentos a forma de divisão do trabalho ajustada ao mercado da Saúde. Se a especialização da fase anterior foi uma divisão social e técnica do trabalho médico, em parte determinada pela elevada complexidade do setor; a subdivisão em procedimentos, uma espécie de linha de montagem descoordenada, obedeceu unicamente às necessidades de faturamento do mercado.

O fim da clínica? A oferta de procedimentos diagnósticos reduziu o papel da propedêutica no trabalho médico. Os exames laboratoriais bioquímicos, hematológicos, biologia molecular, genético, microbiológico, toxicológico, os recursos diagnósticos da medicina nuclear, os exames anatomopatológicos, citopatológicos, a endoscopia, os testes eletrofisiológicos, entre outros, e de maior aceitação no mercado da saúde, os centrados nas imagens (RX, ultrassom, tomografia computadorizadas e a ressonância magnética). Com o advento do paradigma molecular, a patologia perde espaço.

As mudanças da prática médica, com a transformação do cuidado em mercadoria, do paciente em cliente, consumidor, usuário, solaparam as frágeis bases humanistas da medicina. A nova realidade assustou os remanescestes da medicina artesanal, que iniciaram um movimento, através do Conselho Federal de Medicina (CFM), ainda tímido, de introduzir no ensino médico disciplinas de humanidades, numa desesperada forma de resistência.

A medicina mercantilizada, apesar do brilho tecnológico, apresenta problemas que podem agravar o perfil epidemiológico. É mais um sistema de doenças que de saúde. A medicina comercial possui baixo impacto no perfil epidemiológico; custos elevados; desigualdade no acesso ao consumo dos procedimentos; baixa satisfação da clientela; redução do papel dos médicos, viram operadores de tecnologias;

Existem resistências a subordinação da medicina ao capital, sobretudo na perda de autonomia dos médicos. Uma das sublimações é o revestimento da prática com o véu da ciência. A escola médica está montada para transformar o médico num mascate da ciência. Uma medicina voltada para ciência é o lenitivo para a sua desumanização. A ciência, como as mercadorias, é impessoal.

Em que consiste essa busca de uma humanização perdida? Um retorno romântico para a medicina artesanal ou a criação de novas práticas para a medicina comercial? Quais são as novas utopias? O modelo artesanal produziu as narrativas de uma medicina social, coletiva, na montagem de Sistemas Nacionais de Saúde, públicos, de acesso universal e gratuito. A utopia era o SUS como está no papel.

A questão caminha para uma impossibilidade, como humanizar as mercadorias. Contudo, como a esperança não morre, ou é a última, surgem novos caminhos. As novas tecnologias, sobretudo as de informação, tanto podem ser instrumento de implementação dos lucros e de controle social; como do estabelecimento da autonomia dos pacientes. Ou evoluímos para a autonomia das pessoas, do indivíduo, cada um será o comandante do seu corpo, numa medicina personalizada e individualizada. O novo médico seria parceiro dessa mudança, perderia poderes e ganharia e ganharia importância para os pacientes. Estamos falando de uma medicina voltada para os pacientes.

Em outros tempos, os médicos cuidavam dos doentes, sua principal missão era aliviar o sofrimento humano. Estabelecia com a sua clientela uma relação fraterna e de confiança, chamada pretensiosamente de “colóquio singular”. A recompensa não era pagamento, remuneração, salário, vencimento, nada que parecesse comércio, poeticamente, os médicos recebiam honorários, aquilo que honra a quem recebe. Era comum o “Deus lhe pague”, o “abaixo de Deus, o senhor”, e todo o médico tinha um horário em sua agenda para a filantropia. Com frequência, os pacientes demonstravam sua gratidão com mimos: - “doutor, engordei esse capão para o senhor”.

A atual humanização não significa um retorno a essa medicina do século XX. Os caminhos são outros. A genética nos reduziu a individualidade biológica. O humanismo possível numa medicina mercantilizada é a luta pela autonomia dos pacientes, que eles passem a ter o comando dos seus corpos, de sua saúde e de suas doenças. Já que a sociedade nos atomizou, pelo menos cada um decida sobre a sua forma de viver e morrer. Entre uma medicina voltada para o capital, ou voltada para ciência, a utopia consiste apenas na construção de uma medicina voltada para o ser humano, personalizada, para os pacientes. Sem abrir mão das novas tecnologias.

A utopia sanitária do século XXI, compatível com a medicina de mercado, é auto melhoramento individual, autodisciplinado na procura de saúde. A ênfase na autonomia individual está ligada à desmontagem do Estado assistencialista que trata os indivíduos dependentes com desconfiança, como “parasitas sociais”. Esse é o sonho do liberalismo. E as esquerdas acham o que? Estamos pensando...

Antonio Samarone.


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