sábado, 10 de agosto de 2024

A FLOR DA PELE (PARTE I)


 A flor da pele (parte I).
Por Antonio Samarone.

A condição humana é corporal.

Nos apropriamos do mundo pelos sentidos. O tato é distribuído em toda pele. É fundamental mantermos os “pés no chão”.

O tato permite sentirmos o volume, o contorno, a textura, o peso, a profundidade e a temperatura das coisas. Os cegos leem os 64 caracteres do alfabeto de Louis Braille, com o tato.

Todos os sentidos, (cinco, para Aristóteles), se reduzem ao tato: a língua sente o contato com paladar, os ouvidos com som, o nariz com o ofalto e os olhos com os raios de luz. O tato é o sentido mais antigo, se manifesta ainda no útero, a partir do segundo mês.

Os obstetras mais ortodoxos, só indicam o parto cirúrgico em último caso, consideram a experiência tátil de passagem do feto pelo canal do parto, uma experiência decisiva a uma vida saudável.

Eu fiz um caminho inverso: demorei a nascer, estacionei no canal materno. Não queria sair. Convivo com as sequelas.

Foi a mão que fabricou os instrumentos (a mão de obra), e criou o Homo sapiens. A expulsão do Paraiso nos condenou ao trabalho e a parir os nossos filhos com dor. Muitos burlam.

A leitura apressada da bíblica popularizou uma versão superficial, que São Tomé, “queria ver para crer”. Na verdade, o que São Tomé exigiu foi tocar a ferida. Por dedo na ferida. “Se eu não puser o dedo no lugar dos cravos e a minha mão em seu lado, não acreditarei.” – disse São Tomé.

O patriarca bíblico Isaac, cego, escolheu quem seria o seu sucessor pelo tato. Ele preferia Esaú, que era peludo. A mãe queria o imberbe Jacó. O velho patriarca ordenou: “venha cá Esaú, para que eu lhe apalpar e reconhecê-lo. A mãe empurrou Jacó, vestido com as roupas de Esaú e as mãos cobertas com a pelo de carneiro.

Isaac, cego, sendo enganado pelo cheiro da roupa de Esaú e os pelos postiços das mãos, anunciou a consagração de Jacó, como se fosse Esaú. A bíblia acatou Jacó, “mesmo sem as atas”.

Entretanto, o tato foi vulgarizado, um sentido animal, afastado do espírito, uma forma menor de reconhecimento do mundo. Voltaire, equivocadamente, considerava o tato o menor dos sentidos.

A pele é o involucro real e simbólico do corpo, podendo ser confundido com a própria pessoa: “salvar a pele” é salvar-se a si. O sonhador se belisca, para certifica-se de si.

O abraço é um reconstituinte sentimental, um afago na alma.

É possível ser cego, surdo e anósmico sem desistir da vida. Entretanto, a supressão das sensações táteis decreta o fim de uma vida autônoma. A lepra suprimia a sensibilidade de partes afetadas do corpo, com as consequências conhecidas.

Na medicina, enquanto a clínica era soberana, o médico acessava aos segredos do corpo pelos sentidos. A propedêutica, em desuso, é um conjunto de técnicas que abria o caminho do diagnóstico. A palpação era o caminho da mina, em uma medicina artesanal.

Não existe diagnóstico confiável sem se tocar no paciente, sem o apalpar, ensinava Gílton Resende. A medicina de mercado não perde tempo com apalpações, perdeu o apreço ao toque.

O meu professor de clínica médica na UFS, Gílton Resende, obrigava o aquecimento das mãos, com intensa fricção, antes da palpação dos pacientes. Ele sabia a importância do tato e a energia transmitida pelas mãos.

O toque retal, como prevenção do câncer de próstata, é o exemplo mais conhecido do uso eficaz e incomodo do tato na medicina.

As coisas impalpáveis são virtuais.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário