sexta-feira, 30 de agosto de 2024

ITABAIANA - 350 ANOS. MOZART FONSECA DE OLIVEIRA

Itabaiana, 350 anos – Mozart Fonseca de Oliveira (96 anos).
Por Antonio Samarone.

Itabaiana viveu um período de turbulência política na década de 1960. A cidade dividia-se apaixonada entre o PSD de Manoel Teles e a UDN de Euclides Paes Mendonça. Uma disputa pelo controle do comércio. Um coronelismo urbano.

Economicamente, Itabaiana crescia, apesar da política, transitando de uma economia agrícola para a uma economia mercantil.

A chegada da BR – 235 fomentou a criação de um polo de transporte. Surgia os caminhoneiros, com a sua rede produtiva: oficinas, autopeças, fábricas de carrocerias, provendo uma revolução na economia.

O crescimento do comércio levou a uma disputa pelo seu controle e transferiu a concorrência para a política.

A disputa política caminhou para um vale tudo, para a violência desmedida, culminando com o assassinato dos dois chefes: (Euclides em 1963 e Manoel Teles em 1967). A cidade viveu uma longa noite de pessimismo político, na contramão da explosão econômica.

A cidade estava profundamente dividida. Um simples exemplo:

Em 19 de dezembro de 1965, ocorreu em Itabaiana uma grande marcha para a construção de uma nova igreja. O Padre Arthur Moura Pereira, próximo ao PSD, organizou uma caravana de caminhoneiros, voluntariamente, para buscar pedras no povoado Bom Jardim.

Foi o fim das seculares cercas de pedras do povoado.

Eu tinha 11 anos, mas ajudei a carregar essas pedras para a igreja. As pedras foram despejadas no Campo Grande, próximo ao antigo Tanque de Santa Cruz, onde ocorriam as festas de Natal, e hoje funciona a Praça de Eventos.

Não sei o destino dessas pedras, nem as razões da igreja não ter sido construídas. O que impediu? Não foi por falta de pedras! A cidade, nessa época, não se unia nem para construir uma igreja.

No cenário nacional, a ditadura de 1964 se consolidava, eliminou os Partidos Políticos e criou a ARENA.

Os grupos locais, adversários políticos, que entrassem em acordo. Em Itabaiana, a UDN de Euclides virou a ARENA I e o PSD de Manoel Teles, ARENA II.

Nas eleições municipais de 1966, a ARENA I indicou o candidato a Prefeito, Vicente de Belo, e o vice, Derivaldo Correia, foi indicado pela ARENA II.

Em 1970, como contrapartida de 1966, era a vez da ARENA II (PSD) indicar o candidato a Prefeito e a ARENA I (UDN), o vice. E assim foi feito: Seu Mozart (PSD), para Prefeito e José Elson (UDN) para vice. Todos concordaram, a eleição caminhava para a vitória.

Faltando 8 dias para o pleito, o novo chefe da UDN, Chico de Miguel, herdeiro de Euclides, rompeu o acordo e decidiu apoiar o candidato do MDB, Filadelfo Araújo, um alfaiate ilustre, sem peso eleitoral. Resultado, vitória improvável do MDB.

Até o vice da chapa da ARENA, José Elson, votou em seu Filadelfo.
Chico de Miguel consolidou a sua liderança.

Existia o MDB, para uma minoria que resistisse a ditadura.

Foi necessária essa introdução, para o entendimento do papel de Seu Mozart, na vida itabaianense. Um homem pacífico, voltado para a conciliação.

Mozart Fonseca de Oliveira foi vanguarda nesse processo de reunificação da sociedade, em Itabaiana. Sem ele, o fim da cisão social teria sido mais demorada.

O crescimento econômico de Itabaiana continuava, só que a nebulosa cinzenta da política não ajudava. A política repetia os vícios do coronelismo.

Foi nesse momento de crise, que Mozart Fonseca de Oliveira, Pedro Garcia Moreno e José Queiroz da Costa investiram no Futebol.

Procuraram uma saída para reunificar a cidade, alimentar a autoestima e construir uma narrativa de grandeza. O futebol propagou a importância de nova Itabaiana.

O primeiro campeonato, ocorreu cedo, em 1969.

Depois veio o Penta campeonato! Zé Queiroz é o patrono, imprescindível. Entretanto, o papel de Seu Mozart foi fundamental, ele foi o eterno presidente do Tremendão da Serra. Exatamente ele, um homem de paz, voltado para a conciliação.

A Associação Olímpica de Itabaiana não é apenas um time de futebol, é a cidade de chuteiras. A letra do hino, autoria do professor e poeta Alberto Carvalho, deixa claro num verso: “Somos Itabaiana, cidade, celeiro...”.

Foi o futebol que mais divulgou imagem de grandeza da cidade. Aliás, divulga até hoje.

Nesse tempo de dificuldades, Seu Mozart se disse presente. Em 1968, fez parte do grupo que investiu no futebol. Repaginou a Associação Olímpica. Transformou Itabaiana, na Capital sergipana do futebol.

Em 1978, a criação da rádio Princesa Serra ajudou a consolidar o crescimento de Itabaiana, sobretudo, em seu aspecto simbólico. A fama de Itabaiana Grande se espalhou.

Novamente a contribuição de Seu Mozart foi importante. Com a chegada da rádio, ele montou um programa cultural aos domingos, “Revista Dominical”, uma enciclopédia cultural do rádio. O programa continua no ar, com uma boa audiência.

Mozart Fonseca de Oliveira, nasceu em Itabaiana, na rua do fundo da igreja, a 19 de junho de 1928. Filho de Antonio Agostinho de Oliveira, dentista prático e promotor da cidade, e Dona Lucila Fonseca de Oliveira, de Capela.

O pai, Antonio Agostinho, era irmão do General João Perreira.

Seu Mozart cresceu com todos os meninos daquele tempo. Jogando bola na rua, banho nos tanques e participando dos folguedos e traquinagens.

Conta-se que da primeira vez que ele viu um picolé, ficou encantado. Entregou para a empregada, Maria Cajueiro, guardar. Na volta, ele não se conformou, o picolé tinha desaparecido, descongelou. Ele achou que Maria Cajueiro tinha chupado.

Maria Cajueiro, era empregada na Pensão de Dona Antonieta, a mãe de Zé Bezerra e Dona Didi. Funcionava onde depois foi a casa paroquial e, em seguida, a sede da Associação Olímpica de Itabaiana. Depois eu falo das pensões.

Mozart era um “center forward” habilidoso, mas lento. Foi um artilheiro.

Na conversa, ele me esclareceu que o Fluminense chegou a Itabaiana pelas mãos do Promotor Severiano Cardoso, que criou um time com mesmo nome. Seu Mozart jogou nesse fluminense, quando começou a torcer.

Na mesma época, o mestre Paulo sapateiro criou o Flamengo. Ou seja, já houve o Fla-Flu de Itabaiana, confirmando a tese que de tudo o que existe no mundo, em Itabaiana tem pelo menos dois.

Seu Mozart fez as primeiras letras com as professoras: Dona Glorinha, esposa de Firmino Almeida; Miriam Barbosa, irmã do Padre Eraldo e com o professor José Fortunato Pinto, diretor do Murilo Braga.

Depois seguiu para Aracaju, onde estudou nos Colégios Salesiano e Tobias Barreto, e na Escola de Comércio, da Praça Camerino.

Mozart passou pelo Serviço Público, pela Receita e Federal e polo Serviço de Correios e Telégrafo. Retornou à Itabaiana, onde montou a Padaria Senhor do Bomfim, vendendo-a depois a Heleno da Padaria. Aproveitando o crescimento do número de caminhões na cidade, montou um comércio de autopeças.

Seu Mozart casou em 19 de março de 1957, com Maria de Lourdes Santos, filha de José de Germano e Dona Maria das Virgens. Uma mulher elegante e de inteligência ágil. Fina! Educada em Colégio de Freiras. Foi interna no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, em Aracaju, entre 1948 e 1951.

Tiveram três filhos: Mozart Augusto, Carlos Augusto e Germano.
Dona Lourdes foi a minha inesquecível professora de desenho, no tradicional Colégio Murilo Braga.

Mozart Fonseca de Oliveira foi um pacificador. Sem ele na presidência, a Associação Olímpica de Itabaiana não se tornaria uma ponte de união da sociedade. Zé Queiroz foi decisivo para o enfrentamento dos vícios de um futebol de cartas marcadas. Sem ele, não teríamos as conquistas.

Por outro lado, sem Mozart Fonseca, não teríamos a união de todos os itabaianenses sob a bandeira tricolor. Sem o seu equilíbrio, tranquilidade e inteligencia, o seu amor pelo futebol serrano, os caminhos seriam mais difíceis.

Ao seu modo, Mozart Fonseca de Oliveira, foi um experiente engenheiro, na construção da grandeza atual de Itabaiana. Sem aparecer, longe dos holofotes da fama, Mozart cumpriu a sua missão.

Ao final, Dona Lourdes me confirmou uma lenda: Lampião rondava, rondava, mas nunca entrou em Itabaiana. Por quê? O chefe politico, Dorinha, contava que foi a sua valentia que barrou Lampião. Sabemos que é gabolice.

A verdade foi revelada por Dona Lourdes. Quando o bando de Lampião apontou na entrada de Itabaiana, encontrou um Franciscano, com uma criança no braço e uma batina amarronzada.

O frade balançou negativamente o cordão que circundava o hábito pela cintura. Pode voltar! Lampião, aqui você não entra.

Quem era esse Frade corajoso? Mamãe tinha certeza que o frade era Santo Antonio. Ontem, dona Lourdes, esposa de Seu Mozart, me confirmou.

Viva Santo Antonio!

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

terça-feira, 27 de agosto de 2024

FREUD E A POESIA

Freud e a Poesia.
(por Antonio Samarone)

Ontem, encontrei numa mesa de cafezinho, no Shopping, um poeta em carne e osso. Um filho de Apolo! Além de poeta, o mal-assombrado é jornalista. E dos bons.

Para impressioná-lo, perguntei-lhe se conhecia a interpretação freudiana da poesia. Claro que não, respondeu-me de pronto: “imagina, nem os psicanalistas!”

Fomos numa livraria próxima e ele comprou um livro que esmiúça o assunto. Eu já tinha o livro e, hoje cedo, reli o capítulo sobre poesia. Até onde entendi, segue uma síntese:

De onde os poetas extraem os seus temas, como eles conseguem comover, despertar-nos emoções? Como ocorre a criação poética?

Em cada um de nós existe um poeta escondido? Toda a criança brincando, se comporta como um poeta, cria o seu próprio mundo?

O poeta é uma criança que brinca, criando um mundo de fantasia que leva a sério. Quando crescemos, transferimos o prazer de brincar para a fantasia. Não renunciamos a nada, construímos castelos no ar, sonhos diurnos.

As crianças brincam de ser grande. Já os adultos escondem as suas fantasias, os seus desejos (aqui, Freud simplifica: os desejos ou são de ambição, ou eróticos). Essa primazia do Eros, talvez fosse a expressão do fim do puritanismo da Era Vitoriana – 1837/1901.

A psiquiatria de mercado tenta fragilizar a psicanálise, enfatizando essa obsessão de Freud pela questão sexual, como sendo exagerada. Talvez seja um ponto fraco. Porém, em nada reduz a sua importância, para o entendimento da alma humana.

Os nossos sonhos noturnos nada mais são que essas fantasias. As fantasias, em geral, abrem espaços para as neuroses e as psicoses, são os desejos recalcados enviados para o inconsciente.

Nos poetas, as fantasias alimentam os sonhos.

Todas as criações poéticas são sonhos diurnos ou somente os poemas ingênuos? A preciso separar as fantasias decorrentes dos desejos, das criadas nas obras dos poetas. É preciso relacionar as criações poéticas com a vida dos artistas, com o despertar de vivências infantis. Uma continuação das brincadeiras.

Freud desafia a se buscar a origem dos temas escolhidos pelos poetas em suas fantasias. O Velho Bruxo deixa sem explicações, os fenômenos afetivos que desperta as criações poéticas.

Se um simples mortal nos contar o que ele esconde em seus sonhos diurnos, revelar as suas fantasias, não despertará o menor interesse. Por outro lado, se um poeta cantar as suas fantasias, nos leva ao prazer e ao encantamento.

Em que consiste a Ars poetica?

Eu não sei responder. Peço ao poeta citado que nos esclareça. Não basta dizer que é um raro talento, congênito, que Deus premia a alguns, a quem ele achar que merece.

Antonio Samarone. (médico sanitarista).
 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

ITABAIANA, 350 ANOS - FRANCISCO TAVARES DA COSTA (FEFI)

Itabaiana, 350 anos – Francisco Tavares da Costa (Fefi)
(por Antonio Samarone)

Papai Noel é antigo, nasceu de uma lenda de São Nicolau, um santo que distribuia brinquedos. Pelo que se conta, Papai Noel é um velho barrigudo, de barbas brancas e se veste de vermelho. Vive na Lapônia.

No Natal, ele levava presentes para os meninos.

Um prato cheio, para se estimular o consumo. Eu, até os 12 anos, não sabia da sua existência. O meu primeiro contato com o bom velhinho, foi no Armarinho Tem Tem. O dono do armarinho, Fefi, resolveu levar o Papai Noel para Itabaiana. Os pais passavam antes, comprava o brinquedo, e Papai Noel ia entregar em casa.

Assanhou todo mundo!

Fefi, mandou buscar a fantasia completa de Papai Noel no Rio de Janeiro, vestiu Juvino Barbeiro e os sonhos estavam prontos. A discussão se existia ou não Papai Noel estava encerrada. Ele estava ali, em carne e osso.

O Armarinho Tem Tem, de Fefi, foi um assombro em Itabaiana. Vendia de tudo. Perfumes bons, louças e cristais, brinquedos da estrela, e até sanfona. O Armarinho colocou o primeiro letreiro luminoso, em Itabaiana. Para completar, trazia Papai Noel.

Francisco Tavares da Costa (Fefi), nasceu no Beco Novo, Itabaiana, em 26 de agosto de 1933, um ano depois da grande seca. Filho de Totonho de Quirino, da Terra Vermelha, e Dona Graça, que fazia enxoval de batizado. Para variar, teve 10 irmãos.

Fez as primeiras letras com a professora Bernadete, esposa de Francisquinho Barbosa, o pai de Ricardo, na rua da Pedreira; depois passou pela escola de Dona Cândida, concluindo os estudos na conceituada escola de Maria de Branquinha, de onde saiu diplomado. Curso primário completo. E só.

Fefi, como todo menino pobre, foi se virar. Trabalhou de garçom, no Bar de Tonho Lima; balconista da farmácia do Dr. Eliseu; ajudante de sapateiro, na Tenda de Seu Firmino, irmão de Vicentinho.

Ao completar 18 anos, foi morar em Magalhães Bastos, subúrbio do Rio de Janeiro. Arrumou emprego na Casa Francisco Lopes, na rua Buenos Aires, no centro do Rio. Uma loja granfina de cristais e artigos para presente. Essa experiencia ajudou, na montagem do Armarinho Tem Tem.

A saudade da mãe bateu forte, e Fefi voltou para o ninho, depois de 3 anos morando no Sul Maravilha. Um caminho de muita gente.

No retorno a Itabaiana, Fefi montou o Bar São Jorge, um pequeno estabelecimento, vizinho ao cinema de Zeca Mesquita. Em seguida, Zé Gordinho, a pedido de Dona Graça, cedeu um salão com duas porta, vizinho a padaria, onde Fefi instalou o bar O Pinguim.

Esse novo bar de Fefi, inovou nos tira-gostos. Antes, em Itabaiana, nenhum bar vendia salgadinhos (pastel, coxinhas, guloseimas da Confeitaria Colombo). Fefi vendia refresco de mangaba, vitamina de banana e sanduíche de queijo do reino.

Outra novidade, Fefi descobriu os bebedores de cerveja em Itabaiana: os funcionários do Banco Brasil, Josias Dentista e os filhos de Zeca Mesquita. O Bar vendia dois engradados por semana. Seu Zeca tomava uísque e fumava charutos importados.

O Pinguim não possuia sanitários. A freguesia mijava na calçada, atrás do poste. Quando o sol batia, o fedor de mijo empestava o quarteirão. Só lembrando: o bar era vizinho a padaria de Zé Gordinho, em salão cedido por ele.

Não demorou, Zé Gordinho deu o ultimato: ou acaba o fedor, ou eu tomo o salão de volta. Resultado, Fefi comprou um purrão, um vaso de barro grosso, e passaram a mijar dentro desse pote.

Quando enchia, Fefi botava o mijatório na cabeça, descia pelo beco de Tonho de Rosário, e despejava numa baixada, perto das Trocas.

Fefi modernizou os serviços de bar, em Itabaiana.

Depois dos bares, Fefi criou o Armarinho Tem Tem, que falei no início do texto. Além de Papai Noel, Fefi criou em Itabaiana, um show de calouros, comandado pelo versátil Djalma Lobo. Ou seja, Festival de Música em Itabaiana, vem de longe.

Fefi sempre foi festeiro. A partir da segunda metade da década de 1950, estimulado por Euclides Paes Mendonça, Itabaiana organizou carnavais, com blocos, desfiles, jurados e disputas. Os músicos vinha do 28 BC.

Quatro blocos se destacavam. O “Lobo do Mar”, com a marchinha se a Canoa não virar; o “Margem da Serra”, com a marcha índio quer apito, “A Lua dos Enamorados”, com a marchinha do mesmo nome, e o bloco de João Rocha, do Campo Grande. O Margem da Serra era comandado por Seu Pierro e João Criano e o Lobo do Mar, por Fefi.

Garantidamente, todo mundo em Itabaiana se mete em política. Fefi era pessedista, apoiava Manoel Teles. Na eleição de 1958, o poderoso Euclides Paes Mendonça voltou a disputar a Prefeitura. A oposição, impotente, lançou o médico humanista Pedro Garcia Moreno.

Com o PCB na ilegalidade, o comunista Antonio de Dóci teve a sua candidatura a vereador rejeitada pelo PTB, comandado em Itabaiana, por Antonio de Rosinha. Sem saídas, Antonio de Dóci procurou Fefi, que nunca teve nada a ver com o comunismo, para representar o Partido nesta eleição. Um pedido feito a um amigo.

Fefi não podia nega, ficou sem jeito.

Antonio de Dóci, um homem culto e cheio de argumentos, tranquilizou Fefi. Pode deixar que a gente faz as chapinhas e mobiliza a militância comunista. A sorte estava lançada. Fefi era um nome popular, bem-visto, com centenas de amigos, e ainda por cima, apoiado pelos comunas.

A campanha foi uma festa. Faltando 15 dias para as eleições, as 3 mil chapinhas já tinha sido criteriosamente distribuídas. A vitória estava garantida.

Na apuração dos votos, uma surpresa: dos 3 mil eleitores que receberam a chapinha de Fefi, somente 36 votaram.

Esta era a força dos vermelhos em Itabaiana. Muitos anos depois, Abraão Crispim se candidatou a Prefeito de Itabaiana, e teve um pouco mais de 100 votos. Talvez, hoje, chegasse a 200.

Fefi conta essa trágica experiencia política, com acentuado bom humor.

Fefi criou o Rotary, o carnaval, Papai Noel, o programa de calouro, o bar moderno e a gráfica. Fefi criou a alegria. Foi o fundador da festa profana. Antes, só existia em Itabaiana, festas religiosas.

Fefi foi o primeiro agente cultural, em Itabaiana. Fefi é o torcedor símbolo da Associação Olímpica. Ele é anterior a fundação do tricolor. Viu tudo. Esteve presente em todos os jogos, carregando a bandeira tricolor. Na vitória e na derrota.

Fefi me apresentou a Papai Noel, como disse acima, e ao Fluminense. Fefi foi o primeiro torcedor do Fluminense, em Itabaiana.

Uma história prosaica: a sua mãe, Dona Graça, trouxe do Rio de Janeiro três camisas do fluminense: deu uma a Fefi, outra a Tonho, da Papelaria Brasil, e a última a Zé Bengala. Estava criada a torcida organizada do Fluminense, em Itabaiana. Eu entrei em 1963, aos nove anos.

Fefi (91 anos), está em plena vitalidade mental. Foi casado com Marlene (que merece um verbete), e tiveram dois filhos: Marco Antonio e Carlos Henrique.

Francisco Tavares da Costa foi um empreendedor da alegria, da festa e da cultura em Itabaiana.

Viva Fefi!

Antonio Samarone - médico sanitarista.
 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

DO ROLÓ AO MOCASSIM





 

 

Do Roló ao Mocassim...
(por Antonio Samarone)

Hoje visitei uma Feira de Calçados em Itabaiana. Um Show Room da Serra. Mais de cinquenta expositores, de todo o país. Grandes marcas e representantes. Centenas de logistas lotaram a feira, para realizarem negócios.

Conversei com um empresário de Novo Hamburgo, o maior polo calçadista do País, para contar-lhe a história dos sapateiros em Itabaiana.

Até e o final da década de 1960, existiam em Itabaiana 78 fabriquetas de sapatos. Chamavam-se de “Tendas”, onde a arte da sapataria era exercitada. Já falei sobre isso. Em Sergipe, Itabaiana e Simão Dias, dominavam a produção artesanal de sapatos.

Com a chegada do sapato industrializado, os artesões locais sucumbiram a concorrência. Ainda tentaram, alguns importaram um maquinário de Novo Hamburgo, mas não houve jeito. Essas máquinas ainda existem, sucateadas.

Hoje, 60 anos depois, o capitalismo desfilou os seus calçados, numa terra de sapateiros.

Eu acompanhei de perto a derrocada dos sapatos em Itabaiana, morava defronte a Tenda de Seu Justino, uma das maiores. Os sapateiros eram especializados, uns cortavam, outros costuravam e havia os soladores, que colocavam o sapato na forma. Ainda sinto o cheiro da cola de sapateiros, da qual fazíamos bolas saltitantes.

Seu Justino veio de Paripiranga, com uma grande família. Todos sapateiros. Messias, Everaldo (Peba), Toninho, Gilberto, Meco, Dedé e Dandinho, além das mulheres, Iracema, Finha e Nilza. Talvez tenha esquecido de outros.

Seu Justino foi o primeiro beco novense a possuir uma radiola. Aquele móvel grande, que ficava na sala de visitas. Tocava muito os demônios da garoa.

Dona Mãezinha, a esposa de Justino, era uma líder destemida. Braço forte, muito amiga de mamãe. A melhor definição da dor do parto, eu ouvi dela: “A dor de parir é a dor de cagar uma jaca.” Exagero ou não, nunca ouvi nada mais próximo da realidade.

Certo dia, a rua do Beco Novo entristeceu: Seu Justino foi embora, levou a família para ganhar a vida na Baixada Fluminense. Quebrou! Diziam os fofoqueiros, nas bodegas e barbearias. Como, pensava eu, um homem tão rico. Eu desconhecia o capitalismo.

Aquela família de amigos foi embora. Me criei com eles, brincando de pega-pega, pé em barra, bola de meia, cantigas de roda e tomando banho no Açude Velho.

As casas do Beco Nova eram de portas abertas. Os meninos circulavam de casa em casa. A rua era nossa. Não tinha automóveis, nem essas motos agressivas. Só as segunda feiras, chegava o caminhão de Tonho de Chagas, da Feira de Carira.

Por vezes, passava a marinete de Manesinho Clemente, no Beco Novo. Daquelas, que o bagageiro era em cima. Eu corria atrás para pungar na escada, pelo fundo.

O campinho era na rua e as traves dois chinelos.

Seu Justino tocava na Filarmônica e Dona Mãezinha era crente. A primeira que conheci.

Hoje, na grande e próspera feira da indústria calçadista em Itabaiana, eu tive saudades das Tendas, e de Dona Mãezinha, saudade de Everaldo (Peba), o meu primeiro amigo, com quem ia para as matinês de Zeca Mesquita.

Tentei dizer isso aos organizadores do empreendimento: Itabaiana, já foi um polo calçadista, nos tempos do artesanato.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sábado, 17 de agosto de 2024

ITABAIANA, 350 ANOS - ALBERTO NOGUEIRA SILVA.


 Itabaiana, 350 anos - Alberto Nogueira Silva (78 anos).
(Por Antonio Samarone)

Escalando a grande Serra, encontrei uma velha chácara, no Alto dos Ventos, onde se cultiva cogumelos comestíveis, onde o biribá, a pinha roxa, o canistel e a sapota amarela, prosperam num pomar exótico.

Num velho Chalé, mora dignamente Alberto Nogueira. Sozinho, digo melhor, na companhia de Alípio e Josefina, dois gatos nascidos no pé de Serra. Uma vida paradisíaca. Quando se acorda disposto, Alberto caminha uns 40 minutos, e vai tomar o banho matinal nas frias águas do Poço das Moças.

Lembrei-me de Elis Regina: “Eu quero uma casa no campo/ Onde eu possa ficar do tamanho da paz/ E tenha somente a certeza/ Dos limites do corpo e nada mais/ Eu quero carneiros e cabras/ Pastando solenes no meu jardim/ Eu quero o silêncio das línguas cansadas.”

Você merece, Alberto de Seu Bebé dos Passarinhos.

Alberto Nogueira Silva nasceu no Beco Novo profundo, Itabaiana Grande, em 23 de julho de 1946. Filho de Seu Bebé e Dona Júlia Nogueira. Neto do grande Maestro Antonio Silva, um negro do Pé da Serra. Aliás, o Barro Preto, vizinho ao Bom Jardim, foi um quilombo.

A família de Seu Bebé morava na terceira quadra da Rua Coronel Sebrão (Beco Novo), defronte ao Clube dos Trabalhadores, entidade festiva criada pelos comunistas.

Moravam ao lado de Miguel Fagundes e Dona Marinete, que vendia o melhor arroz-doce da cidade. As 13 horas, passavam Juju e Genilson, filhos de Zequinha de Santinho de Nia, com os tabuleiros de arroz de Dona Marinete. Irresistíveis!

Seu Miguel Fagundes era o patriarca do Beco Novo, udenista, vendia coco e emprestava dinheiro a juros. Ocasionalmente, botava o dinheiro para tomar sol na calçada, tirar o bolou, dentro de umas arupemas. Pai de Rovanda, Marluce, Renan (Cobra Verde) e o Tenente Erivaldo. Nunca perdeu um enterro.

Seu Bebé, Adalberto Silva, era sapateiro, como muita gente. Itabaiana era lotada de sapatarias e tendas. Ainda não entendi a origem. Por que tantos? Itabaiana possuía muitos curtumes e se produzia a “sola”, um grande armazém de Couro, de Seu Vieira, que se vendia fiado, para os sapateiros pagarem em dezembro. Quem atrasasse, ficasse devendo, Seu Vieira não cortava o crédito.

Dizia Seu Vieira: “se cortar o crédito é pior, o devedor deixa de trabalhar e eu fico sem ter a quem vender.”

Sapatarias famosas: Zeca Titia, Genaro, Vicentinho, Zé de Gonçalo, Seu Justino, Mestre Dema. A farra dos sapatos acabou, com a chegada dos sapatos de fábrica e os calçados plásticos. Chegou o capitalismo.

Alberto foi criado tomando banho no Açude Velho, onde eu aprendi a nadar, no Aloque e no Tanquinho, e buscando água para beber, na Pedreira, próxima à Rua de Maraba.

Durante o carnaval, além do Bloco Margem da Serra, comandado por João Criano, o Clube dos Trabalhadores fazia os seus bailes, e até uma matinê, aos domingos, para as crianças. O Clube, acordava tocando os frevos de Capiba: “borboleta não é ave/ borboleta, ave é/ borboleta só é ave na cabeça da mulher”, até hoje, não sai de minha cabeça.

Em Itabaiana, Alberto jogou no segundo quadro do Cantagalo. Na década de 1950, até o futebol tinha partido político. O Itabaiana era do PSD, e do comunista Tonho de Dóci, um time que se levava a sério. A UDN fundou o Cantagalo, pelas mãos de Tonho de Euclides e Francisco Vilobaldo (Chico do Cantagalo). Um time mais leve, que tinha a simpatia da molecada.

O Cantagalo formou times memoráveis: Dinda, Pedro Nila e Benedito Bispo; Faustinho, Dequinha e Paulo de Dezí; Zé de Finha, Dinho de Seu Vital, Tonho Leite, Robério e Sabará. O treinador era Boca Rica.

Houve um Cantagalo curioso, cujos nomes dos jogadores, eram iniciados com letra “B”: Boló, Boião e Biolo; Baldo, Benedito e Boca de Cabelo; Boarnerges, Bibi de Zé Madorna, Beto de Mané Padeiro, Bené e Bobó. O treinador era Boca Rica e o massagista Birunga.

Alberto viu chegar o Voleibol em Itabaiana, numa área vizinha a casa do Tenente Baltazar. Um oficial misterioso, que morava numa casa boa, de muros altos, e criava canários da terra. Esse campo de voleibol ficava ao lado do sítio de Seu Pedrinho Barbosa, pai de Gentil e Noel, os donos do G.Barbosa.

O Beco Novo era um polo cultural e esportivo, de pobres e remediados. Era o caminho para o Taboleiro dos Caboclos, um quilombo de paneleiros e jogadores de futebol. Os craques em Itabaiana, nasceram no Cruzeiro, hoje, Bairro São Cristóvão: Lima, Coringa, Zé de Chico, Zé Luiz, Augusto, Divo, Elisio, Dedé, Tonho de Preta, Zé de Vitinha e tantos outros jogadores de futebol.

Moravam no Beco Novo: João Giba, perfumista e produtor de botes de fósforos de sete pancadas, Pierrô e Bonito, negros vindos de Maruim para reforçar o Itabaiana, Vieira Lima, com a sua enorme família, Santinho da bodega, Zé Camilo, Zé Mosquito, Neca Funileiro, Alaíde e Fóbica, a família do Cabo João Mole, Antonio Angico e Dionélia, Dona Bilô e seu filho Zezito, Antonio de Anjinho, Armelino e as putas da Vila de Manesinho Clemente (Maria Grande, Maria Pretinha, Maria Ribeirópolis e Zefinha Carne Frita). Falta muita gente, que eu conto depois.

Alberto Nogueira, aprendeu as primeiras letras com o seu Tio, Airton Silva, o professor Órion. Passou pelas escolas das professoras Odília Cedro e Helena de Branquinha, pelo Grupo Guilhermino Bezerra e pelo Ginásio Murilo Braga.

Em 1961, aos 15 anos, Alberto Nogueira já tinha esgotado os estudos que Itabaiana podia oferecer.

E agora? Os meninos de famílias ricas iam estudar em Aracaju. E os outros? Itabaiana não tinha empregos. O destino era ser sapateiro ou alfaiate. Alberto foi aprendiz de ourives, no ateliê de Samuel de Felismino. O ouro já era importante no comércio de Itabaiana: seu Toninho, o pai de Djalma, Raimundo, Antonio Lobo, entre outros.

Aos 15 anos, Alberto Nogueira seguiu a sina de muitos: foi tentar a vida no Sul Maravilha, primeiro para o Rio de Janeiro, viver na Baixada Fluminense, destinos de muitos itabaianenses. Eu visitei a família de Seu Justino e Dona Mãezinha, no Distrito de Queimados. Depois Alberto migrou para Santo André, São Paulo.

No Sul, Alberto se formou em contabilidade, administração de empresas e direito. Jogou futebol, e se reencontrou com muitos outros itabaianenses, que tiveram o mesmo destino: ir embora, tentar a sorte.

Eram tantos os exilados de Itabaiana, em São Paulo, que eles fundaram o Cantagalo de Santo André.

Alberto, por lá estudou, trabalhou em fábricas, se casou e criou família. Somente em 1989, aos 42 anos, ele retornou a Terra Natal. Na volta, Alberto abriu um escritório de advogacia, casou com Angela Garcia Moreno, a filha mais velha de Dr. Pedro, e foi viver.

Alberto, na volta do exílio, se meteu com o futebol, sendo presidente da Associação Olímpica de Itabaiana, por sete anos. Em sua gestão, o Itabaiana foi campeão sergipano em 2005.

Foi esse itabaianense, que eu encontrei em paz, no sítio do Alto dos Ventos, no pé da Serra de Itabaiana. Um torcedor do Palmeiras.

Um homem que lutou, sofreu, ganhou e perdeu, mas construiu uma história de vida digna.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A FLOR DA PELE (PARTE II)


 A flor da pele. (parte II)
(por Antonio Samarone)

“É em vão que vagais pelas ciências/ Cada qual aprende somente o que pode aprender.” Mefistófeles.

Precisamos de muito tato para viver, ou seja, sensibilidade, para a convivência (contato) com os outros. O isolamento social da pandemia espantou o outro. Não voltaremos ao que era, que já não era lá essas coisas.

As metáforas sobre o tato são numerosas. Quando nos envolvemos em missões perigosas, arriscamos a nossa pele. Quando maltratamos alguém, estamos tirando-lhe o couro.

O casamento era antecedido ao pedido da mão da noiva. Estender a mão é ser solidário. Estar na mão de outro, é a completa subordinação. Algumas pessoas devem ser tratadas com luvas de pelica. Outros são “cascas grossas”, toscos.

Catar piolhos e cafuné são modos ancestrais de toque, herança dos símios. Infelizmente, não se catam mais piolhos. Os piolhos estão em extinção. O Neocid venceu! A despiolhação já foi uma atividade profissional. As catadoras de piolho encontravam lêndeas, nas raízes profundas dos delicados fios de cabelo.

Tocar com as mãos é uma forma de cura, na medicina popular. Os Reis da França curavam as escrófulas, pela aposição das mãos. O toque terapêutico. Tocar é uma subjetividade. Isso não me tocou, se diz quando não gostamos de uma manifestação cultural.

Todas as situações de sofrimento pode beneficiar-se das massagens: dores físicas e emocional, das doenças autoimunes ao câncer. Elas restauram a soberania, a calma.

A medicina humanizada cuida das pessoas, e o cuidado pressupõe o toque. A medicina de mercado oferta procedimentos. A criança hospitalizada é tocada, mimada e acariciada sem qualquer constrangimento.

Os idosos imploram o toque!

Na Índia, os párias, entre muitas restrições, são intocáveis. Antes do DNA, as pessoas eram identificadas pelas impressões digitais.

A Pandemia impôs o isolamento social, o confinamento, e em casos mais graves o lockdown. Ninguém tocava em ninguém.

“O tato é o menos compreendido dos sentidos, e o mais humano deles. Os gregos, os felinos e os pintores compreenderam a visão; os hebreus, às aves e os músicos compreenderam a audição; os indianos, os elefantes e os cozinheiros compreenderam o gosto; os franceses, os cães e os perfumistas compreenderam o olfato. Somente o tato precisa da ajuda de todos os outros para ser compreendido e, mesmo assim, muito precariamente.” Dr. Átalo.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

O BISPO DE HIPONA


 O Bispo de Hipona.
(por Antonio Samarone)

Em Itabaiana Grande, cidade dos milagres, a imagem de Santo Agostinho está em um belo pedestal.

A vila de Santo Antonio e Almas de Itabaiana, por força da resolução Provincial de número 301, de 28 de agosto de 1888, foi elevado à categoria de cidade, na Presidência de Francisco Paula Preste Pimentel.

Coincidentemente, 28 de agosto também é o dia de Santo Agostinho, o maior teólogo da igreja católica. Ele é o santo padroeiro dos teólogos, dos impressores, pesquisadores e até dos cervejeiros.

Desconheço, no Brasil, alguma cidade sob sua proteção. Mesmo a cidade de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, o padroeiro é Santo Antonio.

Santo Agostinho de Hipona não é um santo popular. É um doutor da Igreja, com poucos devotos e raros leitores. Em Itabaiana, ele está no Panteão.

As suas principais obras são: “Confissões” e “Cidade de Deus”. Em Cidade de Deus ele fala sobre os dogmas do cristianismo, como a vida eterna, a alma, o paraíso e as bondades de Deus. Em Confissões, ele relata a sua vida antes da conversão.

Em Itabaiana, o padroeiro continua o glorioso Antonio. A novidade, é a presença frequente de Santa Dulce, protegendo a cidade com os seus milagres.

Santo Agostinho de Hipona, rogai por nós.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
A foto é de Almeida Bispo.

sábado, 10 de agosto de 2024

A FLOR DA PELE (PARTE I)


 A flor da pele (parte I).
Por Antonio Samarone.

A condição humana é corporal.

Nos apropriamos do mundo pelos sentidos. O tato é distribuído em toda pele. É fundamental mantermos os “pés no chão”.

O tato permite sentirmos o volume, o contorno, a textura, o peso, a profundidade e a temperatura das coisas. Os cegos leem os 64 caracteres do alfabeto de Louis Braille, com o tato.

Todos os sentidos, (cinco, para Aristóteles), se reduzem ao tato: a língua sente o contato com paladar, os ouvidos com som, o nariz com o ofalto e os olhos com os raios de luz. O tato é o sentido mais antigo, se manifesta ainda no útero, a partir do segundo mês.

Os obstetras mais ortodoxos, só indicam o parto cirúrgico em último caso, consideram a experiência tátil de passagem do feto pelo canal do parto, uma experiência decisiva a uma vida saudável.

Eu fiz um caminho inverso: demorei a nascer, estacionei no canal materno. Não queria sair. Convivo com as sequelas.

Foi a mão que fabricou os instrumentos (a mão de obra), e criou o Homo sapiens. A expulsão do Paraiso nos condenou ao trabalho e a parir os nossos filhos com dor. Muitos burlam.

A leitura apressada da bíblica popularizou uma versão superficial, que São Tomé, “queria ver para crer”. Na verdade, o que São Tomé exigiu foi tocar a ferida. Por dedo na ferida. “Se eu não puser o dedo no lugar dos cravos e a minha mão em seu lado, não acreditarei.” – disse São Tomé.

O patriarca bíblico Isaac, cego, escolheu quem seria o seu sucessor pelo tato. Ele preferia Esaú, que era peludo. A mãe queria o imberbe Jacó. O velho patriarca ordenou: “venha cá Esaú, para que eu lhe apalpar e reconhecê-lo. A mãe empurrou Jacó, vestido com as roupas de Esaú e as mãos cobertas com a pelo de carneiro.

Isaac, cego, sendo enganado pelo cheiro da roupa de Esaú e os pelos postiços das mãos, anunciou a consagração de Jacó, como se fosse Esaú. A bíblia acatou Jacó, “mesmo sem as atas”.

Entretanto, o tato foi vulgarizado, um sentido animal, afastado do espírito, uma forma menor de reconhecimento do mundo. Voltaire, equivocadamente, considerava o tato o menor dos sentidos.

A pele é o involucro real e simbólico do corpo, podendo ser confundido com a própria pessoa: “salvar a pele” é salvar-se a si. O sonhador se belisca, para certifica-se de si.

O abraço é um reconstituinte sentimental, um afago na alma.

É possível ser cego, surdo e anósmico sem desistir da vida. Entretanto, a supressão das sensações táteis decreta o fim de uma vida autônoma. A lepra suprimia a sensibilidade de partes afetadas do corpo, com as consequências conhecidas.

Na medicina, enquanto a clínica era soberana, o médico acessava aos segredos do corpo pelos sentidos. A propedêutica, em desuso, é um conjunto de técnicas que abria o caminho do diagnóstico. A palpação era o caminho da mina, em uma medicina artesanal.

Não existe diagnóstico confiável sem se tocar no paciente, sem o apalpar, ensinava Gílton Resende. A medicina de mercado não perde tempo com apalpações, perdeu o apreço ao toque.

O meu professor de clínica médica na UFS, Gílton Resende, obrigava o aquecimento das mãos, com intensa fricção, antes da palpação dos pacientes. Ele sabia a importância do tato e a energia transmitida pelas mãos.

O toque retal, como prevenção do câncer de próstata, é o exemplo mais conhecido do uso eficaz e incomodo do tato na medicina.

As coisas impalpáveis são virtuais.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

UM AMIGO CORDIAL

Um amigo cordial.
(Por Antonio Samarone)

Cardosinho é um empresário bem-sucedido. Politicamente, um liberal nos costumes e um crente no estado mínimo. A mão invisível do mercado é o seu parâmetro de políticas sociais.

Odeia a esquerda, sobretudo Lula. Na ausência de candidatos bem comportados, ele vota na extrema-direita, com um discurso cheio de arrodeio. Ele alardeia: - “voto de luvas e máscara.”

Cardosinho adora a Europa, bons vinho e queijos franceses. Ele vê o Velho Mundo como um paraíso. De modo inverso, para ele, no Brasil nada funciona. Cita com frequência, como se a frase fosse sua, que “original no Brasil, só a jabuticaba”.

Ele cita essa asneira com uma certa arrogância e um sorriso irônico de superioridade no canto da boca. No tempo da lava a jato, Cardosinho chegou a viajar a São Paulo, para assistir palestras do Juiz Sérgio Moro.

Culturalmente, Cardosinho é um pretensioso. Leu, há muito tempo, Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, tendo memorizado apenas que o brasileiro é um homem cordial. Acredita nisso, e até hoje cita a frase a três por quatro.

Sergio Buarque defendeu que as relações pessoais, seus afetos, amizades, inimizades, favores, graças, poderes e submissões, organizam a sociedade. Sergio atribui essa cordialidade a uma herança ibérica.

Cardosinho entendeu a cordialidade como polidez, simpatia e fino trato. Ele acredita que a contribuição do Brasil para a civilização será o homem cordial. Cardosinho veste essa fantasia: fala mansa, intercalada com risos, mostrando sempre uma erudição de almanaque, solicito e atencioso.

Fado Tropical, uma música de Chico Buarque, resume poeticamente esse homem cordial:

"Sabe, no fundo, eu sou um sentimental/ Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro)/ Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."

Ancorada nessa balela cordial, Cardosinho defende o genocídio dos palestinos, a intervenção militar na Venezuela e a vitória de Trump, nos Estados Unidos.

Como se diz: se tem focinho, rabo, pé, costela e orelha de porco, ou é porco, ou feijoada. O fascismo não é incompatível com bons modos.

Sabe uma coisa: não quero mais conversar política com Cardosinho. Ele lá e Eu cá! Suspeito que a polarização social no mundo está crescendo e não vejo saídas.

O medo, é que isso termine em guerra.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.
 

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

ITABAIANA, 350 ANOS - SEU FAUSTINO.

Itabaiana, 350 anos! – Seu Faustino
(Por Antonio Samarone)

Faustino Alves Menezes, nasceu durante a seca de 1932, no povoado Saco, na estrada velha de Macambira, de quem sai pelas Queimadas. Filho de seu Francisco e Dona Josefa.

Órfão de pai aos sete anos, Faustino foi criado no Riacho do Bacalhau, atual Riacho Doce, nas Queimadas. Pouco frequentou a escola, só as primeiras letras, com a professora Lenita, irmã do Senador Passos Porto.

Aos 12 anos, ele já trabalhava, aprendendo a arte de sapateiro. Logo cedo, virou mestre. Tentou a vida no Sul (Rio e São Paulo) como sapateiro. Não deu certo, retornou ao ninho.

Até meados do século XX, a vida na província agrícola de Itabaiana acontecia na Zona Rural. No Censo de 1950, Itabaiana possuia apenas três mil e duzentos habitantes, no centro urbano.

Predominavam as “casas de rancho”, onde os proprietários só apareciam para fazer a feira, rezar e acompanhar as trezenas de Santo Antonio.

Itabaiana era uma cidade pobre, como demostra o seu patrimonio arquitetônico. Casarão, só a de Zeca Mesquita. Alguns sobrados de taipa, casas estreitas, baixas e sem platibanda. Se bebia água de cisternas, açudes e cacimbões.

Na Zona Urbana viviam os artesões (sapateiros, alfaiates, padeiros, ourives e marceneiros), pedreiros e carpinteiros, barnabés, pequenos comerciantes, biscateiros, fogueteiros, bodegueiros e os desocupados de todos os gêneros. Mais uma meia dúzia de profissionais liberais (professores, dentistas e rábulas). Médicos fixos, só Osmeil e Pedro Garcia Moreno.

Os caminhoneiros estavam começando.

Faustino entrou para a categoria de sapateiros, onde conheceu os mestres Zé Martins, alagoano, e Paulo Barros, de Laranjeiras, com quem conheceu o marxismo-leninismo e se converteu ao credo vermelho. A classe operária em Itabaiana era formada de sapateiros e alfaiates.

Somavam-se, aos poucos vermelhos, uma vanguarda intelectual: Antonio de Doci, Renato Mazze Lucas (médico), os irmãos Silveira (João e Zé) e Raimundo de Felismino. E muitos simpatizantes. Na lista subversiva: o camponês Zeca Cego, que cantava a Internacional em russo, Nilo Alfaiate, João Océas relojoeiro, João Barraca (padeiro), e outros que esqueci.

Os sapateiros e alfaiates formavam uma vanguarda esclarecida. Gente destacada na cidade. Evidente, a maioria nada tinha a ver com o comunismo. Seu Justino, veio de Paripiranga, Vicentinho e Zé de Gonçalo.

Não era fácil ser comunista numa terra de camponeses. Eles faziam de tudo, para politizar os trabalhadores. Fundaram um Clube dos Trabalhadores, para festas, e criaram o GLEI – Gremio Literário e Esportivo de Itabaiana, para estimular a alfabetização e a leitura.

O Clube do Trabalhador está em boas mãos. Salomão, somou-se com a família de Seu Bonito e dona Dulce, e comandam a quadrilha Balança Mais Não Cai, há mais de 50 anos.

Na antiga sede do GLEI, funciona hoje o Rotary.

O GLEI, já sob o comando de Chico do Cantagalo, construiu uma bela quadra de esportes, ao lado do Tanque do Povo. Hoje é um estabelecimento comercial.

Outra coisa, era um comunismo cristão. Todos batizavam os seus filhos, faziam primeira comunhão, frequentavam as aulas de catecismo e casavam-se na igreja.

Em Itabaiana, os comunistas apoiavam a UDN de Euclides Paes Mendonça, talvez por influência de Robério Garcia.

Faustino jogou futebol no Itabaiana e no Cantagalo, fazendo parte do Itabaiana que ganhou o seu primeiro campeonato: Campeão da Zona Centro, em 1959. O futebol só cresceu em Itabaiana no final da década de 1960, por razões especiais.

Na década de 1960, a política local causou um banho de sangue: os líderes se mataram. A cidade mergulhou num clima sombrio, sem esperança e com baixa autoestima. Economicamente, a cidade crescia.

Dr. Pedro, Pedro Goes, Alemãozinho, Zé Queiroz, Zé de Gentil, Geoba, Mozart, entre outros, decidiram investir no esporte. O futebol mexeu com a cidade, devolveu o orgulho, o bairrismo, a autoestima. Em 1969, brotou o primeiro título.

Quem é de fora não entende: o Itabaiana não é apenas um time. É a cidade de chuteiras. Um elo de união, talvez, a única unanimidade. Independente da paixão politica, da crença religiosa, da faixa de renda, todos vestem a camisa tricolor.

Na letra do hino do Itabaiana, Alberto de Carvalho deixou claro: “Somos Itabaiana/ Cidade, celeiro/ Que vibra no esporte/ Com o seu Tremendão.” Não somos apenas um time, somos uma cidade.

Seu Faustino (92 anos), casado com Dona Jacira e pai de Chico e Romualdo, é um homem decente. Quando o Partido Comunista existia na clandestinidade, os documentos sigilosos eram guardados por ele, em quem todos confiavam.

Faustino foi atleta, dirigente e eterno torcedor da Associação Olímpica de Itabaiana. Ao lado de Fefi, Mozart e Zé Queiroz, entre os vivos, compõem o maior patrimonio do Tricolor da Serra.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

A FÉ CATÓLICA ESTÁ VIVA?

A fé católica está viva?
Por Antonio Samarone.

Ontem, ao chegar em Itabaiana, sentir um forte cheiro de religiosidade. A peregrinação de Santa Dulce, no dia anterior, foi uma apoteose de fé. Como explicar uma multidão (15 mil pessoas) andando 13 km, subindo um pé de serra, para venerar uma Santa, se o esvaziamento da Igreja católica é um fato.

Por que os devotos ainda resistem, andam léguas, sobem serras, fazem promessas e acreditam em milagres? A fé sobreviveu!

Os estudiosos das religiões atribuem o elevado crescimento dos pentecostais no Brasil, ao afastamento da Igreja Católica dos mais pobres.

O Papa João Paulo II eliminou a teologia da libertação da igreja. Em 22 de outubro de 1978, o polonês Karol Józef Wojtyła realizou sua primeira missa como papa João Paulo II, Já pregando o fim da teologia de libertação.

Entretanto, como disse Dom Pedro Casaldáliga: “Deus e os pobres continuam.” O espaço religioso ficou aberto nas periferias, e os evangélicos ocuparam.

No geral, essa análise é procedente.

Mas, essa tese não se aplica em qualquer canto. Em Itabaiana, nunca existiu a teologia de libertação, pelo menos que eu soubesse, nem os evangélicos se expandiram tanto por lá, como em outras terras.

Até 1965, quando as resoluções do Concílio Vaticano II entraram em vigor, Itabaiana tinha a sua vida cultural centrada na Sacristia.

A igreja católica era o centro da vida cultural em Itabaiana. O fim do ritual tridentino, foi um baque, para um povo que acredita em milagres, adora o Padre Cícero e o Frei Damião e, mais recentemente, passaram a adorar a Santa Dulce dos Pobres.

Claro que não foram só as mudanças no catolicismo.

Na década de 1960, Itabaiana transitava de colonia agrícola, para um polo comercial; de rural para urbana, a educação assumia o seu papel, o capitalismo mercantil crescia, o fim dos artesões (sapateiros, alfaiates, ourives, padeiros e marceneiros).

Mudava-se o modo de vida! O enfraquecimento da influência da igreja católica em Itabaiana, foi evidente.

Como disse o Cardeal Casaldáliga, mas a fé não abandonou o povo. Itabaiana viveu 350 anos sob a égide da igreja católica. A sua principal entidade cultural, a Filarmônica Nossa Senhora da Conceição, foi fundada pela igreja.

Em qualquer aflição, o povo recorria a Santo Antonio!

A minha hipótese para a espantosa manifestação de fé na peregrinação de Santa Dulce ontem, em Itabaiana, é a fé represada do povo.

O novo Arcebispo do Aracaju, Josafá Menezes da Silva, um baiano de Salinas da Margarida, teve a sensibilidade para perceber que esse caminho está aberto.

Os devotos querem voltar ao ninho católico. O sonho do Papa Francisco, de uma igreja voltada para os pobres, está em andamento.

A igreja se afastou dos pobres, mas não tirou deles a sua fé. Eles voltaram aos bandos, multidões em busca de Cristo. O caminho de volta, em Itabaiana, é a devoção por Santa Dulce. Dom Josafá já percebeu.

Os devotos querem a igreja católica de volta. O fim da teologia de libertação foi um erro, uma medida ideológica dos tempos da guerra fria.

A alma do homem ainda busca a redenção.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

domingo, 4 de agosto de 2024

O PRIMEIRO HOSPITAL DE CARIDADE, EM ARACAJU.

O primeiro hospital de caridade, em Aracaju.
(Por Antonio Samarone).

Em 24 de maio de 1858, o Presidente da Província de Sergipe decidiu estabelecer na capital, um hospital de caridade, de nome “Hospital Nossa Senhora da Conceição” (o atual “Santa Isabel”).

Em 26 de maio de 1858, foi encomendado ao Major Engenheiro Sebastião José Bazilio Pyrrilio, a confecção da planta e o orçamento da obra.

Em 20 de julho de 1858, o Dr. Francisco Sabino Coelho Sampaio foi nomeado médico do futuro hospital — o hospital só funcionará a partir de 1862.

O Hospital “Nossa Senhora da Conceição” (atual Santa Isabel), começou a funcionar na rua Aurora (atual Rua da Frente), em 16 de fevereiro de 1862, no governo do Presidente Joaquim Jacinto Mendonça.

O hospital era visto como uma instituição que revelava o espírito de caridade dos homens e o seu estado civilizatório.

O Presidente Joaquim Jacinto de Mendonça nomeou para dirigir o hospital “uma comissão composta de sete cidadãos prestantes e zelosos, cuja dedicação e caridade são proverbiais” , assim constituída: Presidente, Dr. Joaquim José de Oliveira; Secretário, Tenente Coronel Manoel Diniz Vilas-Boas; Tesoureiro, Major João Manoel de Souza Pinto, e mais, o Tenente Coronel Antonio Carneiro de Menezes, o Capitão Antonio Rodrigues das Cotias, o Capitão José Pinto da Cruz e o Alferes Antonio José Pereira Guimarães. Foi essa a primeira diretoria do atual Hospital “Santa Isabel”.

Em seu primeiro ano de funcionamento, o Hospital de Caridade Nossa Senhora da Conceição atendeu 442 pacientes, sendo as enfermidades sifilíticas, as afecções do peito e as sezões traumáticas, as moléstias mais frequentes.

O Hospital contava com três enfermarias: São Roque, Santa Isabel e São Sebastião (militar), e possuía em torno de 60 leitos. O médico do Hospital, Dr. Francisco Sabino Coelho Sampaio, que também exercia as funções de cirurgião, cedeu 5 meses dos seus vencimentos para ajudar o funcionamento do hospital.

“Os doentes evitavam-no. Só mesmo os miseráveis e os desgraçados sem teto e à beira do túmulo, procuram-na para, em cima do leito, penetrar na noite insondável da morte.”

O hospital era o lugar de quem não tinha onde cair morto.
Corria o “boato” de que aos doentes, em situação mais grave, era ministrado o chá-da-meia-noite, uma porção venenosa que apressava o fim da vida daquela alma sofredora.

Não existiram grandes alterações nesse quadro, até o início do Período Republicano.

Junto a cada cama existiam sempre uma escarradeira, uma pequena mesa de gaveta para uso e refeições dos doentes, caixas de retrete contendo cubos de louça para suas “precisões”, quando por seu estado de gravidade não puderem se dirigir para a latrina da enfermaria.

No centro da enfermaria existia um lampião, que se conservava aceso todas as noites, das seis da tarde às seis da manhã. A cada quinze dias as enfermarias deveriam ser desinfectadas com uma mistura de licor de Labarraque, preparações cloretadas e água.

Dr. Juliano Simões, num depoimento publicado pelo jornal da Sociedade Médica (julho 1986), descreve a situação do hospital por volta do início do século XX, nos seguintes termos:

“Sabemos, nós médicos mais antigos em Aracaju, que há muito tempo o Dr. Pimentel Franco quando ia passar visita a seus doentes, do serviço de mulheres, ao entrar na enfermaria levava ao seu lado um servente com um fogareiro aceso queimando incenso ou alcatrão, para poder suportar o mau cheiro do ambiente.”

“Eu mesmo alcancei na enfermaria dos homens, o famigerado “pilão sem boca” (não sei por que lhe deram esse nome), local por trás de um tabique de madeira, onde doentes ulcerados ou desenganados, estendidos comumente em esteiras, arrastavam-se pelo chão até o canto, onde retiravam de um pote de barro, com um só caneco, a água para beber.”

No início do século XX, a situação do hospital de caridade de Aracaju (atual Santa Isabel) continuava precária. Já no Governo de Oliveira Valadão (1896), foi tomada a decisão de construir-se um novo prédio para a transferência do citado hospital das acanhadas instalações localizadas na rua Aurora, para a sede atual, no bairro Santo Antonio.

O hospital da rua Aurora possuia aproximadamente 60 leitos.

Quanto ao funcionamento, em agosto de 1895, passaram pelo hospital cerca de 79 pacientes, dos quais 29 receberam alta e 8 faleceram. As causas dos óbitos foram: 2 tuberculose pulmonar, 2 leucemia, 1 gastroenterite, 1 pneumonia, 1 catarro pulmonar e o último de ascite.

“O antigo hospital de caridade achava-se encravado no centro do Aracaju, entre casas, e era demasiadamente pequeno, dispondo apenas de duas salas, uma para homens e outra para mulheres, onde se encontram promiscuamente os enfermos de todas as espécies de moléstias internas e externas.

Afora as referidas salas, que mal recebiam luz por duas de suas faces. Existia um compartimento alongado, destinado à enfermaria de polícia, comunicando diretamente com a latrina do edifício, que é antes uma fossa imunda e pestilenta, a derramar de contínuo por todo o prédio e particularmente na enfermaria mencionada, os pútridos vapores que exala, de um cheiro intolerável e nauseabundo.”

O governador Olympio Campos (1900) transferiu o hospital de caridade para um prédio novo, no Bairro Santo Antonio, onde funciona até hoje. Para instalação do velho hospital na nova casa, foi comprado todo o instrumental cirúrgico na Europa e organizada uma pequena farmácia.

A cirurgia se encontrava em estágio incipiente em Sergipe, como está evidente no quadro de ocorrências do hospital. Entre julho de 1901 e julho de 1902 foram realizadas apenas 16 cirurgias no Hospital Santa Isabel: uma amputação de braço, uma de perna e uma de coxa; três fimoses, duas parafimoses, uma dilatação de uretra, uma paracentese e cinco abcessos.

A assistência hospitalar em Sergipe, até 1926, com a inauguração do Hospital de Cirurgia, era a ante-sala da morte.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A PESTE BRANCA EM SERGIPE.


 A Peste Branca em Sergipe.
(por Antonio Samarone)

Tuberculose – tísica, febre hética, febre lenta, sangue pela boca, fraqueza de peito, peste branca e chaga nos bafos. A tuberculose chegou ao Brasil com o descobrimento. Índios e negros eram duramente afetados. Uma doença comum entre os escravizados.

Aos fracos do peito, era recomendado o repouso, caldo de galinha, leite de burra ou de cabra e muito mocotó. Se acreditava nos efeitos benéficos do clima.

A tuberculose era uma doença de poetas, literatos e boêmios. Dois exemplos são representativos: D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal, faleceu de tuberculose, aos 36 anos. O fabuloso Castro Alves, faleceu aos 24 anos, da mesma enfermidade.

A descoberta da Mycobacterium tuberculosis (bacilo de Koch), em 1882, recebeu o nome do seu descobridor: Robert Koch (1843 – 1910), médico alemão, Nobel de Medicina em 1905.

A primeira vacina contra a tuberculose foi desenvolvida, por Albert Calmette e Jean-Marie Camille Guèrin, em 1906. A vacina BCG (Bacilo de Calmette e Guèrin) foi usada pela primeira vez em humanos em 1921. O tratamento se tornou eficaz a partir da descoberta da estreptomicina, em 1943.

No início do século XX, a tuberculose surge como um problema importante para a saúde pública em Sergipe. Não que ela não existisse anteriormente, é que passou a ser percebida, sua mortalidade registrada e suas vítimas a perambular entre os bem nascidos.

Talvez, o fim da escravidão e o surgimento do trabalho livre urbano tenham contribuído para transformação da tuberculose num problema social. Em 1902, quando a tuberculose ocupava a sexta posição entre as causas de óbitos, o Dr. José Moreira de Magalhães, diretor clínico do hospital Santa Isabel, adverte para o problema:

“Sensível é a ausência de enfermarias onde se possam receber tuberculosos, com a exigência de sua profilaxia. Recusei a princípio a admissão de atacados desta terrível moléstia e, somente tocado de desgosto de negar amparo a quem mais carece, resolvi utilizar um dos pequenos compartimentos do edifício de que podia dispor, para instalação de duas camas para homens, as quais estão sempre ocupadas.”

Dessa primeira “enfermaria”, a assistência aos tuberculosos em Sergipe se arrastou até a inauguração, em 02 de julho de 1917, em grande solenidade, com missa concelebrada pelo Bispo Dom José Thomaz, de um “pavilhão para tuberculosos”, no hospital Santa Isabel, com capacidade para 13 leitos. Os serviços foram entregues à responsabilidade do Dr. José da Silva Melo.

O problema da tuberculose assola Sergipe, no início do século XX. Entre 10 de julho de 1903 e 30 de junho de 1904, ocorrem 360 óbitos em Aracaju, entre os quais 12 casos de peste bubônica, 23 de impaludismo e 27 de tuberculose pulmonar.

O Presidente do Estado, farmacêutico Josino Menezes, assim se manifestou sobre o assunto:

“A tuberculose, mais do que qualquer outro “morbus”, faz vítimas na população sergipana, que precisa aparelhar-se para a defesa sanitária resistente e metódica contra esse grande inimigo de todas as raças."

"É de aterrar a estatística da morte pelo bacilo de Koch. Onde ele se manifesta o luto é certo, prejudicando gerações inteiras; nada poupa, avançando na sua faina de destruição, ora como inimigo sorrateiro, covarde, que ataca de emboscada, ora de chofre, com a valentia dos incombatíveis.”

A preocupação com o problema da tuberculose se manifestou também nos estudos científicos dos médicos sergipanos. O Dr. Francisco Fonseca escolheu como tema de sua tese inaugural para conclusão do curso de medicina, em 1907, “Estudos Clínicos da Hemoptise Tuberculosa”.

A assistência hospitalar aos tuberculosos chegou tarde em Sergipe. O Hospital Sanatório, destinado aos tuberculosos, começou a ser construído em 1939, no Governo de Eronides Carvalho. Entretanto, só começou a funcionar em 1954, no Governo de Arnaldo Rollemberg, com a previsão de 60 leitos.

Com a descoberta do tratamento tríplice (estreptomicina, ácido paraminosalicílico e isoniaziada), final da década de 1940, com o avanço do tratamento ambulatorial da tuberculose, o Hospital Sanatório foi desativado, cedido a UFS, para transformação no atual Hospital Universitário.

A Tuberculose continua ativa. Passa despercebida, por conta da eficácia do tratamento. Os tisiologistas, médicos especializados em tuberculose, se transformaram em infectologista. Desconheço, se algum tisiologista sobrevive em Sergipe.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

GENTE SERGIPANA - JOÃO CÂNDIDO DE FARIA.


 Gente Sergipana – João Cândido de Faria.
(por Antonio Samarone)

João Cândido de Faria, natural da Bahia, formado em medicina em Montpellier, França, em 1829, defendendo a tese sobre a Cholera-Morbus. Exerceu a medicina em Laranjeiras (1830 a 1855).

O local de nascimento de João Cândido é incerto, Luiz Antonio Barreto acreditava ter sido no Sul de Sergipe, antes dos avanços territoriais da Bahia.

João Cândido fixou residência em Laranjeiras em 1830, casando-se com a espanhola Josefa Aragonez, com quem teve quatro filhos: Cândido, Júlio, Adolfo e Henrique (falecido ainda jovem).

Em 1855, irrompeu em Sergipe um surto de Cólera, que mobilizou médicos e recursos terapêuticos. O Dr. João Cândido de Faria foi um dos profissionais da medicina e uma vítima.

"O seu filho mais famoso, o sergipano Cândido Aragonez de Faria, nasceu em Laranjeiras, Sergipe, em 1849 e morreu em Paris, na França, em 1911, aos 62 anos. Uma vida dedicada a arte, como chargista, cartazista, artista plástico completo, como testemunham suas obras, especialmente os mais de trezentos cartazes de filmes produzidos pela Casa Pathé." Luiz Antonio Barreto

"O nome de Cândido Aragonez aparece, com destaque, na História da Caricatura Brasileira, de Harman Lima, mas não há, naquele livro, nenhuma informação sobre o seu nascimento e vida.” – Luiz Antonio Barreto.

Fundação do primeiro hospital em Laranjeiras.

Os Drs. João Cândido de Faria (primeiro diretor) e Francisco Alberto de Bragança (o pai do célebre Antonio Militão de Bragança), fundaram o Hospital Senhor do Bomfim, em Laranjeiras.

Sem nenhum patrimônio e sob um compromisso aprovado pelo Presidente da Província, foi criada em 1836, uma instituição de caridade visando instalar um hospital em Laranjeiras.

Após longos esforços, finalmente, em 29 de junho de 1840, no Governo do Coronel Wenceslau de Oliveira Belo, o “Hospital Senhor do Bonfim” será inaugurado. O hospital foi administrado pela Irmandade do Senhor Bom Jesus do Bonfim.

A questão central para o funcionamento desse hospital era a falta de financiamento. Os legados e subvenções eram quase inexistentes e o que se arrecadava de esmola era muito pouco.

A lei n.º 28, de 11 de março de 1839, no Governo do Presidente Joaquim José Pacheco, concedeu o privilégio de exploração de loterias ao Hospital Senhor do Bonfim, mas àquela altura o instrumento das loterias andava bastante desgastado, e era muito difícil arrecadar-se alguma coisa por esse meio.

Restava ao hospital a contribuição marítima do Porto de Aracaju, em torno de 800$000 réis, que, na prática, era a única efetiva.

Em 1847, O Presidente da Província, José Ferreira Souto, solicitou recursos à Assembleia Provincial para comprar uma nova casa para funcionamento dessa instituição, alegando completa falta de condições da existente:

“A que ora serve não pode por todos os motivos continuar. É pequena, baixa, quente, e a mais insalubre possível. Os doentes estão confundidos, e tudo ali é tão miserável, que só na última necessidade se poderá procurar aquele asilo.”

De fato, as condições de funcionamento do Hospital Senhor do Bonfim, em Laranjeiras, não eram das melhores. O hospital funcionava em uma casa alugada, que possuía apenas 18 palmos de altura e 30 de largura em sua frente, era dividida em três salas e duas enfermarias, onde estavam instaladas cerca de 16 camas, com um mínimo espaço de separação. A mortalidade atingia cerca de 50% dos internados.

Em 1848, foram abrigados neste hospital 27 doentes, dos quais 13 faleceram, 9 receberam alta e 5 permaneceram internados até o ano seguinte.

O Presidente Salvador Correia de Sá e Benevides, em seu relatório de julho de 1856, assim descreve a citada instituição:

‘Existe esse pio estabelecimento em um edifício sumamente acanhado e sem nenhuma das condições exigidas para casas dessa ordem. A caridade particular pouco sustenta os pobres enfermos, e são tão diminutos, tão precários esses recursos, que apenas um limitadíssimo número de camas pode manter essa santa instituição.

Esse hospital deixou de funcionar em 11 de junho de 1859. Os senhores Ângelo Custódio Polliciano, José Joaquim Fernandes Sampaio e Eugênio José de Lima assinam o documento que assinala o fechamento do Hospital, com as seguintes justificativas.

“Pobre, sem patrimônio, reduzido à subvenção marítima da barra, a qual produz 1:200$000, quando as despesas orçam 3:600$000, não podia mesmo o hospital funcionar.”

Antonio Samarone - médico sanitarista.