quarta-feira, 19 de agosto de 2020

MÃOS LIMPAS


Mãos Limpas.
(por Antonio Samarone)
Segundo pesquisas, apenas 11% das pessoas conseguem lavar as mãos oito vezes ao dia como recomenda a OMS. Por que é tão difícil cumprir esse ritual sanitário? Muitos preferem lambuzar as mãos com álcool em gel.
Por que ao invés de uma pia com água e sabão, as empresas são obrigadas a fornecer álcool em gel? Habituar-se em lavar as mãos como rotina traria vantagens permanentes, para se evitar novas doenças.
Essa dificuldade com a higiene pessoal vem de longe.
Segundo Gilberto Freyre:
“O contraste de higiene verdadeiramente felina dos maometanos com a imundice dos cristãos, seus vencedores, é traço que aqui se impõe destacar. Os cristãos peninsulares (Portugal e Espanha) dos séculos VIII e IX eram indivíduos que nunca tomavam banho, nem lavavam a roupa, nem a tiravam do corpo senão podre, largando os pedaços.”
O horror a água, o desleixo pela higiene do corpo e do vestuário permaneceu no Brasil até meados do século XX.
Sem contar que o sabonete foi um luxo até pouco tempo. O povo fabricava o seu sabão em casa. (sebo de boi, hidróxido de sódio - NaOH - soda cáustica, água). O sabão de soda ainda é vendido na feira de Itabaiana. O sabão de coco era uma novidade.
A higiene pessoal se manteve em grande atraso no Brasil, até meados do século XX. Foi o discurso sanitário levado as escolas pelas professoras, que introduziu noções e hábitos de higiene nas crianças.
O medo da vistoria nas escolas, a inspeção das unhas sujas, orelhas e pescoços com os “trios de lodo”, levou às mães a adotarem cuidados higiênicos com os filhos.
As crianças reagiam com choro a alarido a rotina do banho frio matinal. Muitas vezes era um banho de sopapo ou um banho de cuia, onde água descia lentamente pelas costas, gerando arrepios na vítima. Muitos passavam apenas uma água no rosto, para tirar a remela e maquiar a cara de sono.
Foi a escola pública que introduziu a higiene pessoal no Brasil. As crianças ensinaram as mães, para não passassem vergonha na inspeção da higiene escolar. Isso foi ontem!
Sem contar que a maioria dos domicílios não possuía instalações sanitárias. As pessoas defecavam no mato, no pé da bananeira, nas praias, nos fundos de quintais, ao pé dos murros e até nas praças. Lugares que estavam sempre melados de excrementos ainda frescos.
Isto sem falarmos no hábito dos homens de urinarem nas ruas; e de nas ruas se jogar a urina choca das casas, acumuladas durante a noite.
A tecnologia dos “walter closet” WC, inglês e do bidet francês chegaram ao Brasil no final do século XIX. O povo demorou a ter acesso a esses avanços sanitários.
As mãos são ferramentas fabulosas de comunicação. O Brasil inventou uma língua de sinais (Libras). “Dar uma mão” é uma ajuda fraterna. Quando uma coisa é muito boa, dizemos que é de “mão cheia”. A mão serve de medida com o palmo e a polegada. Uma mão de milho são cinquenta espigas.
Na tradição bíblica, “lavar as mãos” não simboliza limpeza, mas indiferença e omissão. “Pilatos lavou as mãos” quanto a condenação de Cristo. Ser alcançado pela mão de Deus é receber a manifestação do seu espírito.
A imposição das mãos é uma transferência de energia e poder, um ritual de cura, própria dos iluminados. As ciganas leem as mãos. As mãos postas é um sinal de humildade e devoção.
A mão fechada é o punho, sinal de luta e resistência.
Os pintores dão uma mão de tinta. No trânsito, a mão é o caminho certo. Estar nas mãos dos outros é entregar-se.
Mão cheia é fartura, mão de figa é somiticaria, mão de ferro é rigor, mão boba é saliência, mão grande é força e mão aberta é desperdício.
O capitalismo chama o trabalhador de mão de obra.
Foi a mão humana, com o seu polegar oponível, que permitiu a produção de ferramentas e a evolução do Homo sapiens. Foi a particularidade da mão que nos fez bípedes e nos tirou da selva.
Contudo, a mão que afaga é a mesma que apedreja, a mão que alimenta e protege é a mesma que transmite as doenças.
Com tantas serventias e simbolismos, por que tanta resistência em lavarmos as mãos?
Na reabertura das escolas, eu proponho uma pia com água e sabão em cada sala de aula, com toalhas limpas ou descartáveis. Uma verdadeira operação mãos limpas.
Antonio Samarone. (médico sanitarista)



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