“Memórias de um Crime”, Jornalismo ou literatura?
(por Antonio Samarone).
O jornalista Ancelmo Gois considera “Memórias de um Crime”, o livro de Luiz Eduardo Costa, uma obra prima da literatura policial.
Eu acho que é um pouco mais. O assassinato de Carlos Firpo é apenas o pano fundo.
Memórias de um Crime é a memória de uma Era da vida sergipana. Comecei a leitura com a curiosidade de saber quem mandou matar o doutor, logo, nas primeiras páginas, percebi que isso era de menor importância.
Todos os suspeitos podem ser os culpados e todas as versões são possíveis. O livro é bem maior do que o enredo de um crime.
O livro é um desenho detalhado da vida sergipana, na segunda metade do século XX. Um retrato sem retoque da mesquinhez provinciana.
O livro trata da violência política e policial, da jagunçada, da pobreza dos trabalhadores e da obscura elite que mandava no estado.
Ou ainda manda?
Aprendi no ginásio em Itabaiana, com o professor José Costa, que a boa literatura é uma forma de se contar a história de uma civilização. O que sei da história de Portugal do século XIX, aprendi nos livros de Eça de Queiroz.
A polêmica se o livro de Luiz Eduardo Costa é jornalismo ou literatura é bizantina, puro pedantismo acadêmico. É literatura refinada, ouro em pó, uma joia de sensibilidade artística.
Apreciem essas passagens:
“A mulher (Milena, a esposa) vestia um robe escuro sobre a alva camisola de dormir. Cabelos soltos, quase desgrenhados, agitava-se em movimentos desconexos e balbuciava palavras ininteligíveis.”
Em outro trecho:
“Dr. Firpo, que tinha estatura avantajada, estava estendido de costa sobre a larga cama de casal, e protegia com as mãos o ventre volumoso, de onde o sangue jorrava e empapava os lençóis brancos, formando uma mancha escarlate. Arquejava agoniado, tentava falar, o sangue gorgolejava na sua boca.”
Luiz Eduardo Costa é o melhor texto do jornalismo sergipano, entre os vivos. Um intelectual orgânico (no conceito de Gramsci) do povo sertanejo.
Sergipe foi berço de grandes jornalistas: Joel Silveira, Luiz Antonio Barreto, Orlando Dantas, Ancelmo Gois, Fernando Sávio, Ivan Valença, Célio Nunes e Luiz Eduardo Costa foram os mais notáveis.
Pela pressa, posso estar esquecendo um ou outro.
O livro de Luiz Eduardo Costa é impiedoso com Aracaju:
“Em abril de 1958, quando aconteceu o crime da Rua de Campos, Aracaju era acanhada, bisonha e desenxabida, capital de um estado extremamente pobre...”
“Aracaju terminava ao sul, pelos fundos da Igreja São José, na Praça Tobias Barreto, que era um descampado, depois, começavam os extensos manguezais... Pelo lado oeste da cidade, pouco além do Hospital de Cirurgia, um morro de areia branca demarcava o limite de Aracaju de 1958.”
“Á noite, por volta das nove horas, depois eu tocava a corneta do Quartel de Polícia, Aracaju mergulhava num profundo silencio, e podia-se ouvir o silvar característicos dos bandos de paturis que passavam voando, buscando os alagados em torno da cidade.”
Luiz Eduardo não põe panos quentes, descreve os personagens da vida pública sergipana com dureza e precisão. Contribui para estremecer a hipocrisia de boa parte dos cronistas e historiadores.
Memorias de um Crime é um livro precioso, um raio X implacável da vida provinciana em Sergipe. E ainda conta os detalhes do assassinato de Carlos Firpo.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
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