Minha Infância (3)
O futebol entrou em minha vida como uma
brincadeira. Nada de “escolinhas”, preparando um futuro profissional. O nosso
desejo supremo era bater bola, brincar de bola, jogar pelada, e para isso
qualquer lugar servia. A começar pelo leito da rua. Duas pedras como trave, três
de cada lado e uma bola. Cada jogo era uma final de Copa do Mundo. No final,
com vitória ou derrota, sobravam os dedos desmentidos, estropiados, os joelhos
ralados, a constante peleja pelo gol e a vibração incontida.
A grande dificuldade da brincadeira era a
bola. Ninguém que eu conhecia tinha uma bola. Nossas peladas eram de bola de
meia. Explico: se pegava uma meia velha, enchia-se de pano, dava-se uma arredondada
e a pelota estava pronta. Depois apareceu a bola de borracha, um inferno,
pulava muito. Finalmente, veio a bola Pelé. Para nossa sorte, Rosa de Rosalvo
do Cabo Quirino, criou coragem, foi no armazém e roubou uma bola Pelé. Até hoje
não sei como ele saiu sem ser visto. Foi uma festa no Beco Novo, tínhamos uma
bola. Muito tempo depois, Beijo de Seu Bebé ganhou do irmão que morava em São Paulo
uma couraça número cinco, quase profissional. Foi a primeira e a única bola de
couro de minha rua.
Tudo era difícil. A bola oficial daquele
tempo era uma verdadeira bucha, de couro mal curtido (sola), costurada à mão
pelo velho Mestre Dé, que se batesse de jeito, era nocaute inevitável.
Chamava-se “bola de boca”. Comprava-se a câmara de ar, que possuía uma válvula
comprida conhecida como pito. Ao se encher a bola precisava-se acomodar o pito
para dentro, e só depois é que se fechava o último nó. Exatamente na “boca” da
bola.
É claro que já existiam as bolas
industrializadas, mais parecidas com as atuais, que eram conhecidas como bolas
argentinas. Raras e de preço incompatível com o poder aquisitivo daquela época.
Mas voltemos as “bolas de boca”. E quando chovia? Aí, meu amigo, o couro
encharcava e a quase redondinha ficava oval e pesava mais de quilo. Era costume
antes das partidas passar-se sebo nas bolas, para reduzir os inconvenientes do
couro ressecado, e ajudar na conservação de tão raro objeto. Somente quem
conheceu as antigas bolas de boca, as chuteiras de Joãozinho Baú e os antigos “gramados”
- na verdade malicia, barro e piçarra - será capaz de entender o antigo ditado:
“futebol é coisa prá homem”.
As primeiras incorporações tecnológicas do
futebol itabaianense foram o suporte, a atadura e o linimento. O primeiro era
uma proteção de borracha que se usava sob o calção, com o suposto objetivo de
proteger as “partes fracas” do atleta; o segundo era utilizado para enfaixarem-se
os pés dos atletas; e o terceiro era uma espécie de óleo canforado que aplicava
nas pernas dos jogadores, de preferência durante um massageamento, que tornavam
os membros inferiores brilhosos e escorregadios. Suponho que além de facilitar
a massagem, permitia colocar em evidencia a musculatura dos atletas.
O atual Bairro São Cristóvão, denominado na
época de “Cruzeiro”, “Avenida”, “Sete Casa”, era o grande celeiro do futebol
itabaianense. Do time de Seu Mané Barraca saíram muitos craques. Seu Manuel,
como gostava de ser chamado, era um velho rezador, doutor em mandingas, que
quebrava pedras para sobreviver e gostava de futebol. Seu Manuel tinha um time
de meninos. Em frente à sua casa existia um bom campo de pelada, que a molecada
do Beco Novo usava com frequência. Era difícil derrotar o time de seu Manuel em
seus domínios, principalmente com ele apitando. O clássico das manhãs de
domingo, era a time de “Bem”, (onde eu jogava), versus o time de seu Manuel.
Uma disputa à altura de um fla-flu, com Maracanã lotado.
Seu Manuel era de família tradicional em
Itabaiana, “os Barracas”, seu Euclides, guarda-noturno e fiscal do cinema de
Zeca Mesquita; seu João, sapateiro, simpatizante do comunismo, pai dos craques
Cosme e Damião, que não foram mais longe no futebol porque eram muitos franzinos,
os dois juntos não pesavam mais de 30 quilos. O Cosme, mais magrinho, era um
virtuoso com a bola nos pés. Gente
respeitada.
Eu já nasci querendo ser um centro avante (center
forward), e em parte conseguir. Fui titular do São Paulo de Roberto de Orece,
do Bahia de Melcíades, do Santos de Avaci e do Cantagalo de Chico. Na década de
1960, o Dr. Pedro Garcia Moreno aceitou tomar conta do Itabaiana. Foi uma
revolução, resolveu criar um juvenil, e entregou o comando a um disciplinador,
Miguel de Rola. Com ele aprendi a chegar na hora nos compromissos. Os meninos
foram chamados para fazer um teste, sábado pela tarde, no velho Etelvino
Mendonça. Era a minha chance. Como já trabalhava fichado aos 14 anos, os
treinos aos sábados seria um problema, mas dava-se um jeito. A primeira
dificuldade foi escolher a chuteira. Dr. Pedro encomendou 30 pares a Joãozinho
Baú, como éramos meninos, a maior era 42. Ninguém poderia adivinhar que aos 14
anos eu já calçasse 44. E agora, a minha primeira chuteira era bem menor que o
meu pé. Acostumado a jogar descalço, a
chuteira fazendo calo, os pés queimando, e sem poder perder a chance. Minha
carreira futebolística não poderia ter ido longe.
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