Minha infância (I).
Acho que me assuntei como
gente aos sete anos. Nunca soube os motivos, mas mamãe fez uma promessa para me
batizar nesse dia. Caiu numa segunda-feira, igreja esvaziada, mas a promessa
foi cumprida. As sete da manhã, o primogênito de Dona Lourdes e Seu Elpídio
estava pronto, na primeira fila de bancos da matriz de Santo Antônio e Almas de
Itabaiana, para ser batizado. Foi a primeira vez que vesti uma calça comprida e
calcei sapatos. Fui empurrado para dentro da Igreja. Depois fui tirar retrato
nos estúdios de Joãozinho Retratista, nos fundos de uma relojoaria. As
cerimonias da igreja ainda eram em latim, o padre celebrava de costa para os
fiéis e os santos faziam milagres. A cheirosa fumaça dos turíbulos é a minha
melhor lembrança.
Itabaiana transpirava a contra-reforma
e as resoluções do Concílio de Trento (1554 – 1563) eram fielmente observadas. A
vida econômica tinha base rural. Na cidade só pequenos artesões (sapateiros, marceneiros
e alfaiates), donos de bodegas, funcionários públicos e desocupados. Metade dos
imóveis da cidade era “casa de rancho”. Tudo girava em torno da igreja católica:
festas, procissões, batizados e casamentos. No natal a missa do galo era cheia.
No sábado de aleluia, rasgar as coberturas roxas dos santos era um
acontecimento esperado com ansiedade. A missa de aleluia transcorria com as
luzes apagadas, e me disseram que se o padre não encontrasse uma certa passagem
no missal, era o prenuncio do fim do mundo. Nunca entendi os motivos para se
procurar essa passagem no escuro, nem porque sendo tão importante, não procuravam
antes e já deixavam marcado.
As modernices do Concilio
Vaticano II (dezembro de 1965) só apareceram quando eu já tinha onze anos. E
não pensem que chegou em Itabaiana no outro dia. Essa estória de que Deus é
amor e perdoa todo mundo demorou a entrar na cabeça do povo. As Santas Missões
apontavam a eminência do fogo eterno, e os nossos frades pregavam a paz para os
justos, a misericórdia para os aflitos e o fogo eterno para os ímpios. O
castigo para os maus seria severo. Era esse medo que continha o rebanho.
A igreja católica era
soberana. Os crentes limitavam-se aos membros da igreja de Dona Eulina Nunes,
poucos, mas descentes e respeitados. As religiões africanas estavam a cargo de
dois ou três macumbeiros amadores de final de semana. Os terreiros de João de
Filipinho, Cidália e Hosana, onde se batia o tambor e bebia-se cachaça. Eu
achava tudo meio misterioso. Lá em casa meu pai se pelava de medo de mãe
Bilina, yalorichá do Terreiro Santa Bárbara Virgem, em Laranjeiras, onde ele
vendia rede de dormir na feira. Andava com os bolsos cheios de pregos, para
evitar coisas feitas.
Fui guiado pelo Concilio
de Trento, pelas aulas de catecismo de minha mãe, filha de Maria. Aprendi a ler
com os livros de cordéis de meu avô Totonho de Bernadinho. Já cheguei na escola
taludo, e não compreendi a sua serventia. Da escola só prestava a merenda (um achocolatado
quente com bolacha) e o recreio. Ler eu já sabia. Se naquele tempo já tivessem
inventado o “bullying” eu tinha me lascado. Fui aluno gratuito na escola do
Padre, fizeram essa concessão aos filhos dos sócios do “Círculo Operário”, uma
organização da igreja para combater o comunismo. A discriminação era total, até
carregar água para molhar uma quadra de areia eu carreguei. O Padre Everaldo
(bode cheiroso), não perdia a oportunidade de passar em minha cara que eu não
pagava. Pensam que tive um trauma psicológico? Porra nenhuma, passei para a
ofensiva e quando tinha oportunidade mandava todos eles tomar no (...). A vida
não seria um passeio, e fiquei sabendo muito cedo. Aprendi a entrar em bolas
divididas.
Eu só tinha medo dos castigos
de Deus. Rezei muito nos últimos dias do longo padecimento do Papa João XXIII,
morto em junho de 1963, com um câncer de estômago. Eu tinha nove anos, mas
acompanhei como adulto. Os sinos da Matriz de Santo Antônio tocavam sem parar
uma sinfonia fúnebre. Eu morava no Beco Novo, no fundo da igreja, e achava que
os sinos estavam dentro de minha casa.
Logo cedo minha mãe
decidiu que eu deveria ser padre. Ter um filho padre era um sonho das
camponesas pobres de minha aldeia. Eu não resistia à ideia por oportunismo, achava
que seria o único jeito de estudar. Depois abandonaria o sacerdócio, como
tantos. A obstinação de minha mãe levou-a a procurar um seminário para me
internar, e escolheu o da cidade de Carpina, Pernambuco. Tudo certo, na semana
do embarque chegou a lista das coisas que eu precisaria levar, o enxoval. Entre
as esquisitices constava 25 guardanapos. Aí minha mãe entrou em pânico: que
diabo é guardanapo? Nem ela, nem ninguém lá em casa fazia a menor ideia do que
fosse guardanapo. Mamãe apelou para os vizinhos, nada, ninguém no Beco Novo
sabia. Foi o fim de minha carreira eclesiástica. Para não passar vergonha
quando eu chegasse no seminário sem os tais guardanapos, ela resolveu não me
mandar. Escapei por pouco...
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