quarta-feira, 12 de agosto de 2015

MEDICINA COMERCIAL (Do Bastão de Esculápio ao Caduceu de Mercúrio)







Medicina Comercial. 

Antonio Samarone de Santana
Academia Sergipana de Medicina

Para onde está voltada a medicina, a que interesses obedece, a quem serve prioritariamente? Uma resposta romântica, e que agradaria ao senso comum e a autoimagem da corporação, é que a medicina está voltada e atende aos interesses dos pacientes, visando aliviar a sua dor e o seu sofrimento. A medicina artesanal da primeira metade do século XX era a face institucional dessa pretensão. Contudo, a realidade é outra, um pouco mais complexa. Foucault enxergou uma medicina de Estado na Alemanha prussiana; identificou uma medicina voltada para o espaço urbano, na França do Dezenove, e uma outra medicina, focada na força de trabalho, na Inglaterra da revolução industrial. O padre austríaco Ivan Ilich, chamou a atenção do mundo, identificando uma face iatrogênica na medicina oficial, em seu famoso livro “Nemesis da Medicina”.
A partir do final do século XX, a medicina incorporou-se ao mercado, tornando-se uma atividade de peso na acumulação capitalista, representando 10,2% do PIB brasileiro. O cuidado médico assumiu a forma de mercadoria, sob o disfarce de procedimento. O trabalho médico sofreu intensa taylorização, fragmentando-se, e a medicina subordinou-se majoritariamente a lógica do lucro, numa medicina comercial. Quais são as mudanças implantadas pela medicina comercial, e quais as possíveis formas de resistência e superação é a discussão que me interessa.
Não foi pacífico a assunção ao mercado dos serviços de saúde, a venda da força de trabalho via o assalariamento nunca foi bem vista pelos médicos; eles desejavam continuar vendendo os produtos do trabalho diretamente aos pacientes, como na fase liberal. Esse produto era o cuidado médico, muito pessoal, subjetivo, impossível de ser contabilizado numa economia de mercado. Os novos compradores precisaram de um produto padronizado, mensurável, impessoal como qualquer mercadoria, e os cuidados médicos tinham subjetividades em excesso. Médicos e mercado entraram num acordo e o cuidado foi fragmentado em 4.600 procedimentos e, à imagem e semelhança do trabalho fabril, criou-se uma linha de desmontagem do corpo humano, descoordenada, e comandado pela avidez do lucro, normal em qualquer processo de acumulação.
Os empregos dos médicos no Brasil concentrados nos serviços públicos, mas em harmonia com o sistema mercantil da compra de procedimentos. É frequente, mesmo nas instalações dos serviços públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS) compre procedimentos, realizando uma remuneração mista, vencimentos mais pagamentos pelos procedimentos realizados. As combinações são inúmeras, raramente se constituindo a remuneração por salários, na renda exclusiva da força de trabalho.
A tendência é o capital ir retirando o comando dos serviços de saúde dos médicos, reduzindo a sua autonomia frente aos consumidores (“pacientes”), e padronizando a sua conduta através dos protocolos. Da mesma forma que os arquitetos e os engenheiros não possuem o poder de condução na indústria da construção civil; os médicos caminham velozmente para essa perda de poder no complexo financeiro industrial dos serviços de saúde.
Com o fim da ditadura militar no Brasil e as profundas mudanças no capitalismo mundial no início da década de 1980; viveu-se no Brasil uma grande incerteza no campo da saúde; politicamente, a conjuntura favoreceu a vitória parcial de uma reforma sanitária numa linha das políticas sociais à moda da social democracia europeia e um pouco dos sistemas estatais de saúde dos países socialista, surgindo o Sistema Único de Saúde (SUS). Um serviço público, universal e gratuito; em direção contrária ao novo capitalismo em ascensão, conhecido popularmente como neoliberalismo, que pregava o estado mínimo, e políticas sociais compensatórias; destinadas exclusivamente aos excluídos do mercado.
O surgimento do SUS, foi um impulso majoritariamente ideológico, conduzido por uma elite pensante do movimento sanitário, quase todos de esquerda, mas que saiu rapidamente dos trilhos sonhados na 8ª Conferência. No momento, a política pública de saúde no Brasil, caminha para a consolidação da alternativa neoliberal de “política compensatória”, sendo o “mais médico” o seu carro chefe.
A medicina comercial apresenta-se como um benefício para os consumidores, pela eficácia dos seus procedimentos, pela prontidão da oferta, pela possibilidade da livre escolha, tornando-se uma segurança para uma clientela crescentemente envelhecida, portanto, consumidora compulsória das referidas mercadorias. Numa realidade hedonista, onde a felicidade foi erigida a condição de direito, alcançado pelo consumo; a saúde e a juventude uma obrigação e o sofrimento tornou-se quase um desleixo ou exceção. O caminho para a saúde passou a ser o consumo de serviços e procedimentos de saúde. Saímos de uma determinação mágico religiosa da saúde para a de consumo de procedimentos médicos. A saúde, cidadania e qualidade de vida estão fora da lógica do lucro da medicina comercial. Esta foi a maior derrota da reforma sanitária brasileira.

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