Antonio Samarone
A arte de curar no
Brasil é bem anterior à chegada dos médicos coimbrenses. Até a primeira metade
do século XX, o atendimento a população era feito por curandeiros, práticos,
rezadores, barbeiros, sangradores, quase todos negros, índios e mestiços.
Médicos diplomados, brancos, só uma meia dúzia de Cristão Novos dispersos nesse
vastíssimo território. Os primeiros Jesuítas trataram de aprender noções de
medicina, para remediar o que fosse possível. O povo sempre morreu à mingua.
O que fazer com os
doentes, que sempre foram muitos? Uma maioria buscava o socorro nos guias
médicos do doutor Chernoviz, Pedro Luiz Napoleão, doutor em medicina, Cavaleiro
da Ordem de Cristo e Oficial da Ordem da Rosa do Brasil. Eram guias práticos,
que ensinava como proceder quando a necessidade aparecesse. As enfermidades, os
remédios, os socorros estavam tudo ali descrito em seus detalhes.
Criar duas Faculdades de Medicina, uma no Rio de Janeiro e outra em Salvador, foi uma das providências tomada pela Família Real em sua chegada ao Brasil (1808). Pelos menos formar médicos para o atendimento a nobres e fidalgos recém-chegados, e a uma pequena elite tupiniquim. O povo continuou sem ter onde cair morto. O socorro, quando havia, ficava restrito as Santas Casas, a filantropia e a misericórdia de religiosos.
Só a partir de 1930, com a criação da Previdência Social (os IAPs), os trabalhadores urbanos, com carteira assinada, passaram a ter uma assistência médica regular, sem necessidade de recorrer à caridade pública. A grande maioria do povo continuou de fora. Com a ditadura (1964), a Previdência ampliou a cobertura (INAMPS e FUNRURAL), mesmo assim, a cobertura dos serviços atingia apenas 40% da população. Foi a era da medicina liberal.
Com a Constituição Federal de 1988, a utopia gravou no papel que a saúde passaria a ser um direito de todos e um dever do Estado, e mais, sob o controle social. Fizemos conferências, seminários, debates, elaboramos programas inovadores, aprovamos leis avançadas, e criamos o Sistema Único de Saúde (SUS). Fizemos uma reforma sanitária, e o que ocorreu? No lugar da consolidação de uma medicina Pública, universal e equânime, ocorreu à invasão da medicina privada, financiada pelos planos de saúde, um sucateamento do SUS, e ampliação da desigualdade de acesso. Uma medicina comandada pelo Capital financeiro, através dos planos e seguros de saúde. O povo continuou penando.
A situação na verdade se agravou. Desmontou-se o sistema filantrópico, que bem ou mal prestava algum socorro, e o acesso a nova medicina científica, organizada pela lógica do mercado, montada para atender ocorrências agudas e pelo esquartejamento do cuidado médico, transformado em procedimentos, ficou quase impossível para o povo. Uma simples redução de fratura, uma pessoa com um braço quebrado, passou a esperar 90 dias para ser atendido. A qualidade do atendimento a um paciente com câncer, por exemplo, atendido nos hospitais privados dos grandes centros, e os pacientes com câncer do SUS, passaram a ter uma desigualdade humilhante.
As ruas falaram, as cobranças se acentuaram, a desaprovação dos serviços de saúde chegou a limites, era urgente, o que fazer, eleições à vista? O Governo do PT, que mais combateu o neoliberalismo (lembram-se desse carma?), resolveu optar por uma política compensatória, e oferecer ao povo uma medicina simplificada, com 30 anos de atraso, a margem do sistema médico dominante. Exatamente isso é o que significa a opção pelos médicos cubanos.
Se for bom, ruim, se é isso mesmo, se o pior é não ter assistência nenhuma, tornou-se uma discussão interminável e ideologizada. O erro do movimento médico foi ser contra a essa medicina, sem apontar uma saída viável. Defender como saída alocação de mais recursos, para alimentar uma medicina mercantil, focada em produzir e vender procedimentos, numa imitação do modelo médico americano, é claro que não resolverá a crise da medicina pública.
Na verdade, o Governo optou pela volta da "medicina de pés descalços" (lato senso), só que exercida por profissionais diplomados e estatais. Possivelmente teremos uma assistência mais humanizada, um maior acolhimento, mas o acesso a condutas e procedimentos mais modernos, tecnologias mais avançadas, continuará sendo sonegada ao povo. Os nossos curandeiros tradicionais também eram holísticos, e com a vantagem, eram filhos do próprio povo, conhecia seus sofrimentos por experiência própria. O Governo poderia mandar distribuir com as populações desassistidas, não mais o Chernoviz, mas um manual da década de 1960, “onde não há médicos”, de David Werner. A verdade é que o povo continuará morrendo por falta de uma assistência adequada.
Os meus colegas cubanos acreditam que vieram em missão de solidariedade, não discordo, mas é preciso esclarecer, solidariedade a quem? Talvez ao Governo brasileiro, que se perdeu na guerra de interesses, privilegiando a medicina privada, inclusive dentro do próprio SUS, que consome 60% da receita comprando serviços a terceiros. Mas solidariedade ao povo desassistido, creio que não. Que a medicina se humanize e finalmente chegue a todos no Brasil, continua sendo uma aspiração, entretanto, sem abrir mão dos recursos modernos da medicina, que hoje são ofertados somente aos ricos.
Infelizmente tenho que discordar. Os médicos não solicitaram "recursos para alimentar a medicina mercantil", essa era a realidade do INAMPS e que inclusive gerou nosso rombo previdenciário.
ResponderExcluirOs médicos hoje são trabalhadores como qualquer outro, a diferença é que podemos optar entre o mercado liberal na categoria de autônomos ou trabalhar no sus. O mercado liberal está sendo destruido pelos planos de saúde, estes sim representam a mercantilização e sugam a população e o próprio médico (afinal são autônomos na condição de funcionários do plano). Quem deveria regular esses planos? ANS. Realidade: Os planos regulam a ANS.
Trabalhar no SUS raramente representa ser funcionário público. Quando isto ocorre a remuneração está longe de ser adequada, uma rápida pesquisa no google evidencia isso, contrariando o que está disposto na constituição federal que garante que a remuneração será fixada de acordo com "I- a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira".
A realidade na maioria dos municípios é que trabalhar no SUS significa contrato verbal, sem garantias ou direitos. Sem CLT, regime jurídico ou qualquer coisa. Apenas as responsabilidades inerentes a profissão, que não são poucas. Sem contar a ausência de outras aparelhagens que garantam os direitos básicos de um cidadão (leia-se estrutura para sua familia): Infraestrutura de lazer, escola de qualidade, segurança pública. O que estimulará a interiorização deste profissional?
Os médicos defendem o SUS. A alocação de recursos que solicitamos não é para o profissional médico, mas para o SUS, que garanta assim infra-estrutura e recursos humanos de qualidade para fornecer, aí sim, saúde para o povo. Isso passa pela elaboração de plano de cargos e carreiras (para todos os profissionais da saúde).
Se o SUS compra serviços de terceiros fica clara uma predileção da compra de serviços ao investimento no SUS. Vide a EC29, aprovada sem a obrigação de investimento mínimo do governo federal. Lembrando que 70% dos municipios brasileiros tem menos de 20mil habitantes e não possuem recursos para arcar com a saúde e dependeriam dos investimentos do governo federal (por isso está ocorrendo a substituição dos profissionais previamente contratados por aqueles do MAIS Médicos). Vide também a dificuldade que existe em fiscalizar a gestão de orgãos públicos.
Garantir o funcionamento do SUS é o anseio dos médicos, visto que é nosso principal empregador.
Por fim, defina o que é "atendimento Humanizado"?
Na minha opinião, os médicos são a versão moderna do caixeiro viajante de kafka..
Visto.
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