terça-feira, 17 de setembro de 2013

Médicos Cubanos

Antonio Samarone


A arte de curar no Brasil é bem anterior à chegada dos médicos coimbrenses. Até a primeira metade do século XX, o atendimento a população era feito por curandeiros, práticos, rezadores, barbeiros, sangradores, quase todos negros, índios e mestiços. Médicos diplomados, brancos, só uma meia dúzia de Cristão Novos dispersos nesse vastíssimo território. Os primeiros Jesuítas trataram de aprender noções de medicina, para remediar o que fosse possível. O povo sempre morreu à mingua.

O que fazer com os doentes, que sempre foram muitos? Uma maioria buscava o socorro nos guias médicos do doutor Chernoviz, Pedro Luiz Napoleão, doutor em medicina, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Oficial da Ordem da Rosa do Brasil. Eram guias práticos, que ensinava como proceder quando a necessidade aparecesse. As enfermidades, os remédios, os socorros estavam tudo ali descrito em seus detalhes.

Criar duas Faculdades de Medicina, uma no Rio de Janeiro e outra em Salvador, foi uma das providências tomada pela Família Real em sua chegada ao Brasil (1808). Pelos menos formar médicos para o atendimento a nobres e fidalgos recém-chegados, e a uma pequena elite tupiniquim. O povo continuou sem ter onde cair morto. O socorro, quando havia, ficava restrito as Santas Casas, a filantropia e a misericórdia de religiosos.

Só a partir de 1930, com a criação da Previdência Social (os IAPs), os trabalhadores urbanos, com carteira assinada, passaram a ter uma assistência médica regular, sem necessidade de recorrer à caridade pública. A grande maioria do povo continuou de fora. Com a ditadura (1964), a Previdência ampliou a cobertura (INAMPS e FUNRURAL), mesmo assim, a cobertura dos serviços atingia apenas 40% da população. Foi a era da medicina liberal.

Com a Constituição Federal de 1988, a utopia gravou no papel que a saúde passaria a ser um direito de todos e um dever do Estado, e mais, sob o controle social. Fizemos conferências, seminários, debates, elaboramos programas inovadores, aprovamos leis avançadas, e criamos o Sistema Único de Saúde (SUS). Fizemos uma reforma sanitária, e o que ocorreu? No lugar da consolidação de uma medicina Pública, universal e equânime, ocorreu à invasão da medicina privada, financiada pelos planos de saúde, um sucateamento do SUS, e ampliação da desigualdade de acesso. Uma medicina comandada pelo Capital financeiro, através dos planos e seguros de saúde. O povo continuou penando.

A situação na verdade se agravou. Desmontou-se o sistema filantrópico, que bem ou mal prestava algum socorro, e o acesso a nova medicina científica, organizada pela lógica do mercado, montada para atender ocorrências agudas e pelo esquartejamento do cuidado médico, transformado em procedimentos, ficou quase impossível para o povo. Uma simples redução de fratura, uma pessoa com um braço quebrado, passou a esperar 90 dias para ser atendido. A qualidade do atendimento a um paciente com câncer, por exemplo, atendido nos hospitais privados dos grandes centros, e os pacientes com câncer do SUS, passaram a ter uma desigualdade humilhante.

As ruas falaram, as cobranças se acentuaram, a desaprovação dos serviços de saúde chegou a limites, era urgente, o que fazer, eleições à vista? O Governo do PT, que mais combateu o neoliberalismo (lembram-se desse carma?), resolveu optar por uma política compensatória, e oferecer ao povo uma medicina simplificada, com 30 anos de atraso, a margem do sistema médico dominante. Exatamente isso é o que significa a opção pelos médicos cubanos.

Se for bom, ruim, se é isso mesmo, se o pior é não ter assistência nenhuma, tornou-se uma discussão interminável e ideologizada. O erro do movimento médico foi ser contra a essa medicina, sem apontar uma saída viável. Defender como saída alocação de mais recursos, para alimentar uma medicina mercantil, focada em produzir e vender procedimentos, numa imitação do modelo médico americano, é claro que não resolverá a crise da medicina pública.

Na verdade, o Governo optou pela volta da "medicina de pés descalços" (lato senso), só que exercida por profissionais diplomados e estatais. Possivelmente teremos uma assistência mais humanizada, um maior acolhimento, mas o acesso a condutas e procedimentos mais modernos, tecnologias mais avançadas, continuará sendo sonegada ao povo. Os nossos curandeiros tradicionais também eram holísticos, e com a vantagem, eram filhos do próprio povo, conhecia seus sofrimentos por experiência própria. O Governo poderia mandar distribuir com as populações desassistidas, não mais o Chernoviz,  mas um manual da década de 1960, “onde não há médicos”, de David Werner. A verdade é que o povo continuará morrendo por falta de uma assistência adequada.

Os meus colegas cubanos acreditam que vieram em missão de solidariedade, não discordo, mas é preciso esclarecer, solidariedade a quem? Talvez ao Governo brasileiro, que se perdeu na guerra de interesses, privilegiando a medicina privada, inclusive dentro do próprio SUS, que consome 60% da receita comprando serviços a terceiros.  Mas solidariedade ao povo desassistido, creio que não. Que a medicina se humanize e finalmente chegue a todos no Brasil, continua sendo uma aspiração, entretanto, sem abrir mão dos recursos modernos da medicina, que hoje são ofertados somente aos ricos.

2 comentários:

  1. Infelizmente tenho que discordar. Os médicos não solicitaram "recursos para alimentar a medicina mercantil", essa era a realidade do INAMPS e que inclusive gerou nosso rombo previdenciário.

    Os médicos hoje são trabalhadores como qualquer outro, a diferença é que podemos optar entre o mercado liberal na categoria de autônomos ou trabalhar no sus. O mercado liberal está sendo destruido pelos planos de saúde, estes sim representam a mercantilização e sugam a população e o próprio médico (afinal são autônomos na condição de funcionários do plano). Quem deveria regular esses planos? ANS. Realidade: Os planos regulam a ANS.

    Trabalhar no SUS raramente representa ser funcionário público. Quando isto ocorre a remuneração está longe de ser adequada, uma rápida pesquisa no google evidencia isso, contrariando o que está disposto na constituição federal que garante que a remuneração será fixada de acordo com "I- a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira".

    A realidade na maioria dos municípios é que trabalhar no SUS significa contrato verbal, sem garantias ou direitos. Sem CLT, regime jurídico ou qualquer coisa. Apenas as responsabilidades inerentes a profissão, que não são poucas. Sem contar a ausência de outras aparelhagens que garantam os direitos básicos de um cidadão (leia-se estrutura para sua familia): Infraestrutura de lazer, escola de qualidade, segurança pública. O que estimulará a interiorização deste profissional?

    Os médicos defendem o SUS. A alocação de recursos que solicitamos não é para o profissional médico, mas para o SUS, que garanta assim infra-estrutura e recursos humanos de qualidade para fornecer, aí sim, saúde para o povo. Isso passa pela elaboração de plano de cargos e carreiras (para todos os profissionais da saúde).

    Se o SUS compra serviços de terceiros fica clara uma predileção da compra de serviços ao investimento no SUS. Vide a EC29, aprovada sem a obrigação de investimento mínimo do governo federal. Lembrando que 70% dos municipios brasileiros tem menos de 20mil habitantes e não possuem recursos para arcar com a saúde e dependeriam dos investimentos do governo federal (por isso está ocorrendo a substituição dos profissionais previamente contratados por aqueles do MAIS Médicos). Vide também a dificuldade que existe em fiscalizar a gestão de orgãos públicos.

    Garantir o funcionamento do SUS é o anseio dos médicos, visto que é nosso principal empregador.

    Por fim, defina o que é "atendimento Humanizado"?

    Na minha opinião, os médicos são a versão moderna do caixeiro viajante de kafka..

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