sábado, 15 de julho de 2023

A PESSOA É PARA O QUE NASCE

 A Pessoa é para o nasce?
(por Antonio Samarone)

Encontrei Cirineu fazendo exames, em uma Clínica famosa do Aracaju. Lembra-se de mim, perguntou ele. Eu não o reconheci de primeira, mas como todo mundo, disse-lhe que lembrava. Ele percebeu a minha dúvida, e facilitou: Eu sou Cirineu.

Claro, Cirineu, um rico empresário, que ocupou o poder político em Sergipe por muito tempo. Nunca fui seu amigo, mas o conhecia. Todos o conhecem em Sergipe?

As pessoas no centro do poder político, incorporam o personagem (a autoridade que representam) com tanta paixão, que podem esquecer quem são. Se essa condição se alonga, ao final, tornam-se seres desossados, deslocados do cotidiano. Cirineu me pareceu um fantasma!

Cirineu está entrando nos 80 anos e o poder começa a abandoná-lo. Perdeu os amigos e, dizem, perdeu até os filhos.

Cirineu me confessou: “confio em minha astúcia e vou enganar a morte! Disse-me com a segurança de quem delira: “a engenharia genética marcha para comandar a vida e colocar a imortalidade na DNA”. Ele não se lembra que a morte é desprovida de vaidade, não cede a encantos.

A medicina, em a sua sabedoria milenar, oferece elementos para essa ilusão e sangra a fortuna de Cirineu. Na velhice, quando a procuramos, a medicina nos aprisiona. Não tem saída: a medicina impõe a sua disciplina, as suas regras e as suas prescrições. O seu modo de vida.

Nas antessalas dos hospitais e clínicas, as pessoas esperam a sua vez tensas, amedrontadas, solitárias, mesmo com um acompanhante ao lado. É um ritual contraditório: de medos e esperanças.

A moça que aparece para chamar o próximo, grita com uma voz estridente, aguda, imperativa: Fulano de tal! Se o impaciente demora, ela repete, com um tom ameaçador: FULANO DE TAL!!!! Como se fosse uma última chance. A sala acompanha silenciosa. O infeliz relaxa, chegou a sua vez.

A medicina de mercado tem pressa, vive da produtividade. Essa moça que grita chamando o próximo, não poderia ter a voz melosa dos avisos de aeroportos. Precisa gritar?

Voltando a Cirineu. Essa aspiração de imortalidade tem história.
Sísifo, o pai de Ulisses, enganou a morte, aprisionando-a em sua corrente.

Ao descobrir a trapaça, Zeus condenou Sísifo a viver eternamente, carregando uma pedra morro acima. Antes do cume, a pedra rolava morro abaixo. Essa tarefa insana, deveria ser repetida eternamente.

É a condição humana! Quando se enfrenta os deuses, eles nos abandonam. E o destino não precisa dar satisfações. Não temos o controle da vida. Freud chocou o mundo científico quando comprovou que a natureza não tem compromisso com a nossa felicidade.

Só podemos avaliar uma vida, ao final. Cirineu, que parecia um bem-sucedido, caminha para um sofrimento insuportável. Ele não foi eleito para receber a graça da morte repentina. “A sorte de acordar morto.”

As pessoas mudam, são construídas com as experiências da vida. Cirineu joga a sua última batalha. Quer derrotar a morte.

As neurociências comprovaram: o cérebro possui uma enorme plasticidade. Se modifica, se rearruma, cria circuitos. É falsa a crença do senso comum de que a pessoa é para o que nasce.

Não, não estou negando a herança genética, apenas relativizando. O que estou dizendo é que não existe uma essência humana prévia, que se herda pronta. Sartre defendia que a essência humana era posterior a sua existência. Só podemos avaliar ao final. Somos o que fazemos na vida.

Cirineu chegou à reta final e é outro homem.

Só sabemos se fomos ou não felizes, ao final da existência. A tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, é esclarecedora. O destino do todo poderoso Rei Édipo é exemplar. No final, são tantos os contratempos, que ele se suicida. Cego, banido, desamparado e odiado.

Cirineu não é Édipo, mas está sendo empurrado para o mesmo fim, com uma mudança: ao invés de odiado, foi esquecido.

Eu pensei comigo mesmo, se Deus não existe, a vida é uma farsa.

Antonio Samarone - médico sanitarista.

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