A Medicina do Capital (a humanização da mercadoria) Parte III
Antonio Samarone
CONTINUAÇÃO...
A revolução tecnológica, do final
do século XX, tem provocado mudanças significativas tanto nos saberes como nas práticas
da profissão médica. A autonomia técnica, o poder de decisão, a relação médico-paciente,
a tradicional hegemonia médica nas equipes de saúde, o domínio e conhecimento globalizante
do corpo humano, bem como o prestígio e status quo dos médicos sofreram abalos importantes,
alterando não só a dinâmica interna da profissão como, e especialmente, a nova visão
social que a sociedade passa a produzir sobre os médicos em geral.
A subdivisão do cuidado médico em
procedimentos obedece ao modelo taylorista-fordista, o trabalho é dividido em
diversas sub-especialidades, fracionando as tarefas em 4.600 procedimentos,
padronizando as intervenções, reduzindo o papel intelectual do médico,
aumentando a produtividade; passando o comando para o Capital. Uma linha de
desmontagem do corpo humano, coordenada pelo lucro.
Preocupados com valorização do
seu trabalho, os médicos brasileiros encontraram nos procedimentos a forma de
divisão do trabalho ajustada ao mercado da Saúde. Se a especialização da fase
anterior foi uma divisão social e técnica do trabalho médico, em parte
determinada pela elevada complexidade do setor; a subdivisão em procedimentos,
uma espécie de linha de montagem descoordenada, obedeceu unicamente às
necessidades de faturamento do mercado.
O fim da clínica? A oferta de
procedimentos diagnósticos reduziu o papel da propedêutica no trabalho médico.
Os exames laboratoriais bioquímicos, hematológicos, biologia molecular,
genético, microbiológico, toxicológico, os recursos diagnósticos da medicina
nuclear, os exames anatomopatológicos, citopatológicos, a endoscopia, os testes
eletrofisiológicos, entre outros, e de maior aceitação no mercado da saúde, os
centrados nas imagens (RX, ultrassom, tomografia computadorizadas e a
ressonância magnética). Com o advento do paradigma molecular, a patologia perde
espaço.
As mudanças da prática médica,
com a transformação do cuidado em mercadoria, do paciente em cliente,
consumidor, usuário, solaparam as frágeis bases humanistas da medicina. A nova
realidade assustou os remanescestes da medicina artesanal, que iniciaram um
movimento, através do Conselho Federal de Medicina (CFM), ainda tímido, de
introduzir no ensino médico disciplinas de humanidades, numa desesperada forma
de resistência.
A medicina mercantilizada, apesar
do brilho tecnológico, apresenta problemas que podem agravar o perfil
epidemiológico. É mais um sistema de doenças que de saúde. A medicina comercial
possui baixo impacto no perfil epidemiológico; custos elevados; desigualdade no
acesso ao consumo dos procedimentos; baixa satisfação da clientela; redução do
papel dos médicos, viram operadores de tecnologias;
Existem resistências a
subordinação da medicina ao capital, sobretudo na perda de autonomia dos
médicos. Uma das sublimações é o revestimento da prática com o véu da ciência. A
escola médica está montada para transformar o médico num mascate da ciência.
Uma medicina voltada para ciência é o lenitivo para a sua desumanização. A
ciência, como as mercadorias, é impessoal.
Em que consiste essa busca de uma
humanização perdida? Um retorno romântico para a medicina artesanal ou a
criação de novas práticas para a medicina comercial? Quais são as novas
utopias? O modelo artesanal produziu as narrativas de uma medicina social,
coletiva, na montagem de Sistemas Nacionais de Saúde, públicos, de acesso
universal e gratuito. A utopia era o SUS como está no papel.
A questão caminha para uma
impossibilidade, como humanizar as mercadorias. Contudo, como a esperança não
morre, ou é a última, surgem novos caminhos. As novas tecnologias, sobretudo as
de informação, tanto podem ser instrumento de implementação dos lucros e de
controle social; como do estabelecimento da autonomia dos pacientes. Ou
evoluímos para a autonomia das pessoas, do indivíduo, cada um será o comandante
do seu corpo, numa medicina personalizada e individualizada. O novo médico
seria parceiro dessa mudança, perderia poderes e ganharia e ganharia
importância para os pacientes. Estamos falando de uma medicina voltada para os
pacientes.
Em outros tempos, os médicos
cuidavam dos doentes, sua principal missão era aliviar o sofrimento humano.
Estabelecia com a sua clientela uma relação fraterna e de confiança, chamada
pretensiosamente de “colóquio singular”. A recompensa não era pagamento,
remuneração, salário, vencimento, nada que parecesse comércio, poeticamente, os
médicos recebiam honorários, aquilo que honra a quem recebe. Era comum o “Deus
lhe pague”, o “abaixo de Deus, o senhor”, e todo o médico tinha um horário em
sua agenda para a filantropia. Com frequência, os pacientes demonstravam sua
gratidão com mimos: - “doutor, engordei esse capão para o senhor”.
A atual humanização não significa
um retorno a essa medicina do século XX. Os caminhos são outros. A genética nos
reduziu a individualidade biológica. O humanismo possível numa medicina
mercantilizada é a luta pela autonomia dos pacientes, que eles passem a ter o
comando dos seus corpos, de sua saúde e de suas doenças. Já que a sociedade nos
atomizou, pelo menos cada um decida sobre a sua forma de viver e morrer. Entre
uma medicina voltada para o capital, ou voltada para ciência, a utopia consiste
apenas na construção de uma medicina voltada para o ser humano, personalizada, para
os pacientes. Sem abrir mão das novas tecnologias.
A utopia sanitária do século XXI,
compatível com a medicina de mercado, é auto melhoramento individual,
autodisciplinado na procura de saúde. A ênfase na autonomia individual está
ligada à desmontagem do Estado assistencialista que trata os indivíduos
dependentes com desconfiança, como “parasitas sociais”. Esse é o sonho do
liberalismo. E as esquerdas acham o que? Estamos pensando...
Antonio Samarone.
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