domingo, 23 de maio de 2021

VAGAS MEMÓRIAS


Vagas Memórias.
(por Antonio Samarone)

O povo não possui genealogias. Seus nomes não constam em arquivos públicos, cartórios e sacristias. E a memória da gente é curta.

Um amigo, descendentes de fidalgos do Arauá, está empenhadíssimo em descobrir as origens. Já chegou em ascendentes endinheirados, de famílias sefarditas da Península Ibérica.

Em Sergipe, nem os donos de sesmarias deixaram memórias.

A minha genealogia chegou a Ascendino de Genoveva, meu avô paterno. Gente pobre do Matebe. Lourinho dos olhos claros, cabelo muito fino, conversador, contador de estórias engraçadas. Não falo por ciência própria, mas por um ouvir dizer.

Sei que Ascendino era irmão de Seu Antonio das redes e de Erundino, que migrou para Aracaju, e botou uma Padaria na Rua Santa Rosa, que até hoje existe. E mais nada.

Ascendino morreu novo, envenenado pelo álcool.

Descendente de espanhóis, de um soldado anônimo das tropas de Bagnoulo, que passou pelo Arraial de Santo Antonio e Almas de Itabaiana, fugindo dos holandeses, depois da expulsão dos espanhóis de Porto Calvo, em 1637.

Ascendino guiava uma tropa de burros do Coronel Barbosa, das Candeias. Semanalmente, transportava farinha, feijão, legumes, galinhas e ovos dos sítios do agreste para o antigo porto de Roque Mendes, em Riachuelo, onde a mercadoria era embarcada em saveiros, para o mercado público em Aracaju.

Os tropeiros de Itabaiana alimentavam Aracaju, criando a fama de cidade celeiro.

As feiras livres do Aracaju ainda recebem essas mesmas mercadorias, só mudou o meio de transporte. Ainda compro a Seu Adonias do Malhador, o feijão de corda novo debulhado na hora, na feira semanal do Mosqueiro.

Adonias não sabe, mas estou matando a saudade de Seu Ascendino de Genoveva.

Meu pai conservou por muito tempo uma herança do meu avô, uma Capa Renner Três Coqueiros, preta, usado pelos tropeiros para proteção do vento e da chuva. A Capa de Ascendino mantinha o cheiro do suor dos cavalos e das intempéries, uma relíquia de uma profissão extinta.

Não sei que fim levou essa Capa!

Meu pai possuía poucas vaidades. Usar um chapéu Ramenzoni Três X, pêlo de lebre, era uma, herdada de Ascendino. Ele não tirava o chapéu nem para tomar banho.

Em seu sepultamento, colocamos o chapéu dele mais novo dentro do caixão, para ele não chegar desprevenido. Nunca se sabe o que o morto vai encontrar no outro lado.

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

A FOME VOLTOU


A Volta da Fome!
(por Antonio Samarone)

Com o final da ditadura, parte da esquerda acreditou que a saída para o Brasil seria uma aliança com a burguesia desenvolvimentista. Onde encontrar esses burgueses, comprometidos com um projeto nacional?

A Aliança Democrática resultou em Zé Sarney na Presidência da República. Foi essa a aliança possível com a burguesia. O “Tudo pelo Social” do Sarney terminou no Caçador de Marajás e a economia entregue a Zélia Cardoso. Surgiu a Nova República.

Essa crença em uma burguesia nacional com interesses diversos do Imperialismo, voltada para o Brasil, acabou de vez com a chegada do neoliberalismo, durante o Governo de FHC.

O capitalismo tomou novos rumos. O mercado foi globalizado e passou a significar o mercado financeiro.

Lula foi eleito com o compromisso de assegurar tranquilidade a esse mercado. E cumpriu o pacto, com uma ressalva: distribuiu uma parte da renda com o andar de baixo. Não atacou as bases da desigualdade, mas criou uma esperançosa “classe C”.

Lula tentou dar um “rosto humano” ao neoliberalismo, como se fosse possível. Foi quem melhor administrou o capitalismo periférico, no Brasil.

Naquele momento, foi possível distribuir renda e melhorar a vida de muita gente, sem mexer nos interesses da tal burguesia nacional. Pelo contrário, eles nunca ganharam tanto.

Lula acomodou os conflitos decorrentes da profunda desigualdade brasileira, sem mexer com a estrutura. Os movimentos sociais foram desmobilizados e parte das lideranças cooptadas. A conjuntura permitiu.

Para os que acham que isso foi pouco, e foi, fica um alerta: talvez nem isso seja mais possível.

De lá para cá, o capitalismo mudou muito. O pacto com o Centrão acabou e Dilma foi golpeada aos pontapés. Sem resistências.

O neoliberalismo avançou ferozmente, suprimiu direitos sociais e trabalhistas, precarizou as políticas sociais e elegeu um fascista despreparado.

O “mercado”, como diz a imprensa, continua agitado, sedento por sacrifícios humanos. Ele exige a sua parte, sem concessões. Apertemos os cintos...

Os pobres não cabem no orçamento!

Como se não bastasse, veio a Pandemia.

A sociedade brasileira encontra-se profundamente dividida e com um futuro incerto. A desigualdade social avançou e o desemprego ameaça a sobrevivência dos trabalhadores.

A fome retornou faminta, voltou a ser o nosso principal problema, o mais urgente.

E agora?

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

terça-feira, 11 de maio de 2021

LAVAR AS MÃOS


Lavar as mãos.
(por Antonio Samarone)

Depois do famoso gesto de Pilatos, o médico húngaro, Ignaz Semmelweis, revelou ao mundo (1861) que, lavar as mãos era indispensável para evitar-se contágios e a transmissão de doenças.

Foi um choque para a Medicina, que defendia a teoria miasmática, saber que a assombrosa mortalidade materna se devia à imundice nas mãos dos médicos e das parteiras.

Lavar as mãos com água e sabão foi uma das grandes descobertas da Saúde Pública.

A explicação de Semmelweis foi rejeitada! Ele foi enclausurado num hospício de doidos, onde veio a falecer em 1865, aos 47 anos. A tese só foi aceita depois de sua morte, quando o cirurgião escocês, Joseph Lister, passou a usar a assepsia em sua prática.

A simples receita de Semmelweis de lavar as mãos, necessária no combate a Covid-19, não é bem aceita no Brasil. Por aqui, não se lava as mãos nem antes das refeições.

Só lavamos as mãos depois que usamos os sanitários em restaurantes e Shopping Center, mesmo assim, se passa uma aguinha. Cuidamos mais da aparência das unhas, que da limpeza das mãos.

As pessoas aceitam mais lavar as mãos com álcool em gel, do que com água e sabão.

Não é por ignorância. É puro desmazelo cultural.

Durante muito tempo, as professoras cobravam a higiene pessoal dos alunos. Em minha escola primária, só assistiam às aulas os alunos limpinhos. Antes, passava-se por uma inspeção de unhas, orelhas, sovacos e virilhas. Agora é bullying!

No Brasil, operação “mãos limpas” significa combate a corrupção.

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

sábado, 8 de maio de 2021

BANHO DE CUIA.

Banho de Cuia.
(por Antonio Samarone)

O historiador Almeida Bispo me despertou: postou a foto de uma cuieira (coité, cabaceira, pé de cuia), em suas redes sociais. Fiz uma viagem no tempo.

Herdamos a cuia dos Índios. Muito usada em celebrações para beber o cauim.

Cansei de tomar banho de cuia. Isso mesmo, aquele banho de sopapo, que os meninos odiavam. Eu adorava! Mamãe mornava a água e, deliciosamente, despejava-a com uma cuia, aos poucos, em minha cabeça.

Lembro-me dos arrepios nas costas.

Não falo do banho de cuia das peladas, um drible humilhante, próprio dos craques, que os pedantes chamam de lençol, chapéu, balãozinho. Fazer o gol, dando um banho de cuia no "back", era a glória suprema.

O meu banho de cuia era com água e sabão de coco.

Antes do Sistema Métrico, a cuia era usada como medida para secos, representando 1/32 do alqueire (36,32 litros). Alcancei farinha vendida em cuias, na feira de Itabaiana. Uma cuia de farinha era um litro bem medido, um pouco mais.

Meia cuia de farinha era um padrão para esmolas.

A cuia também serve de prato, usada pelos pataqueiros e boias-frias na roça.

Os barbeiros cortavam cabelos usando uma cuia na cabeça do cliente. Se raspava da cuia para baixo. Passava-se a máquina zero. Sobrava um toco redondo de cabelos, no “cucurute” do freguês.

No Sul, a cuia em forma de cabaça é tradicional, para quem toma chimarrão. No Norte, usa-se a cuia para se tomar o tacacá.

A cuia é parte importante de um instrumento musical, sagrado para a Capoeira, o Berimbau.

Quando alguém casa, vai morar junto, se diz que juntou as cuias. E quando viaja para longe, para demorar, se diz que foi de mala e cuia. Não deixou nada.

Para finalizar, a cuia pode ser usada como “marca de qualidade”. Para se desclassificar uma coisa, um objeto, um sujeito, uma mercadoria, se diz que é marca Cuia. E aí, o rádio é bom? Que nada, é um rádio marca Cuia.

Por exemplo: temos um Governo “marca Cuia”!

Antonio Samarone (médico sanitarista)