sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

GENTE SERGIPANA - CARLOS GARCIA


Gente Sergipana – Carlos Garcia
(por Antonio Samarone)

“Carlos Garcia, um líder sem vaidades”.

A política em Sergipe era reservada aos Senhores das Terras, latifundiários, e donos de engenhos. Aos donos do gado, da gente e dos canaviais. A chamada oligarquia rural. Senhores de baraço e cutelo.

Porém, Sergipe tem os seus mistérios.

Fugindo à regra, despontou em Rosário do Catete uma família de classe média poderosa. Seu Antonio Garcia, músico e pequeno comerciante, e Dona Toinha, trouxeram ao mundo filhos poderosos. Se dizia na brincadeira: uma oligarcia.

Três governadores: Luiz Garcia em Sergipe, José Garcia no Mato Grosso e Gilton Garcia no Amapá. Não é pouco.

Um velho Comunista, Robério Garcia, stalinista, amante da URSS e desportista, a quem o futebol sergipano muito deve. Implantou o futebol profissional no Estado.
Um médico socialista, cristão e poeta, Antonio Garcia, fundador da Faculdade de Medicina de Sergipe.

Finalmente, o mais talentoso e menos conhecido, Carlos Garcia. Advogado, intelectual, jornalista, agitador cultural e dirigente do Partido Comunista (PCB), em Sergipe.

Carlos Garcia formou-se em Direito na Bahia. Retornou à Sergipe durante o Estado Novo, e assumiu a frente dos movimentos sociais e da luta pela liberdade e igualdade. Diretor do Jornal “O Povo”, advogado das causas populares.

Casou-se em 1940, com a cirurgiã dentista do IAPC, Helena Domingues, irmã do médico e deputado estadual constituinte pelo PCB, Armando Domingues. Carlos e Helena tiveram quatro filhos: Vasco, Luiz Carlos, Maria Helena e Vera. Vasco é um personagem de Veríssimo, em “O Tempo e o Vento” e Luiz Carlos uma homenagem ao Cavaleiro da Esperança. “Vasssco soa como uma chicotada.”

Armando Domingues clinicou em Itabaiana.

Em 1947, Carlos Garcia se elegeu o Vereador mais votado de Aracaju.

Em 29 de novembro de 1947, a polícia do Governador José Rollemberg Leite, matou a tiros o carpinteiro, negro, pai de 12 filhos, Anísio Dário, durante uma manifestação contra a cassação do PCB, na Rua João Pessoa.

O Governo, estupidamente, acusou Carlos Garcia pelo assassinato.

O Poeta José Sampaio registrou o bárbaro crime num poema: “Canto do Negro Morto”.

O Partido Comunista (PCB) foi cassado pelo TSE em 07 de maio de 1947, acusado de receber o “ouro de Moscou”.

Em 1948, Carlos Garcia se desligou do PCB, numa longa carta, onde detalha de forma objetiva as mazelas do stalinismo no PCB sergipano. Talvez seja o documento mais importante da história do movimento comunista em Sergipe, desconhecido de muitos pesquisadores.

Carlos Garcia, perseguido, injustiçado, precisou sair de Sergipe para sobreviver. Foi morar e criar a família no Rio de Janeiro, sem nunca ter abandonado a sua crença na luta por justiça e liberdade.

A grande tragédia.

Carlos Garcia perdeu a esposa Helena e a filha mais nova, Verinha, num pavoroso acidente na Avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro. Escaparam nesse mesmo acidente, Ninota Garcia, esposa do Governador de Sergipe, que dirigia o automóvel e a outra filha de Carlos, Maria Helena.

Na maturidade, Carlos Garcia se converteu ao cristianismo.

Carlos Garcia nasceu em 09 de março de 1916, em Rosário do Catete, Sergipe, e faleceu em 19 de fevereiro de 1971, no Rio de Janeiro, aos 56 anos.

Na lápide do seu túmulo, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, está escrito: Carlos Garcia inesquecível, amou a sinceridade, a verdade e sobretudo a vida”.

Um grande sergipano.

Antonio Samarone (médico sanitarista).


 

A DANÇA DE SÃO GUIDO


Dança de São Guido.
(por Antonio Samarone)

Carlos Wilson era um gentleman. Pele avermelhada, cabelo de fogo, porte atlético, músico da filarmônica. Subia e descia a Serra sem perder o folego.

Filho de Dona Celina, mãe solteira. Carlos Wilson não conheceu o pai. Dizia-se ser filho de um padre Belga, que andou pregando pelo Interior de Sergipe, na década de 1960.

Recentemente, Carlos Wilson se encasquetou com as origens. Quem era o seu pai? Só pensava nisso. Começou a pesquisar, de forma confusa, a sua genealogia.

Mandou uma mecha de cabelos para um laboratório israelense, na esperança de encontrar indícios da paternidade, através do mapeamento genético.
Depois de um bom tempo, recebeu um relatório confidencial do laboratório, alertando para a existência de indícios de uma doença genética rara. Sugeriu-se que ele procurasse os serviços especializados no Brasil.

Carlos Wilson, contou-me isto há uns cinco anos. Meio sem convicção, sugeri: não custa nada repetir o exame. Carlos Wilson deu uma risada: estou com vontade de rasgar o relatório e mandar o laboratório à merda. Doença Genética? Esse pessoal pensa que sou trouxa. Nunca senti nada.

Era só o que faltava: uma doença que não precisa de doente. Seria uma fatalidade nascer com o destino programado geneticamente? Talvez uma herança do meu desconhecido pai, pensava ele.

Há muito, não ouvia falar de Carlos Wilson.

Ontem, recebi a notícia que ele cometeu o Suicídio. Não esperou o 2022.

Vivia muito doente, com uma enfermidade neurológica degenerativa. Não andava, perdeu a fala, tremores dessincronizados. Profundo abalo nas funções cognitivas, demência profunda e depressão.

Começou andando desengonçado, com movimentos rápidos e desconexos das mãos, parecendo uma dança.
A doença se desenvolveu rapidamente, os médicos não descobriram do que se tratava. Não deu tempo.

Contei essa história a um colega, doutor em neurologia, ele foi peremptório: “suspeito de doença de Huntington, o que os antigos chamavam de Dança de São Guido.”

Fui ler sobre a suspeita do Neuro, e acho que ele pode ter acertado. Uma doença genética rara, fatal, degenerativa, incurável, estava inscrita no genoma de Carlos Wilson. O laboratório Israelense estava certo.

Carlos Wilson usou do livre arbítrio e contrariou a condenação genética. Se matou antes.

Antonio Samarone (médico sanitarista) 


segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A MORTE DO PACIENTE


A Morte do Paciente.
(Poe Antonio Samarone)

A medicina artesanal centrava-se na relação médico/paciente. O trabalho médico era o de cuidar das pessoas, enfrentar o sofrimento humano em sua complexidade e observar as subjetividades, os modos de vida, as crenças e valores de cada um.

Era uma medicina humanizada por tratar-se de uma relação entre pessoas (o médico e o paciente). Exigia conhecimento científico e sensibilidade (arte).

A Saúde se transformou no maior desejo da humanidade, maior até que a salvação. O corpo substituiu a alma. Ser saudável virou uma aspiração universal, um direito estabelecido nas Constituições.

Uma parcela da sociedade dispensa Deus, mas não existe os que dispensem a saúde, preferindo a doença, a dor e o sofrimento.

A desejo de Saúde é um consenso, importante demais para ficar sob o comando da filantropia e de médicos.

No final do século XX, a medicina se transformou numa atividade econômica, num complexo médico industrial, comandada pelas indústrias farmacêutica e de insumos, e pelo capital financeiro através dos Planos de Saúde.

O trabalho médico passou a obedecer às leis do mercado.

A dificuldade foi transformar o trabalho médico em mercadoria, impessoal, padronizado e voltado para o lucro. O cuidado médico era cheio de subjetividades, incompatível com a forma de mercadoria.

Duas adequações foram necessárias para transforma o trabalho em mercadoria: o centro da atenção saiu do doente (paciente) e passou para a doença (objeto). O paciente virou consumidor.

O serviço médico se transformou de cuidados em procedimentos. Os serviços médicos passaram a oferecer procedimentos uniformes, impessoais e quantificáveis, atendendo as necessidades de planejamento do lucro.

Os procedimentos são serviços médicos em sua forma de mercadoria. Os pacientes, as pessoas, o ser humano saíram de cena entrando, o corpo, as doenças, os sistemas fisiológicos, o objeto. Deu-se a desumanização da medicina.

As escolas médicas legitimam essa medicina de mercado, criando ideologicamente a ilusão que os procedimentos são baseados em evidências científicas. Nos ambientes universitários predomina uma áurea de pseudociência, uma simulação, onde o pensamento crítico foi afastado.

Boa parte dos professores doutores entram no jogo de boa-fé, outros nem tanto, apenas percebem as regras para legitimação profissional nesse mundo do faz de conta.

O trabalho médico transformado em mercadoria, necessita da legitimação científica, real ou imaginada.

Um grupo de médicos incomodados com a desumanização, criou no Conselho Federal de Medicina um grupo de humanidades (não sei se ainda existe). A saída enxergada foi tentar introduzir nos cursos de medicina, conteúdos de filosofia, história e artes. Os estudantes precisariam ler os clássicos da literatura e ouvir boa música.

Introduziu-se nos cursos de medicina, uma história louvatória contando a da vida dos grandes médicos, para servir de exemplo. Claro que não deu certo, o problema é outro.

Os serviços médicos se tornaram um bem de consumo sujeito as leis de mercado. A oferta de procedimentos é orientada pelo valor de troca. Não estou dizendo que os procedimentos não tenham serventia, valor de uso, não, apenas que a lógica do consumo é o lucro e não o bem-estar dos usuários.

Um poderoso marketing convence a sociedade que a saúde depende desse consumo, de preferência de forma preventiva. A saúde deixa de ser qualidade de vida, mas o consumo de serviços médicos.

Só existem três mercados onde conseguem transformar os seus consumidores em usuários: os mercados das drogas, das redes sociais e da medicina.

Não sei ainda se existe a possibilidade de humanizar a medicina de mercado.

A saída não seria a ressuscitação do “paciente” da medicina artesanal. Paciente era um personagem passivo, obediente, disciplinado em seguir as orientações médicas. A relação era humanizada, mas de dependência.

Talvez a humanização passe pela abordagem holística, das pessoas que procuram os serviços médicos em busca de aliviar os seus sofrimentos.

Humanizar é oferecer uma medicina voltada para as pessoas.

A desumanização da medicina começou com a troca do sacerdócio (ócio sagrado) pelo negócio (negação do ócio).

A medicina voltada para a ciência é um biombo para esconder o mercado.

Antonio Samarone (médico sanitarista)