Antonio Samarone.
Hoje é o dia de uma batalha sem
ganhadores. A sociedade brasileira dividida, eivada de ódios, aprofundará as
divergências de raiz, das origens da nossa formação nacional. Nunca tivemos uma
guerra de secessão. Contudo, colonizadores e nativos, nobres e plebeus, senhores
e escravos, ricos e pobres, elite e povo, nunca resolveram as suas desavenças e
contradições. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
Relembrando o velho manifesto de Oswald de Andrade.
Faz 460 anos que a nau Nossa
Senhora da Ajuda encalhou na foz do Vaza Barris, Praias de Sergipe d’el Rey, onde
os tupinambás devoraram, no maior ritual antropofágico da nossa história, o
Bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, um letrado formado em Sorbone, que não
reconhecia os índios como filhos de Deus; o Provedor-Mor Antônio Cardoso de
Barros, e toda a tripulação, formada por 90 colonizadores brancos, entre os
quais, nobres e fidalgos portugueses. A padroeira de Itaporanga é uma homenagem
à nau naufragada. As escolas ensinam erradamente que o naufrágio ocorreu na Foz
do Rio Coruripe, e os índios foram os caetés. Por via das dúvidas, as duas
nações, caetés e tupinambás foram exterminadas.
Em 1557, a regente de Portugal,
Catarina de Áustria, numa cruel sentença, declarou guerra justa e perpétua aos
índios caetés e tupinambás e aos seus descendentes, independente de sexo e
idade, por considerá-los culpado pelo sacrifício do Bispo. Se alguns escapassem
deveriam ser escravizados. Essa sentença foi uma marca da nossa história e é
cumprida até hoje. Nas revoltas populares derrotadas, nunca se perdoou os
revoltosos após a rendição, geralmente são dizimados e as suas cabeças cortadas
e expostas em vias públicas. Foi assim em Palmares, Canudos e tantas outras.
Os dois embates fundadores da relação
povo/elite no Brasil, o nós/eles, ocorreram na bacia do Vaza Barris. O ritual
de antropofagia na foz do Vaza, onde o Bispo Sardinha e comitiva foram degustados
pelos tupinambás; e a guerra de Canudos, em Belo Monte, comunidade erguida nas
baixadas férteis do Vaza Barris, em suas nascentes, lá para as bandas do Uauá. Relembrando
Euclides da Cunha: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu
até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do
termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,
que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma
criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.” Como se não
bastasse, desenterraram o cadáver de Conselheiro, para que a cabeça fosse
cortada e levada como um troféu de guerra.
Essa relação pouco mudou. A
sentença da Rainha Catarina continua vigorando, basta observarmos o que ainda
ocorre com pobres e pretos quando tidos como suspeitos por supostos crimes ou
mal feitos. Essa inclusão social ainda não ocorreu. Uma parte da sociedade,
(os “caboclos que querem ser ingleses”), acredita que os males do Brasil
decorrem da matéria prima que formatou o povo, da mestiçagem atávica; acredita
que nunca seremos uma Nação desenvolvida, que passaremos da “barbárie a
decadência, sem passarmos pela civilização”, como disse Lévi-Strauss. O desejo
desta turma é sair do Brasil.
A outra parte da sociedade, não
conseguiu até o momento encontrar um caminho para integração. Devorar o seu
inimigo, significa a incorporação das suas virtudes e bravuras, num secular ritual
antropofágico. Que cesse a convivência autoritária e violenta, onde o homicídio
é um crime banalizado, e grupos em confrontos visam à eliminação mútua, pelo
menos simbolicamente.
Essa separação povo/elite é
profunda no Brasil, atávica, explorada irresponsavelmente pelo marqueteiro do
PT nas últimas eleições, e que se mostrou mentirosa na hora de governar. Nem
existem saídas com a exclusão social, nem com o poder público corroído pela
corrupção e pelo parasitismo. Seja qual for o resultado da votação do
impeachment, nada mudará por esses caminhos. Os grupos políticos em disputa não
representam as ruas, são faces da mesma moeda, desde o Império. Não estão preocupadas
com o Brasil. Acho que o alerta recente de uma canção popular que circula nas
redes sociais, vale para todos. “O morro mandou dizer, que se a senzala descer,
ninguém vai segurar”.