sábado, 15 de julho de 2023

PÉ DE SERRA

 Pé de Serra...
(por Antonio Samarone)

Acabei de ler uma tese sobre o forró, do doutor Thiago Paulino. A academia debruçada sobre a arte popular. A arte dos excluídos. O pesquisador divide forró em eletrônico, universitário e pé de serra.

O meu interesse restringe-se ao último.

Acho que o “eletrônico” e o “universitário” aproveitam-se do título forró, como marketing. Forró é o pé de serra. Pronto! Eu sei, é um achismo questionável. Fiquem à vontade.

O forró pé de serra é exemplo raro de resistência bem-sucedida a indústria cultural. Enfrentando boicotes sistemáticos. O exemplo recente de Flávio José, sendo discriminado em Campina Grande, é ilustrativo. Estou falando de um ícone do forró.

Aprendi com a tese de Paulino, que virou livro, que a composição do trio do forró pé de serra (sanfona, zabumba e triangulo) não foi criação de Gonzaga. Já existia em Portugal antigo, um grupo chamado “chula” (rebeca, bombo e ferrinho). Os estudos acadêmicos trazem essas novidades.

O doutor Paulino inspira-se em Nobert Elias, um médico alemão, para explicar o Barracão de Clemilda. Tirando essas bobagens, o livro é bom.

Não é culpa dele, a Academia exige uma referencia teórica, mesmo que se force a barra.

Outro exagero, foi considerar o Arraial do Povo, esse da Orla da Atalaia, um evento diferente do Forró Caju, o do mercado central do Aracaju. Considerando o primeiro de raiz e o segundo de massas.

Acho tudo farinha do mesmo saco. Os dois eventos transformam o povo em plateia. Antes brincava-se o São João, hoje se assiste.

O São João atual é uma festa de largo, onde o Estado, o Poder Político se transforma no organizador, financiador e protagonista. Um uso da cultura como instrumento de legitimação política dos governantes. A visão romana do espetáculo.

Uma dúvida: essa lógica atual de financiamento do Ministério da Cultura (Lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2) aponta em outra direção? Seria um caminho de descentralização democrática? Estou apenas perguntando.

O livro de Paulino é bem fundamentado. Ajuda no entendimento sobre o forró, sobretudo em Aracaju. Sobre o interior, limita-se a família de Aurelino e a Cobra Verde, em São Domingos.

Que o Doutor Paulino se prepare para estudar os desdobramentos para o forró pé de serra, com a criação de uma escola de sanfona, zabumba, triangulo e teoria musical, que está quase pronta, na capital sergipana de cultura.

Doutor Paulino, gostei do seu livro. Escreva mais.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A SENHORA DAS ÚLTIMAS COISAS

 A Senhora das Últimas Coisas...
Por Antonio Samarone

A Morte levou mais um da minha Aldeia. Dessa vez, levou um campeão de 1959: Samuel de Sizinio. A Morte não respeita ninguém, nem os campeões.

Acho que a Morte está exagerando. Perdeu o senso! “E para ti, Ó Morte, vá a nossa alma e a nossa crença, a nossa esperança e a nossa saudação.” Fernando Pessoa

José Samuel de Almeida nasceu em 12 de abril de 1939 (84 anos), na Villa de Santo Antonio e Almas. Foi o primogênito de Sizino de Boanerges e dona Maria Souza de Almeida (irmã de Zé Crispim), gente do Zanguê.

Samuel era cem por cento ceboleiro. Um homem que trabalhava por compulsão. Deixou a advocacia, porque os processos tramitavam lentamente, e ele tinha pressa.

Samuel é de uma família de gente honrada. O seu pai, Sizinio de Boanerges, foi dono de armazém de secos e molhados e fogueteiro. Um empresário bem estabelecido. Foi Prefeito de Itabaiana e saiu pobre. Foi viver de uma bodega aqui em Aracaju, na esquina das ruas Itabaiana e Maruim.

Samuel de Sizinio, irmão de Nandinho e Suzana, e mais uma legião de gente. As famílias eram grandes. Samuel foi casado com Dona Marly Mendonça.

Uma lembrança: Suzana e Marly foram minhas professoras, e das boas. Eu sou do tempo que as lembranças das professoras ficavam. O que eu sei de geografia, aprendi com Dona Marly.

Samuel deixou 4 filhos (Eduardo, Ana Paula, Ana Karla e Ricardo) e 6 netos (Raíssa, Igor, André, Ana Luíza, Beatriz e Pedro).

Em menos de oito dias, enterrei Mãe Gorda, Djalma Lobo e Evandro Sena, e agora Samuel de Sizinio. Fora Jaci de Joãozinho Retratista, que só soube depois.

Gente, alguém tem que tomar providências! A Morte está abusando, só ela é absoluta.

Eu queria ter a fé do Padre Peixoto e acreditar na ressurreição.

Mesmo a ideia de Deus sendo improvável, é mais difícil acreditar na tese da biologia, onde o homem é fruto do acaso evolutivo.

Na verdade, não alcanço o mistério da vida consciente.

Missão cumprida, Samuel de Sizinio!

O sepultamento será as 16 horas, na Colina da Saudade.

Antonio Samarone. (médico Sanitarista)

O GATO GRIS

 O Gato Gris.
(por Antonio Samarone)

Os bichos se humanizaram, dormem na cama e possuem sobrenomes, sobretudo os cães e os gatos. Acho, que se a evolução darwinista estiver certa, em muito breve, eles começarão a falar.

Em meu condomínio, essa humanização dos bichos é seletiva. Ama-se cães e gatos e odeia-se os pombos.

Temos um gato vadio, sem dono: o gato cinza!

O belo gato cinza está morrendo. O gato cinza, na verdade não é cinza, não é preto, nem azul. A sua cor não existe nas caixas de lápis de cores. A sua cor metia medo e o seu miado era assustador. Ele possui uma cabeça imponente e um olhar feroz, cheio de brilho.

O gato cinza não tem dono (perdão, tutor).

Depois que Marieta se mudou, o gato cinza ficou órfão, sem ter onde comer. Marieta era a tutora de gatos persas, daqueles peludos lindos. O que sobrava dos banquetes dos seus felinos, ia para o gato cinza.

Acho que a desnutrição e a velhice, mudaram a índole do gato cinza. Ele está com claros sinais de maus tratos e uma forte alopecia.

Em minha insônia produtiva, hoje pela madrugada, ouvi o miado do gato cinza. Acho que ele sabe da minha amizade com Marieta. Um miado humilde, choroso, pedindo um lugar para morrer. Os gatos, como as pessoas, morrem só.

Abri a porta e me aproximei. Botei ração fresca e tratei-o como gente. Não sei o seu nome, se é que tem nome. Chamei-o de xaninho, um apelido genérico. Tentei convencê-lo a não desistir da vida.

O gato cinza fez uma cara de tristeza e expressou: Chega, o sofrimento não faz sentido. Chegou a minha hora. Acho que a morte também não é o fim para os gatos. Se houver reencarnação, só não quero voltar pombo.

Eu, cá comigo, nem eu.

Os gatos aqui de casa são comuns, não reclamam, acham a vida boa, só com casa, comida, atenção e carinho. Eles foram solidários com o gato cinza.

O gato cinza não tem onde morrer. Talvez, ainda esteja vivo só por isso.

Me senti impotente. Se ele quisesse viver eu sabia como ajudá-lo. Mas, morrer, eu não sei. Não lido bem com a morte.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A DANÇA

 A Dança...
(Por Antonio Samarone)

O que é essa febre, que se apossa da criatura levando-a ao frenesi? A dança é uma manifestação do instinto da vida, da mais pura energia vital.

“O Grupo Luar do São João, do Piauí, venceu o concurso regional de quadrilhas, da Rede Globo, com um enredo sobre a Santa Dulce. A fé na Santa está em alta. A quadrilha representante de Sergipe, a Século XX, não foi premiada.”

Postei a informação acima no Tweet, visando chamar a atenção para a popularização da fé em Santa Dulce. Mas as reações foram outras. Criticaram as atuais quadrilhas juninas.

As pessoas reagiram criticando as mudanças no estilo das quadrilhas juninas: "acabou-se a tradição", "as quadrilhas não são mais as mesma, viraram escola de samba", "já possuem até enredo". Choveram críticas, algumas enfurecidas.

Não existem mais quadrilhas como antigamente, dizem os saudosistas.

Fiquei inconformado. Sim, mas como eram as quadrilhas antigamente? Uma dança de salão bem-comportada, marcada em francês (anavantú, anarriê), e que tentava ridicularizar os tabaréus, com as suas vestes remendadas e o passo troncho.

A dança é uma celebração. O que celebravam as quadrilhas afrancesadas?

A dança é uma linguagem além da palavra. O Rei Davi dançou diante da Arca.

A dança é provação, prece, teatro, rituais e terapêutica. Os Xamãs ascendem ao mundo do espírito pela dança.

Na tradição chinesa, a dança permite organizar o mundo, pacifica os animais selvagens e estabelece uma harmonia entre o céu e a terra.

A quadrilha afrancesada não era nada disso. Nada expressava! Era uma imitação simplificada das danças da Coorte francesa. Essa tradição não nos pertence!

Na concepção de Câmara Cascudo, a quadrilha era a grande dança palaciana do século XIX, que abria os bailes das Cortes europeias. Na época do Império, foi sucesso no Rio de Janeiro. No último baile solene do Paço (1852), dançaram vinte quadrilhas.

A quadrilha foi trazida para o Brasil pelos mestres das orquestras de dança francesa, como Milliet e Cavalier, que tocavam as músicas de Musard, o pai das quadrilhas.

A quadrilha se popularizou depois no Brasil, como uma dança caipira.

A quadrilha junina atual, essa que passa na Globo, se modificou. Se transformou num bailado popular. Incorporou a música nordestina. As roupas ganharam brilho e beleza. A dança virou uma coreografia centrada no xaxado e no arrasta pé. E agora, tem até enredo. Celebram a vida, a liberdade e a força da cultura popular.

Por que vocês estão criticando e pedindo o retorno da quadrilha afrancesada? Gente, o que se chamava antes de “quadrilha” era uma imitação, uma veleidade aristocrática.

As quadrilhas juninas, ainda bem, só herdaram da dança francesa, o nome e os pares. Uma herança que pouco acrescenta.

As quadrilhas juninas de hoje, são formas dramáticas de expressão cultural, onde o corpo rompe os limites em busca de liberdade e da harmonia. Um baile perfumado.

Viva os bailados nordestinos (quadrilhas), herdeiras da nossa melhor tradição. Em especial, viva a “Balança mais não cai”, tradição do Beco Novo.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

ALMA BRASILEIRA

 A alma brasileira...
(por Antonio Samarone)

“Mas de repente, me acordei com uma surpresa/ Uma esquadra portuguesa veio na praia atracar/ Da grande Nau, um branco de barba escura, vestindo uma armadura me apontou para me pegar/ assustado, dei um pulo lá da rede, pressenti a fome e a sede, eu pensei vão me acabar/ me levantei, de borduna já na mão/ eu pensei no coração, o Brasil vai começar.” – Nóbrega.

Na medicina hipocrática, o corpo humano é formado de 4 elementos: terra, água, fogo e ar.

No brasileiro predominam o ar. Somos filhos do ar. Isso vem da descoberta. Chegamos de caravelas, trazidas pelo ar.

Na cosmogonia bíblica, fomos criados com um sopro divino nas narinas de um boneco de barro. O ar é o símbolo da vida, da espiritualização. O ar é a fonte do vento, do bafo e do sopro, é a via de comunicação entre a terra e o céu.

Dos 4 elementos, o ar domina o brasileiro. Quando provocados, pegamos ar, ficamos zangados.

Se diz de duas pessoas parecidas: fulano dar uns ares com beltrano. O olhado é um ar diabólico, o ar da inveja. O seca pimenteira.

A antiga morte de repente, causada pelo acidente vascular cerebral (AVC), o “popular derrame”, se diz que passou o vento.

A malária é o mau ar. O vento pelas costas é um perigo para a saúde. Na Peste da Covid, se entubava pela falta de ar. A Peste matou por afogamento.

Deixamos de acreditar, mas vento mau existe, e continua soprando.

Existe o ar do morto, o ar do vivo, o ar quente, o ar frio, o ar da inchação, ar de ventosidade e o ar de dormência. E muitos outros.
Só o diabo, tem mais força que o ar.

Carregar velas acesas em procissões (foto) é um desafio ao vento. Uma luta entre o fogo e o ar. O homem dominou o fogo. O ar ligeiro é indomável, o vento vira furação.

Dona Gemelice, no Beco Novo, passava o ramo e ordenava: “Eu retiro todos os males, o ar do ribeiro, ar dos salgueiros, ar dos corisqueiros, ar de morto, ar de vivo, ar de vizinho mau e ar de vizinho bom.” Havia evidencias da eficácia da reza.

Dos 4 elementos fundamentais, o ar é único que continua público. Ainda é gratuito.

A alma nem sempre está à venda. “Tudo vale a pena, quando a alma não pequena.” – Pessoa.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

QUE O ALIMENTO SEJA O SEU VENENO

 Que o alimento seja o seu veneno.
(por Antonio Samarone)

São João é festejado como um deus amável e dionísico, com farta alimentação, músicas, danças e bebidas. Dizem que no dia da festa o Santo dorme, para evitar a tentação do clarão das fogueiras e descer do céu.

João era primo de Jesus, nasceu em 24 de junho e morreu degolado no Castelo de Macheros, na Palestina. A sua cabeça foi entregue numa bandeja. Um pedido de Salomé.

A festa que veio de Portugal, foi logo incorporada pelos índios. Fernão Cardim cita as fogueiras nas Aldeias, comemorando São João, já em 1583. Os índios praticavam a coivara. A festa logo caiu no gosto.

As festas juninas acirram um conflito no idoso, entre os limites dos desejos. O banquete é divino, entretanto o corpo não suporta a explosão dos açucares no sangue. O corpo pede, suplica, implora pelos venenos da culinária.

A diabetes canta e dança com a fartura com a farra junina!

A medicina prescreve uma dieta penitencial, proíbe tudo o que se gosta, com a ilusória promessa de redução dos danos. As canjicas, manauês, mingaus e guloseimas afins, são classificadas como venenos, e proibidos.

O mingau de puba com canela é um herança ancestral profunda. Está inscrita no DNA.

Por outro lado, entre os pecados capitais, só nos resta a gula. Condenar a gula em quem passou fome é uma crueldade. Os anos de vacas magras são longos.

Um dilema sem solução: submeter-se as regras da medicina e tornar a vida insossa, ou ceder alegremente a gulodice e submeter-se as consequências.

Sei não! Findo cedendo a lógica que é só um pedacinho e é só hoje. Nunca é um pedacinho.

As pessoas próximas não ajudam. Uns incentivam, por maldade: besteira, pouco não faz mal. Outros, também por maldade, fazem medo: não coma, a sua glicemia já está alta e as sequelas são fatais.

Você é quem sabe, se eximiu por maldade um velho compadre de fogueira.

O pior, até a minha consciência é por maldade dividida. O hemisfério cerebral esquerdo manda comer e o direito aconselha o jejum.

O glutão é ao mesmo tempo morte, vida, alegria e sofrimento.

Para rebater o peso na consciência pela comilança do São João, logo cedo, mandei fazer um cuscuz de milho ralado, com manteiga do sertão e meia dúzia de ovos caipiras, malpassados.

“Se João soubesse/ Quando era o seu dia/ Descia do céu a terra/ Com prazer e alegria.!”

Que venha o São Pedro!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A CONTEMPLAÇÃO É FEITA EM SILENCIO

 A contemplação é feita em silencio.
(Por Antonio Samarone)

A vida quer um pouco mais de calma.

“Para o homem a planta vale pouco, porque quase não tem inteligência; mas para planta é possível que a inteligência seja uma aptidão à desgraça, qualidade inferior e tal que aos olhos dela desmoralize o homem.” – João Ribeiro (sergipano de Laranjeiras)

Resolvemos esse impasse criando a inteligência artificial, mais rápida e precisa, sem dúvidas, vacilos, equívocos e duplicidades. Para a inteligência artificial, pau é pau, pedra é pedra. Não existem meias verdades.

A razão centrada na inteligência humana, que, segundo Kant, produziria uma Paz Perpetua, foi derrotada. Tornou-se inútil!

O big-data é soberano. Um novo anjo da guarda! É a iluminação digital da alma.

A inteligência artificial vive de dados. Se mede tudo. Instalei um sensor que acompanha a minha glicemia on-line, em tempo real. Uma bomba de insulina libera o hormônio automaticamente. Pago pelo consumo, descontado em minha conta corrente.

Eu sei, haverá um crescimento da produtividade, do consumo e dos lucros. O mundo vai rodar mais rápido. Ocorre, que essa pressa não me interessa. Como diz o poeta: “Quando o tempo acelera e pede pressa, eu me reuso, faço hora e vou na valsa”.

Essa conversa de auto empreendedor, produz indivíduos esgotados, deprimidos, isolados. O burnout é a doença do desempenho. Tempo pode ser até dinheiro, mas o dinheiro não é tempo.

“O neoliberalismo moldou o trabalhador oprimido em um empreendedor livre, um empreendedor de si mesmo. Cada um é hoje auto explorado do seu próprio empreendimento. Cada um é senhor e escravo na mesma pessoa.” Chul Han.

O dinheiro surgiu como meio para se comprar animais para o sacrifício, para se exercer o direito de matar. O dinheiro acumulado fornece ao seu proprietário o status de predador, confere-lhe a ilusão da imortalidade.

Os milionários que embarcaram para visitar o Titanic nas profundezas oceânicas, se achavam imortais. O pacto com o capitalismo é uma forma de pacto com o diabo.

“Por falta de sossego, a nossa civilização desemboca em uma nova barbárie” – Nietzsche.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A NOSTALGIA DA TERRA

 A Nostalgia da Terra.
(por Antonio Samarone)

“Do nada tudo surgiu, e ao nada tudo volta. O nada é o começo e o fim de tudo.” – Siddhārtha Gautama.

Para afastar o tédio decorrente do confinamento pandêmico, “plantei um sítio no Sertão de Piritiba. Peguei na enxada como pega um catingueiro, fiz aceiro, botei fogo, venha vê como é que está.”

Me aproximei da terra. O primeiro sentimento foi que a terra é uma criação divina. Essa tese de “big-bang” é conversa fiada. Tenho evidencias metafísicas que o meu sítio é parte do Jardim de Éden.

A terra é um organismo vivo e belo, reage as agressões. A terra precisa ser venerada, não aceita a destruição.

O meu sítio é aqui mesmo, na Curva do Rio Santa Maria, comunidade de São José dos Náufragos do Aracaju. O inverno reforçou a vida, a terra está viçosa. O sítio é rico em materialidade e me afasta do mundo digital.

O meu sítio tem flores azuis, mesmo no inverno. Segundo Goethe, o azul tem, em oposição ao amarelo e ao vermelho, algo de obscuro. O azul descansa o olhar, desperta a nostalgia.

O tempo no sítio é mais lento, assume o ritmo das formigas cortadeiras, das saúvas, e das arapuás. “Ouricuri madurou é sinal de que arapuá já fez mel” – João Vale.

Cada planta tem o seu próprio tempo, alimenta a paciência. A minha pressa é inútil.

A terra possui seus aromas e cores.

A digitalização, o bigdata e a inteligência artificial desromantizaram o mundo. Nos resta restituir os mistérios, o sagrado, o sublime e o belo da terra. Uma virada metafísica. A terra é o lugar da redenção e da bem-aventurança.

“As plantas e os animais são o que nós fomos. Fomos natureza como eles, e nossa cultura deve nos levar de volta à natureza, pelo caminho da razão e da liberdade.” Schiller.

Em meu sítio passei a chamar as plantas pelo nome. Identificá-las, respeitando as diferenças. Elas não gostam de ser chamadas genericamente de arvores, plantas, pé de pau. Tratá-las pessoalmente é um primeiro passo.

Vou começar a trazer os animais para o sítio. Por enquanto, só gatos, cagados, cobras sem veneno, sapos cururu, piolho de cobra, lacraias, abelhas, insetos, peixes de aquário e pirilampos.

Vou ao Carira buscar galinhas de capoeira, isso, aquelas antigas, sem carne na titela e que cantam fazendo: kel, kel, kel. Essas galinhas primitivas não pegam gôgo. Eu sei, tem galinhas maiores, mais vistosas e mais poedeiras, mas eu quero as antigas.

Só os galos de capoeiras cantam na hora certa, reconhecem o ciclo da vida. O meu vizinho cria esses galos modificados geneticamente e eles cantam a qualquer hora, não tecem as manhãs.

Esqueci dos passarinhos, do anu-branco, pica pau e das aves de rapina. Bem, eles não vivem lá, só passeiam.

Estou pensando em construir a minha biblioteca no sítio e, como na canção de Elis Regina, plantar os meus livros. Não confio em livros eletrônicos.

Voltei a terra, para ficar e, quem sabe, garantir os meus sete palmos.

Esse escrito é inspirado na leitura do texto “louvor à terra”, de Chul Han.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

O QUE DISSE O CENSO DO IBGE

 O que disse o Censo do IBGE?
(por Antonio Samarone)

Um fato relevante: o crescimento populacional está em declínio no Brasil, com as suas consequências: o envelhecimento avança e a proporção das pessoas economicamente produtivas diminui.

A crise japonesa, onde 1/3 da população tem mais de 65 anos, se aproxima do Brasil. Com um diferença, eles envelheceram ricos e nós estamos envelhecendo pobres.

A taxa de fertilidade no Brasil é de 1,65 filhos, por mulher em idade fértil. A taxa de fertilidade abaixo de 2,1, não repõe a população. No Brasil estamos com 1,65.

Na década de 1970, o debate era sobre a ameaça da explosão demográfica. O Brasil chegaria a 350 milhões de habitantes e a pobreza ia aumentar. Urgia o controle da natalidade.

Uma das justificativas para a construção da Transamazônica foi essa explosão. Era preciso criar espaços, para essa gente que iria nascer.

Em Sergipe, o Secretário da Saúde, Dr. José Machado de Souza, não aceitou a política de controle da natalidade. Não adiantou! Mudaram o nome para planejamento familiar, e uma epidemia de laqueadura de trompas foi executada.

Em 1940, a família média no Brasil possuía 6,6 filhos. Hoje, temos famílias de filho único, no máximo dois. É o modelo familiar das novelas da Globo.

A minha mãe teve 16 filhos, 9 irmãos sobreviveram. Os outros foram entregues a mortalidade infantil e viraram anjinhos. Eu tenho um filho. As famílias de filho único marcham para as famílias pet. Famílias com zero filho e um magote de gatos e cachorros.

Foi um erro de avaliação absurda. Se sabe que o Brasil chegará ao pico populacional com 250 milhões. Os estudos demográficos apontam que em 2100, o Brasil terá uma população de 190 milhões de habitantes.

Entenderam? Não houve explosão demográfica, pelo contrário, marchamos para o declínio populacional.

Vamos precisar dar meia volta. A implosão demográfica e o envelhecimento, apontam para a necessidade de estimularmos os nascimento.

Mesmo nessa visão convencional, implicaria em políticas sociais: retorno dos pré-natais, aumento de creches, escola em tempo integral, licença e incentivo a maternidade.

Outros defendem: nada disso, as novas tecnologias, a automação, a inteligência artificial, a internet das coisas prescindir da oferta de mão de obra.

De qualquer jeito, legiões de velhinhos precisarão de cuidados e qualidade de vida.

As famílias deixaram de ser esse refúgio. Iremos envelhecer sozinhos. Iremos perder a autonomia sozinhos. Quem pode, contratará uma multidão de cuidadoras. E a maioria, que não pode, morrerá à míngua.

Sempre se morreu só. A novidade é o envelhecimento na solidão compulsória. A solidão dos moribundos.

Entregar os velhos apenas aos cuidados médicos é um desastre humanitário e uma inviabilidade econômica. O hospital voltou a ser o abrigo para quem não tem onde cair morto.

Quem pagará essa conta?

O Estado neoliberal, voltado para o controle dos gastos? Os Planos de Saúde (capital financeiro), que vivem de lucros: aumento das receitas e redução das despesa. Nunca foram planos de saúde. São planos precários de socorro aos doentes.

A principal mensagem do Censo de 2022 foi a confirmação de que o envelhecimento da população é inevitável. Não poderemos continuar fingindo que não é com a gente e que é uma realidade distante.

Os cuidados dos velhos entregues as famílias, aos asilos filantrópicos ou as clínicas de repouso não respondem ao direito de envelhecermos com qualidade de vida.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A INTERNET DAS COISAS

 A Internet das Coisas.
(por Antonio Samarone)

“As não/coisas estão invadindo nosso ambiente de todos os lados, e estão suplantando as coisas. Essas não/coisas são as informações, os dados.” – Flusser.

A internet das coisas incorporou a inteligência artificial aos objetos.

As portas se abrirão e as luzes se acenderão sozinhas, na hora certa. As vassouras varem, as furadeiras furam, as radiolas tocam, os fogões cozinham a assam sem a necessidade da ação humana direta.

Teremos casas, móveis e automóveis inteligentes. Os carros em breve prescindirão de motoristas. Os automóveis mover-se-ão sozinhos, serão autônomos.

Os museus com objetos tridimensionais, com coisas antigas, perderam o interesse, foram substituídos por memoriais eletrônicos. Vivos, dinâmicos e virtuais. Os memoriais são informações, virtuais, não/coisas.

Nada é palpável!

Visitei recentemente o Memorial de Simão Dias. Formidável e encantador. Contudo, tudo ali é virtual.

A minha sobrinha, de 9 anos, acha que os livros são tablets que travaram. Não interagem com os leitores, são passivos. As contestações dos seus conteúdos são remotas. Estamos na Era das imagens, on-line.

As coisas se libertam dos homens, mas perdem os seus caprichos. As coisas, vez por outra, mostravam uma vontade estranhas, e contrariavam ou agradavam aos seus donos.

Os homens e as coisas mantinham relações de afeto e ódio. Amávamos ou odiávamos certas coisas e elas retribuíam. As coisas eram os nossos polos de estabilização. Tínhamos até objetos de estimação, sem motivos aparentes. Pura simpatia.

Na infância, tive um tamanco de estimação (os meninos usavam tamancos, antes das sandálias de plásticos, as japonesas).

Não usava o meu tamanco no dia a dia. Só em ocasiões especiais. Ia à missa e ao catecismo com ele. Gostava do espanto que o seu toc-toc. causava. Se amava as coisas.

O meu tamanco já era exibido, imagine, ele com inteligência artificial. Acho que ele iria à missa sozinho.

A inteligência artificial tornou as coisas arrogantes, afastando-as da gente. Certo, ficaram mais eficientes, enguiçam menos, mas perderam o nosso respeito.

Estamos sob ameaça? A Inteligência artificial vai nos dominar?

Acho que não, o perigo é outro. O que nos ameaça é a simplificação binária do pensamento, o fim das narrativas e do pensamento crítico.

A inteligência artificial não pensa, não se arrepia, não se comove, falta-lhe a dimensão analógico/afetiva. O pensamento humano parte da totalidade, que se antepõe aos conceitos.

A inteligência é um processo analógico afetivo, exclusivo da mente humana. Não existe inteligência artificial. O que recebe esse nome é um método de calcular, ordenar e realizar algumas tarefas.

A ameaça é que esse método binário de resolver tarefas, se torne a forma dominante do pensamento humano, suprimindo as dimensões analógicas e afetivas do cogito (pensar), próprias da mente humana.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

NO TEMPO DO RONCA

 No Tempo do ronca.
(por Antonio Samarone)

O senso comum afirma que na velhice, na caduquez, os dias são longos e os anos curtos. Cheguei lá, e a realidade está desmentindo: os dias têm sido curtíssimos. O tempo acelerou, como tudo.

Para minimizar, estou aproveitando a insônia ancestral, para esticar o tempo nas madrugadas.

Ao mesmo tempo: escrevo essas bobagens, devoro uma leitura e ouço um vídeo no Youtube, sobre temas diversos. Me ocupo cada vez mais com filosofia, cultura e história e menos com política e economia.

O cérebro que se vire. Os janeiros passam...

Santo Agostinho dizia que “o tempo era a imagem móvel da eternidade imóvel.” Nunca entendi.

O tempo medieval era circular e divino. Se o tempo não teve começo e nem terá fim, ele só pode ser circular. Bem pensado. Deus (Chronos) é o senhor do tempo.

O eterno retorno de Nietzsche é uma fabulosa mentira poética.

A física complicou: tempo e espaço são partes de uma mesma unidade, estão relacionados. O tempo é ligado ao espaço. Também nunca entendi.

Na poesia de Baudelaire, o tempo é o inimigo vigilante e funesto...

O nosso cérebro não alcança os conceitos de infinito (espaço) e eterno (tempo). Por isso, recorremos a metafísica e a matemática. A primeira oferece a fé. A matemática, uma criação humana, nos oferece as equações.

Nos restou uma desilusão: o nosso tempo é finito e eu não somos Matusalém. Isso eu entendi. Não adianta procrastinar, dar tempo ao tempo, ele passa do mesmo jeito.

Então, o que fazer com o tempo transitório que nos foi concedido? Cada um, tem a sua resposta. Eu gastei o meu tempo com essas divagações e quem leu, gastou o tempo lendo.

O certo, como dizia Mario Quintana: “é que não se deixe de fazer algo de que gosta, devido à falta de tempo.”

Antonio Samarone (médico sanitarista)

PEREGRINAÇÃO CULTURAL

 Peregrinação Cultural.
(por Antonio Samarone)

As peregrinações são buscas por liberdade. O desejo de se levar a vida sem coerções externas imediatas. O belo é sempre oculto. Interior. Não me interessa o belo liso da Internet.

Bela são as coisas não dominadas pela necessidade e pelo cálculo. O belo não se confunde com o estético. Não existe beleza sem narrativas, sem afetos e sem contemplação.

Já faz tempo!

Criamos um grupo de peregrinos laicos (Expedição Serigy), para penetramos no Sergipe profundo. As suas grotas e a sua gente. Começamos pela Serra da Guia e pernoitamos na casa de Dona Zefa.

A Expedição Serigy tinha propósitos: Deixe-me ir, Preciso andar, Vou por aí a procurar... Peregrinação não é turismo de baixo custo, é uma busca de felicidade.

Voltando a Cartola: “Quero assistir ao sol nascer/ Ver as águas dos rios correr/ Ouvir os pássaros cantar/ Eu quero nascer/ Quero viver.”

Pé nas trilhas. Fomos à Serra das Araras, grotões da Ribeira, pantanal de Pacatuba, Capunga, Bom Sucesso, Curralinho, Angico, Saramém, Matas do Crasto, Junco, Curituba, Miaba, Saco Torto, Palmeiras, Bom Jardim, Brejão, Zanguê, Santa Rosa do Ermírio, Tribo dos Xocós, Lagoa Redonda e Ilha do Ouro. Entre outros.

Em seguida, estendemos o alcance das trilhas para fora das fronteiras sergipanas. Fomos a Canudos, Juazeiro do padre Cícero, Serra Talhada, Exu, Uauá, Raso da Catarina, Angico, Riacho do Navio, Ilha de São Pedro, Paulo Afonso, Serra Negra, Xingó e Ilha do Ferro.

Faltou Quixeramobim, onde nasceu o Profeta Antônio Vicente Mendes Maciel. Na cultura, peregrinação se chama trilha. Fizemos várias.

Daqui a pouco, com ou sem chuva, a Expedição Serigy vai tomar um café Itabaianense no Solar do São José. Um pequeno sítio, onde eu plantei capim guiné para boi abanar rabo (ao contrário de Raul). Boi, gente, sapos, gatos e sapatos, quem não tiver rabo preso e que ainda possa abaná-lo.

Estou só esperando o sol nascer. E ele nunca falha.

Vou propor um retorno ao Juazeiro do Norte. Uma despedida. Nada tenho a pedir ao Padim, é só agradecer. Na primeira vez ele me curou de um esporão, que a medicina não sabe o que fazer.

Hoje, controlo a diabetes com insulina no bucho. A porra do açúcar quer destruir tudo.

Vamos quebrar a dieta, comemorar a Expedição Serigy. Mandei trazer tutano de Zebu capado, do Saco do Ribeiro, para misturar com o cuscuz.

A Expedição Serigy não morrerá sem bilhetes, sem foguetes, sem narrativas e nem sem emoções.

Teremos ovos de capoeira legítimos, vindos do Carira. E muita conversa. Os peregrinos são conversadores. Desconfiamos dos calados e dos sonsos.

Com um certo pedantismo acadêmico, seguirei o conselho do Fausto de Goethe: “Agarra-te ao que ainda te sobrou/ Não vás lagar do Divino/ Já, Demônios/ estiram sôfregos as pontas para/ Levá-lo ao mundo inferior.”

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

O QUE RESTOU DAS AMIZADES


 O que restou das amizades.
(por Antonio Samarone)

No Leviatã, Thomas Hobbes defendeu que nos primórdios, os homens viviam em um estado de guerra permanente, de todos contra todos. O homem é o lobo do homem.

Discordo do filosofo inglês!

Desconheço a história da amizade, não sei quem inventou e nem onde? Não falo dos seguidores do Facebook, das amizades virtuais.

Não! Falo dos amigos de carne e osso. Todos cheios de defeitos, não são anjos, mas permitem momentos do que se chama felicidade. Falo da beleza da relação humana.

Encontrar um magote de amigos é um retorno a Caverna de Platão. Um mundo de afetos e sonhos. Todos querendo falar ao mesmo tempo, contar as suas histórias, novas ou antigas. Um profunda troca de gentilezas.

Ainda acho que nascemos bons, como acreditava Rousseau.

O rega bofe de ontem era uma despedida da Expedição Serigy. Um último encontro. Tudo com música ao vivo, com a orquestra da família, Felipe no Violino e Valério no Violão. E o maestro.

A realidade apontou outros rumos. Simulamos uma pequena trilha. Muitos ficaram inseguros, mas fizemos uma caminhada ao Rio Santa Maria.

Muita gente nunca ouviu falar no Rio Santa Maria, no Aracaju.
Visitamos a sua famosa curva. Sentimos os odores do mangue, o vento fresco, o silencio dos aratus, das ostras, dos sururus, dos mariscos e dos massunins.

Os maruins se recolheram, em respeito a Expedição Serigy. Voltamos aos bons dias, pelo menos na memória.

Logo percebemos a estupidez da despedida. Por que deveríamos pôr fim a Expedição?

Claro, a idade chegou e o corpo esmoreceu. A Pandemia acelerou muita coisa. Não podemos mais subir as serras, cruzar os rios, singrar os vales ou embrenharmos nas matas úmidas.

Mas estamos vivos, faremos peregrinações culturais.

Já saímos acertado uma nova missão em Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Exu e Nova Olinda. Vamos pedir a benção do Padim Cícero, visitar Expedito celeiro e buscar as raízes da música nordestina, em Luiz Gonzaga.

Não duvidem, vamos ao Juazeiro do Padre Cícero. Uma romaria de classe média, com conforto e regalia. O acampamento será no Hotel das Fontes, em Barbalha.

Vou aproveitar e pedir ao padre Cícero a cura da minha diabetes, ou, no mínimo, que ele suspenda a minha dieta.

Uma amiga da Expedição, pensa em pedir um rejuvenescimento de dez anos. Não sei se o padre tem esses poderes milagreiros, ninguém nunca pediu.

Não custa tentar!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A PESSOA É PARA O QUE NASCE

 A Pessoa é para o nasce?
(por Antonio Samarone)

Encontrei Cirineu fazendo exames, em uma Clínica famosa do Aracaju. Lembra-se de mim, perguntou ele. Eu não o reconheci de primeira, mas como todo mundo, disse-lhe que lembrava. Ele percebeu a minha dúvida, e facilitou: Eu sou Cirineu.

Claro, Cirineu, um rico empresário, que ocupou o poder político em Sergipe por muito tempo. Nunca fui seu amigo, mas o conhecia. Todos o conhecem em Sergipe?

As pessoas no centro do poder político, incorporam o personagem (a autoridade que representam) com tanta paixão, que podem esquecer quem são. Se essa condição se alonga, ao final, tornam-se seres desossados, deslocados do cotidiano. Cirineu me pareceu um fantasma!

Cirineu está entrando nos 80 anos e o poder começa a abandoná-lo. Perdeu os amigos e, dizem, perdeu até os filhos.

Cirineu me confessou: “confio em minha astúcia e vou enganar a morte! Disse-me com a segurança de quem delira: “a engenharia genética marcha para comandar a vida e colocar a imortalidade na DNA”. Ele não se lembra que a morte é desprovida de vaidade, não cede a encantos.

A medicina, em a sua sabedoria milenar, oferece elementos para essa ilusão e sangra a fortuna de Cirineu. Na velhice, quando a procuramos, a medicina nos aprisiona. Não tem saída: a medicina impõe a sua disciplina, as suas regras e as suas prescrições. O seu modo de vida.

Nas antessalas dos hospitais e clínicas, as pessoas esperam a sua vez tensas, amedrontadas, solitárias, mesmo com um acompanhante ao lado. É um ritual contraditório: de medos e esperanças.

A moça que aparece para chamar o próximo, grita com uma voz estridente, aguda, imperativa: Fulano de tal! Se o impaciente demora, ela repete, com um tom ameaçador: FULANO DE TAL!!!! Como se fosse uma última chance. A sala acompanha silenciosa. O infeliz relaxa, chegou a sua vez.

A medicina de mercado tem pressa, vive da produtividade. Essa moça que grita chamando o próximo, não poderia ter a voz melosa dos avisos de aeroportos. Precisa gritar?

Voltando a Cirineu. Essa aspiração de imortalidade tem história.
Sísifo, o pai de Ulisses, enganou a morte, aprisionando-a em sua corrente.

Ao descobrir a trapaça, Zeus condenou Sísifo a viver eternamente, carregando uma pedra morro acima. Antes do cume, a pedra rolava morro abaixo. Essa tarefa insana, deveria ser repetida eternamente.

É a condição humana! Quando se enfrenta os deuses, eles nos abandonam. E o destino não precisa dar satisfações. Não temos o controle da vida. Freud chocou o mundo científico quando comprovou que a natureza não tem compromisso com a nossa felicidade.

Só podemos avaliar uma vida, ao final. Cirineu, que parecia um bem-sucedido, caminha para um sofrimento insuportável. Ele não foi eleito para receber a graça da morte repentina. “A sorte de acordar morto.”

As pessoas mudam, são construídas com as experiências da vida. Cirineu joga a sua última batalha. Quer derrotar a morte.

As neurociências comprovaram: o cérebro possui uma enorme plasticidade. Se modifica, se rearruma, cria circuitos. É falsa a crença do senso comum de que a pessoa é para o que nasce.

Não, não estou negando a herança genética, apenas relativizando. O que estou dizendo é que não existe uma essência humana prévia, que se herda pronta. Sartre defendia que a essência humana era posterior a sua existência. Só podemos avaliar ao final. Somos o que fazemos na vida.

Cirineu chegou à reta final e é outro homem.

Só sabemos se fomos ou não felizes, ao final da existência. A tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, é esclarecedora. O destino do todo poderoso Rei Édipo é exemplar. No final, são tantos os contratempos, que ele se suicida. Cego, banido, desamparado e odiado.

Cirineu não é Édipo, mas está sendo empurrado para o mesmo fim, com uma mudança: ao invés de odiado, foi esquecido.

Eu pensei comigo mesmo, se Deus não existe, a vida é uma farsa.

Antonio Samarone - médico sanitarista.

LOUCOS DE TODO O GÊNERO


 Loucos de todo o gênero.
(por Antonio Samarone)

Jesus percorria a Galileia. “Lhe traziam os que eram acometidos de doenças diversas e atormentados por enfermidades, bem como os endemoninhados, lunáticos e paralíticos.” Mat. 4:23-5.

A loucura é anterior ao Homo sapiens. Foram encontrados sinais, no homem de Neandertal. A medicina também é anterior ao Sapiens. Fósseis com o fêmur remendado, são sinais de cuidados com os ferimentos dos outros.

Nenhum animal resiste a uma perna quebrada. Ele morre! Ou por não conseguir chegar a uma fonte de água, ou por tornar-se presa fácil para os predadores.

A psicopatologia existe desde que os hominídeos desenvolveram o lobo frontal do cérebro, a fonte dos sofrimentos. O medo da morte é antigo.

Voltando aos loucos.

O Código Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 5º, definia como incapazes, entre outros, “os loucos de todo o gênero”.

Quem eram os esses loucos? Os doidos, malucos, lunáticos, insanos, lelés, lesos, aluados, idiotas, ruins da bola, maníacos, dementes, tresloucados, psicopatas, psicóticos, destrambelhados, pinel, birutas, alienados, retardados, abilolados ou maníacos. A denominação era diversa.

As sociedades agrícolas simpatizavam com os seus doidos. A minha mãe tinha uma profunda compaixão por eles: “não existem doidos no inferno, todos se salvam, dizia ela.” Eu enxergava nisso um grande atrativo: ser livre do fogo eterno.

Sempre gostei dos doidos!

As sociedades rurais conviviam com os seus doidos, mesmo sem trabalhar, improdutivos. Desde que eles não ameacem a segurança.

Todas as comunidades possuíam os seus insanos. Zé Doidinho, em Itabaiana, era estimado por todos.

O capitalismo nunca precisou dos improdutivos. A incapacidade para o trabalho era inaceitável, passível de punição. A vadiagem era crime. A saída foi trancafiá-los em grandes manicômios.

A sociedade pôs moderna precisa dos neuróticos, mas teme os psicóticos.

Quem são hoje esses loucos, na pós-modernidade, para a psiquiatria? As doenças mentais não possuem materialidade. São doenças definidas pela palavra.

De forma genérica, temos três grupos:

Os psicóticos que deliram e alucinam. Doentes graves. Os remédios reduzem as alucinações e os delírios, contudo, não ajudam na ressocialização. Esses pacientes causam medo a sociedade..

A esquizofrenia, quando acompanhada da pobreza, causa grande sofrimento. É num problema social.

“Alucinações e delírios são vivencias distorcidas, que envolvem todas as funções psíquicas – percepção, representação, juízo crítico, volição, afetividade e memória. Nada fica de fora.” – Ali Ramadam.

O fanatismo e o delírio são irmãos. O negacionista acredita, sem reservas, em um sistema de ideias, ancorado apenas em sua cosmovisão. Não admitem contestação. O fanático é obcecado por suas ideias. O delirante é um fanático em seu modo de pensar.

Existe um segundo grupo: os grandes deprimidos. Tolerados, desde que continuem produtivos. A sociedade os vê com grande desconfiança. Muitas vezes subestimam o seu sofrimento. Desconfiam. Suspeitam de simulação.

Os remédios são muitas vezes eficazes contra os sintomas. Os fármacos, além dos efeitos colaterais, causam dependência. Nesse grupo, é elevada a prevalência dos burnouts e dos suicidas.

E um terceiro grupo, o mais numeroso, dos que padecem de sofrimento mental leve. Angústia, sofrimento existencial. Precisam de ajuda para levarem a vida.

São pessoas atormentadas, que não toleram o sofrimento. Enxergam a felicidade como um direito, mesmo quando a natureza nunca os tenha prometido.

O mal-estar, estudado por Freud, foi medicalizado. Uma saída química, prevista por ele.

A Sociedade do Cansaço, no dizer de Chul-Han, criou uma legião de atormentados, que a psiquiatria ateórica americana chama de transtornos. Criaram mais de mil categorias diagnósticas, numa fragmentação absurda, bem ocupada pela indústria farmacêutica.

Os fármacos são da mesma família dos venenos e dos tóxicos.

As drogas psiquiátricas são eficazes na redução ou eliminação passageira da ansiedade e do mal-estar. Com um detalhe, os fármacos também são eficazes em pessoas sem queixas de sofrimento mental.

Os normais se tornam mais normais, com o doping. Mais competitivos, com o raciocínio mais rápido e com a memória estendida.

Os novos medicamentos psiquiátricos reduziram os efeitos colaterais e a dependência. Podem ser usados, sem que os usuários demonstrem qualquer alteração visível.

Em breve, os editais dos concursos vão exigir teste anti-doping.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

domingo, 2 de julho de 2023

O ALZHEIMER SOCIAL

 O Alzheimer social.
(por Antonio Samarone)

Ninguém sabe onde a velhice o leva!

Após a aposentadoria, como chefe de gabinete parlamentar, solteiro, morando só, numa casa de Cohab no subúrbio do Aracaju, Rosivaldo (76 anos), optou pelo isolamento. A família e os amigos, naturalmente indiferentes, nem perceberam.

Rosivaldo optou pela absoluta indiferença social. Chegaram a comentar que ele apresentava sinais de Alzheimer, onde, era apenas uma mudança voluntária de comportamento.

O isolamento aprofunda a solidão. Sempre calado, nos poucos lugares que ainda frequentava. O silencio é um recurso eficaz, evita aborrecimentos.

Rosivaldo, que viveu na mais profunda rotina. Sem sonhos, ambições, ilusões, projetos, metas ou missões. Um personagem alheio ao narcisismo. Ele não aspirava a felicidade dos eleitos. Nada desejava: praticava um forma primária de budismo.

Rosivaldo não via mais graça na vida, estava enfadado, mas não queria morrer. Tinha medo. Como dizia Baudelaire: “medo de um grande buraco negro, levando-nos para as frias profundezas cósmicas.” Onde vaga-se ao Léu, sem ponto de chegada ou de descanso.

O inferno de “Dantes” é quase um céu.

Quando finda a gravidade e a matéria, os espíritos rodopiam em alta velocidade. A consciência nas trevas, perde a memória e a esperança. Rosivaldo temia a morte, mesmo levando uma vida virtual.

Chega-se ao ponto que não se quer mais prolongar a vida e nem morrer, o jeito é conceder-se férias e afastar-se da vida. Ao invés de morrer, se desaparece.

A morte de Rosivaldo, a semana passada, foi mera formalidade. Durante o longo internamento, as notícias sempre vinham acompanhadas do “não tem mais jeito”. Ele foi desenganado pelos amigos, bem antes do tempo.

Rosivaldo já estava morto, faltava-lhe apenas o sepultamento. E assim foi feito. Os amigos, fizeram do velório uma forma de reencontro dos que ainda permanecem vivos. Muitos, apenas olharam o caixão aberto, sem a tampa, só para confirmar se o cadáver era mesmo o dele. Sem o menor sinal de sentimento.

Em volta do morto, um senhor pregava em voz alta, passagens soltas do evangelho. Não conseguir identificar de quem se tratava, não parecia ser membro de nenhuma Congregação religiosa. Soube, que era um frequentador habitual daquele espaço, onde rezava, gratuitamente, por qualquer defunto. Sempre levando um consolo aos que ficavam: a vida não acabava ali.

Alguns fingiam que acreditavam e outros acreditavam mesmo. Aliás, não se perde nada acreditando.

Nas rodas dos conhecidos que infestaram o velório, se falava de tudo, menos do morto. Muito menos da morte. E assim, mesmo a contragosto, a minha geração vai passando dessa para uma melhor.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

A FÉ EM ANTONIO

 A Fé em Antonio.
(por Antonio Samarone)

A missa foi o principal ato público, na fundação do Brasil. Somos a Terra da Santa Cruz. O que houve? A fé católica desabou. Somente 8% dos que se dizem católicos, frequentam a missa regularmente.

Constatei essa verdade nas Trezenas de Santo Antonio, em Itabaiana. A Igreja vazia. Meia dúzia de devotos. Raríssimos jovens. Um prenuncio de um amanhã mais difícil.

Desconheço as causas.

Tenho lido várias explicações, todas superficiais. De lamentações morais a prenúncios apocalípticos, do fim da transcendência a teologia da prosperidade. São análises interessadas, adaptadas a ideologia dos analistas.

Nem um Papa Santo, ou quase Santo, como Francisco, foi suficiente para sustar a queda do catolicismo no Brasil.

Um paradoxo: essa mesma gente de coração vazio, enche as ruas nas procissões. Hoje, 13 de junho, multidões acompanharão o andor de Santo Antonio. Na verdade, não existe mais andor, o Santo vai num carro alegórico, enfeitado por Val Decorador.

Aliás, um carro arrumado com bom gosto e estilo por um artista plástico. Val Decorador é um gênio da criatividade. O Santo demonstra a seu contentamento, com um leve sorriso. Prestem a atenção.

Também não sei explicar as motivações de tanta gente nas procissões.

Sinto, que mesmo a fé em Antonio está ameaçada. A Irmã Dulce dos Pobres, que fez o seu primeiro milagre em Itabaiana, avança velozmente sobre as devoções. O pão dos pobres de Santo Antonio está sendo substituído por obras assistências mais abrangentes.

Não sei se ainda existem as “Santas Missões”, onde Frades barbudos pregavam o fim do mundo e as ameaças do fogo eterno. Era um alerta aos hereges. Frei Damião de Bozzano foi o último a pregar o Paraíso só para os justos.

Hoje, somos perdoados antecipadamente de qualquer vilania. Foi o fim do arrependimento, do remorso e do peso na consciência.

Perdeu-se o medo!

O fogo do Inferno esfriou e o Paraíso abriu as portas para todos.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

MORREU DJALMA LOBO


 Morreu Djalma Lobo.
(por Antonio Samarone)

A geração anterior está indo embora!

Djalma Lobo foi um protagonista da Aldeia serrana. Fez de tudo, até política. Ainda menino, andava com um carro de som, incomodando os coronéis e a capangada, pelas ruas da Villa.

A velhice me impôs uma nova rotina: comparecer a velórios e sepultamentos. Diariamente, um amigo se despede. Às vezes, mais de um. A frequência aumentou a minha convicção: não tem jeito, parece que eu também estou nessa fila!

Djalma Lobo foi um mestre do Rádio. A Princesa da Serra, criada por Zé Queiroz, foi uma tribuna que fez história. Essa história ainda precisa ser contada.

Djalma Lobo e Zé Queiroz fundaram um grupo político, que teve o seu tempo, e mudaram a trajetória da vida política em Itabaiana.

Entretanto, a minha melhor lembrança de Djalma Lobo não é nem política, nem do rádio. É a sua prosa fácil e engraçada, a sua maneira de enxergar as peripécias dos ceboleiros. Um cronista do prosaico, do dia a dia, da rotina dos anônimos, dos pequenos e esquecidos.

Djalma Lobo enfrentava as suas próprias fragilidades com bom humor. Quem participou de uma roda de conversas com Djalma não esquece. Ele sempre tinha um contraponto, uma versão curiosa, irônica e inteligente.

Djalma Lobo sintetizava uma cultura que está acabando. Uma visão de mundo cheia de verdades fantasiosas e profundas, das raízes da doce Villa de Santo Antonio e Almas.

Sem escrever, oralmente, Djalma Lobo foi o Gabriel Garcia Marques da Villa de Itabaiana.

Djalma, você fará falta!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

PÉ DE SERRA

 Pé de Serra...
(por Antonio Samarone)

Acabei de ler uma tese sobre o forró, do doutor Thiago Paulino. A academia debruçada sobre a arte popular. A arte dos excluídos. O pesquisador divide forró em eletrônico, universitário e pé de serra.

O meu interesse restringe-se ao último.

Acho que o “eletrônico” e o “universitário” aproveitam-se do título forró, como marketing. Forró é o pé de serra. Pronto! Eu sei, é um achismo questionável. Fiquem à vontade.

O forró pé de serra é exemplo raro de resistência bem-sucedida a indústria cultural. Enfrentando boicotes sistemáticos. O exemplo recente de Flávio José, sendo discriminado em Campina Grande, é ilustrativo. Estou falando de um ícone do forró.

Aprendi com a tese de Paulino, que virou livro, que a composição do trio do forró pé de serra (sanfona, zabumba e triangulo) não foi criação de Gonzaga. Já existia em Portugal antigo, um grupo chamado “chula” (rebeca, bombo e ferrinho). Os estudos acadêmicos trazem essas novidades.

O doutor Paulino inspira-se em Nobert Elias, um médico alemão, para explicar o Barracão de Clemilda. Tirando essas bobagens, o livro é bom.

Não é culpa dele, a Academia exige uma referencia teórica, mesmo que se force a barra.

Outro exagero, foi considerar o Arraial do Povo, esse da Orla da Atalaia, um evento diferente do Forró Caju, o do mercado central do Aracaju. Considerando o primeiro de raiz e o segundo de massas.

Acho tudo farinha do mesmo saco. Os dois eventos transformam o povo em plateia. Antes brincava-se o São João, hoje se assiste.

O São João atual é uma festa de largo, onde o Estado, o Poder Político se transforma no organizador, financiador e protagonista. Um uso da cultura como instrumento de legitimação política dos governantes. A visão romana do espetáculo.

Uma dúvida: essa lógica atual de financiamento do Ministério da Cultura (Lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2) aponta em outra direção? Seria um caminho de descentralização democrática? Estou apenas perguntando.

O livro de Paulino é bem fundamentado. Ajuda no entendimento sobre o forró, sobretudo em Aracaju. Sobre o interior, limita-se a família de Aurelino e a Cobra Verde, em São Domingos.

Que o Doutor Paulino se prepare para estudar os desdobramentos para o forró pé de serra, com a criação de uma escola de sanfona, zabumba, triangulo e teoria musical, que está quase pronta, na capital sergipana de cultura.

Doutor Paulino, gostei do seu livro. Escreva mais.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A SENHORA DAS ÚLTIMAS COISAS


 A Senhora das Últimas Coisas...
Por Antonio Samarone

A Morte levou mais um da minha Aldeia. Dessa vez, levou um campeão de 1959: Samuel de Sizinio. A Morte não respeita ninguém, nem os campeões.

Acho que a Morte está exagerando. Perdeu o senso! “E para ti, Ó Morte, vá a nossa alma e a nossa crença, a nossa esperança e a nossa saudação.” Fernando Pessoa

José Samuel de Almeida nasceu em 12 de abril de 1939 (84 anos), na Villa de Santo Antonio e Almas. Foi o primogênito de Sizino de Boanerges e dona Maria Souza de Almeida (irmã de Zé Crispim), gente do Zanguê.

Samuel era cem por cento ceboleiro. Um homem que trabalhava por compulsão. Deixou a advocacia, porque os processos tramitavam lentamente, e ele tinha pressa.

Samuel é de uma família de gente honrada. O seu pai, Sizinio de Boanerges, foi dono de armazém de secos e molhados e fogueteiro. Um empresário bem estabelecido. Foi Prefeito de Itabaiana e saiu pobre. Foi viver de uma bodega aqui em Aracaju, na esquina das ruas Itabaiana e Maruim.

Samuel de Sizinio, irmão de Nandinho e Suzana, e mais uma legião de gente. As famílias eram grandes. Samuel foi casado com Dona Marly Mendonça.

Uma lembrança: Suzana e Marly foram minhas professoras, e das boas. Eu sou do tempo que as lembranças das professoras ficavam. O que eu sei de geografia, aprendi com Dona Marly.

Samuel deixou 4 filhos (Eduardo, Ana Paula, Ana Karla e Ricardo) e 6 netos (Raíssa, Igor, André, Ana Luíza, Beatriz e Pedro).

Em menos de oito dias, enterrei Mãe Gorda, Djalma Lobo e Evandro Sena, e agora Samuel de Sizinio. Fora Jaci de Joãozinho Retratista, que só soube depois.

Gente, alguém tem que tomar providências! A Morte está abusando, só ela é absoluta.

Eu queria ter a fé do Padre Peixoto e acreditar na ressurreição.

Mesmo a ideia de Deus sendo improvável, é mais difícil acreditar na tese da biologia, onde o homem é fruto do acaso evolutivo.

Na verdade, não alcanço o mistério da vida consciente.

Missão cumprida, Samuel de Sizinio!

O sepultamento será as 16 horas, na Colina da Saudade.

Antonio Samarone. (médico Sanitarista)

O GATO GRIS

 O Gato Gris.
(por Antonio Samarone)

Os bichos se humanizaram, dormem na cama e possuem sobrenomes, sobretudo os cães e os gatos. Acho, que se a evolução darwinista estiver certa, em muito breve, eles começarão a falar.

Em meu condomínio, essa humanização dos bichos é seletiva. Ama-se cães e gatos e odeia-se os pombos.

Temos um gato vadio, sem dono: o gato cinza!

O belo gato cinza está morrendo. O gato cinza, na verdade não é cinza, não é preto, nem azul. A sua cor não existe nas caixas de lápis de cores. A sua cor metia medo e o seu miado era assustador. Ele possui uma cabeça imponente e um olhar feroz, cheio de brilho.

O gato cinza não tem dono (perdão, tutor).

Depois que Marieta se mudou, o gato cinza ficou órfão, sem ter onde comer. Marieta era a tutora de gatos persas, daqueles peludos lindos. O que sobrava dos banquetes dos seus felinos, ia para o gato cinza.

Acho que a desnutrição e a velhice, mudaram a índole do gato cinza. Ele está com claros sinais de maus tratos e uma forte alopecia.

Em minha insônia produtiva, hoje pela madrugada, ouvi o miado do gato cinza. Acho que ele sabe da minha amizade com Marieta. Um miado humilde, choroso, pedindo um lugar para morrer. Os gatos, como as pessoas, morrem só.

Abri a porta e me aproximei. Botei ração fresca e tratei-o como gente. Não sei o seu nome, se é que tem nome. Chamei-o de xaninho, um apelido genérico. Tentei convencê-lo a não desistir da vida.

O gato cinza fez uma cara de tristeza e expressou: Chega, o sofrimento não faz sentido. Chegou a minha hora. Acho que a morte também não é o fim para os gatos. Se houver reencarnação, só não quero voltar pombo.

Eu, cá comigo, nem eu.

Os gatos aqui de casa são comuns, não reclamam, acham a vida boa, só com casa, comida, atenção e carinho. Eles foram solidários com o gato cinza.

O gato cinza não tem onde morrer. Talvez, ainda esteja vivo só por isso.

Me senti impotente. Se ele quisesse viver eu sabia como ajudá-lo. Mas, morrer, eu não sei. Não lido bem com a morte.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A DANÇA

 A Dança...
(Por Antonio Samarone)

O que é essa febre, que se apossa da criatura levando-a ao frenesi? A dança é uma manifestação do instinto da vida, da mais pura energia vital.

“O Grupo Luar do São João, do Piauí, venceu o concurso regional de quadrilhas, da Rede Globo, com um enredo sobre a Santa Dulce. A fé na Santa está em alta. A quadrilha representante de Sergipe, a Século XX, não foi premiada.”

Postei a informação acima no Tweet, visando chamar a atenção para a popularização da fé em Santa Dulce. Mas as reações foram outras. Criticaram as atuais quadrilhas juninas.

As pessoas reagiram criticando as mudanças no estilo das quadrilhas juninas: "acabou-se a tradição", "as quadrilhas não são mais as mesma, viraram escola de samba", "já possuem até enredo". Choveram críticas, algumas enfurecidas.

Não existem mais quadrilhas como antigamente, dizem os saudosistas.

Fiquei inconformado. Sim, mas como eram as quadrilhas antigamente? Uma dança de salão bem-comportada, marcada em francês (anavantú, anarriê), e que tentava ridicularizar os tabaréus, com as suas vestes remendadas e o passo troncho.

A dança é uma celebração. O que celebravam as quadrilhas afrancesadas?

A dança é uma linguagem além da palavra. O Rei Davi dançou diante da Arca.

A dança é provação, prece, teatro, rituais e terapêutica. Os Xamãs ascendem ao mundo do espírito pela dança.

Na tradição chinesa, a dança permite organizar o mundo, pacifica os animais selvagens e estabelece uma harmonia entre o céu e a terra.

A quadrilha afrancesada não era nada disso. Nada expressava! Era uma imitação simplificada das danças da Coorte francesa. Essa tradição não nos pertence!

Na concepção de Câmara Cascudo, a quadrilha era a grande dança palaciana do século XIX, que abria os bailes das Cortes europeias. Na época do Império, foi sucesso no Rio de Janeiro. No último baile solene do Paço (1852), dançaram vinte quadrilhas.

A quadrilha foi trazida para o Brasil pelos mestres das orquestras de dança francesa, como Milliet e Cavalier, que tocavam as músicas de Musard, o pai das quadrilhas.

A quadrilha se popularizou depois no Brasil, como uma dança caipira.

A quadrilha junina atual, essa que passa na Globo, se modificou. Se transformou num bailado popular. Incorporou a música nordestina. As roupas ganharam brilho e beleza. A dança virou uma coreografia centrada no xaxado e no arrasta pé. E agora, tem até enredo. Celebram a vida, a liberdade e a força da cultura popular.

Por que vocês estão criticando e pedindo o retorno da quadrilha afrancesada? Gente, o que se chamava antes de “quadrilha” era uma imitação, uma veleidade aristocrática.

As quadrilhas juninas, ainda bem, só herdaram da dança francesa, o nome e os pares. Uma herança que pouco acrescenta.

As quadrilhas juninas de hoje, são formas dramáticas de expressão cultural, onde o corpo rompe os limites em busca de liberdade e da harmonia. Um baile perfumado.

Viva os bailados nordestinos (quadrilhas), herdeiras da nossa melhor tradição. Em especial, viva a “Balança mais não cai”, tradição do Beco Novo.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A ALMA BRASILEIRA

 A alma brasileira...
(por Antonio Samarone)

“Mas de repente, me acordei com uma surpresa/ Uma esquadra portuguesa veio na praia atracar/ Da grande Nau, um branco de barba escura, vestindo uma armadura me apontou para me pegar/ assustado, dei um pulo lá da rede, pressenti a fome e a sede, eu pensei vão me acabar/ me levantei, de borduna já na mão/ eu pensei no coração, o Brasil vai começar.” – Nóbrega.

Na medicina hipocrática, o corpo humano é formado de 4 elementos: terra, água, fogo e ar.

No brasileiro predominam o ar. Somos filhos do ar. Isso vem da descoberta. Chegamos de caravelas, trazidas pelo ar.

Na cosmogonia bíblica, fomos criados com um sopro divino nas narinas de um boneco de barro. O ar é o símbolo da vida, da espiritualização. O ar é a fonte do vento, do bafo e do sopro, é a via de comunicação entre a terra e o céu.

Dos 4 elementos, o ar domina o brasileiro. Quando provocados, pegamos ar, ficamos zangados.

Se diz de duas pessoas parecidas: fulano dar uns ares com beltrano. O olhado é um ar diabólico, o ar da inveja. O seca pimenteira.

A antiga morte de repente, causada pelo acidente vascular cerebral (AVC), o “popular derrame”, se diz que passou o vento.

A malária é o mau ar. O vento pelas costas é um perigo para a saúde. Na Peste da Covid, se entubava pela falta de ar. A Peste matou por afogamento.

Deixamos de acreditar, mas vento mau existe, e continua soprando.

Existe o ar do morto, o ar do vivo, o ar quente, o ar frio, o ar da inchação, ar de ventosidade e o ar de dormência. E muitos outros.
Só o diabo, tem mais força que o ar.

Carregar velas acesas em procissões (foto) é um desafio ao vento. Uma luta entre o fogo e o ar. O homem dominou o fogo. O ar ligeiro é indomável, o vento vira furação.

Dona Gemelice, no Beco Novo, passava o ramo e ordenava: “Eu retiro todos os males, o ar do ribeiro, ar dos salgueiros, ar dos corisqueiros, ar de morto, ar de vivo, ar de vizinho mau e ar de vizinho bom.” Havia evidencias da eficácia da reza.

Dos 4 elementos fundamentais, o ar é único que continua público. Ainda é gratuito.

A alma nem sempre está à venda. “Tudo vale a pena, quando a alma não pequena.” – Pessoa.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

QUE O ALIMENTO SEJA O SEU VENENO

 Que o alimento seja o seu veneno.
(por Antonio Samarone)

São João é festejado como um deus amável e dionísico, com farta alimentação, músicas, danças e bebidas. Dizem que no dia da festa o Santo dorme, para evitar a tentação do clarão das fogueiras e descer do céu.

João era primo de Jesus, nasceu em 24 de junho e morreu degolado no Castelo de Macheros, na Palestina. A sua cabeça foi entregue numa bandeja. Um pedido de Salomé.

A festa que veio de Portugal, foi logo incorporada pelos índios. Fernão Cardim cita as fogueiras nas Aldeias, comemorando São João, já em 1583. Os índios praticavam a coivara. A festa logo caiu no gosto.

As festas juninas acirram um conflito no idoso, entre os limites dos desejos. O banquete é divino, entretanto o corpo não suporta a explosão dos açucares no sangue. O corpo pede, suplica, implora pelos venenos da culinária.

A diabetes canta e dança com a fartura com a farra junina!

A medicina prescreve uma dieta penitencial, proíbe tudo o que se gosta, com a ilusória promessa de redução dos danos. As canjicas, manauês, mingaus e guloseimas afins, são classificadas como venenos, e proibidos.

O mingau de puba com canela é um herança ancestral profunda. Está inscrita no DNA.

Por outro lado, entre os pecados capitais, só nos resta a gula. Condenar a gula em quem passou fome é uma crueldade. Os anos de vacas magras são longos.

Um dilema sem solução: submeter-se as regras da medicina e tornar a vida insossa, ou ceder alegremente a gulodice e submeter-se as consequências.

Sei não! Findo cedendo a lógica que é só um pedacinho e é só hoje. Nunca é um pedacinho.

As pessoas próximas não ajudam. Uns incentivam, por maldade: besteira, pouco não faz mal. Outros, também por maldade, fazem medo: não coma, a sua glicemia já está alta e as sequelas são fatais.

Você é quem sabe, se eximiu por maldade um velho compadre de fogueira.

O pior, até a minha consciência é por maldade dividida. O hemisfério cerebral esquerdo manda comer e o direito aconselha o jejum.

O glutão é ao mesmo tempo morte, vida, alegria e sofrimento.

Para rebater o peso na consciência pela comilança do São João, logo cedo, mandei fazer um cuscuz de milho ralado, com manteiga do sertão e meia dúzia de ovos caipiras, malpassados.

“Se João soubesse/ Quando era o seu dia/ Descia do céu a terra/ Com prazer e alegria.!”

Que venha o São Pedro!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A CONTEMPLAÇÃO É FEITA EM SILENCIO

 A contemplação é feita em silencio.
(Por Antonio Samarone)

A vida quer um pouco mais de calma.

“Para o homem a planta vale pouco, porque quase não tem inteligência; mas para planta é possível que a inteligência seja uma aptidão à desgraça, qualidade inferior e tal que aos olhos dela desmoralize o homem.” – João Ribeiro (sergipano de Laranjeiras)

Resolvemos esse impasse criando a inteligência artificial, mais rápida e precisa, sem dúvidas, vacilos, equívocos e duplicidades. Para a inteligência artificial, pau é pau, pedra é pedra. Não existem meias verdades.

A razão centrada na inteligência humana, que, segundo Kant, produziria uma Paz Perpetua, foi derrotada. Tornou-se inútil!

O big-data é soberano. Um novo anjo da guarda! É a iluminação digital da alma.

A inteligência artificial vive de dados. Se mede tudo. Instalei um sensor que acompanha a minha glicemia on-line, em tempo real. Uma bomba de insulina libera o hormônio automaticamente. Pago pelo consumo, descontado em minha conta corrente.

Eu sei, haverá um crescimento da produtividade, do consumo e dos lucros. O mundo vai rodar mais rápido. Ocorre, que essa pressa não me interessa. Como diz o poeta: “Quando o tempo acelera e pede pressa, eu me reuso, faço hora e vou na valsa”.

Essa conversa de auto empreendedor, produz indivíduos esgotados, deprimidos, isolados. O burnout é a doença do desempenho. Tempo pode ser até dinheiro, mas o dinheiro não é tempo.

“O neoliberalismo moldou o trabalhador oprimido em um empreendedor livre, um empreendedor de si mesmo. Cada um é hoje auto explorado do seu próprio empreendimento. Cada um é senhor e escravo na mesma pessoa.” Chul Han.

O dinheiro surgiu como meio para se comprar animais para o sacrifício, para se exercer o direito de matar. O dinheiro acumulado fornece ao seu proprietário o status de predador, confere-lhe a ilusão da imortalidade.

Os milionários que embarcaram para visitar o Titanic nas profundezas oceânicas, se achavam imortais. O pacto com o capitalismo é uma forma de pacto com o diabo.

“Por falta de sossego, a nossa civilização desemboca em uma nova barbárie” – Nietzsche.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A NOSTALGIA DA TERRA

 A Nostalgia da Terra.
(por Antonio Samarone)

“Do nada tudo surgiu, e ao nada tudo volta. O nada é o começo e o fim de tudo.” – Siddhārtha Gautama.

Para afastar o tédio decorrente do confinamento pandêmico, “plantei um sítio no Sertão de Piritiba. Peguei na enxada como pega um catingueiro, fiz aceiro, botei fogo, venha vê como é que está.”

Me aproximei da terra. O primeiro sentimento foi que a terra é uma criação divina. Essa tese de “big-bang” é conversa fiada. Tenho evidencias metafísicas que o meu sítio é parte do Jardim de Éden.

A terra é um organismo vivo e belo, reage as agressões. A terra precisa ser venerada, não aceita a destruição.

O meu sítio é aqui mesmo, na Curva do Rio Santa Maria, comunidade de São José dos Náufragos do Aracaju. O inverno reforçou a vida, a terra está viçosa. O sítio é rico em materialidade e me afasta do mundo digital.

O meu sítio tem flores azuis, mesmo no inverno. Segundo Goethe, o azul tem, em oposição ao amarelo e ao vermelho, algo de obscuro. O azul descansa o olhar, desperta a nostalgia.

O tempo no sítio é mais lento, assume o ritmo das formigas cortadeiras, das saúvas, e das arapuás. “Ouricuri madurou é sinal de que arapuá já fez mel” – João Vale.

Cada planta tem o seu próprio tempo, alimenta a paciência. A minha pressa é inútil.

A terra possui seus aromas e cores.

A digitalização, o bigdata e a inteligência artificial desromantizaram o mundo. Nos resta restituir os mistérios, o sagrado, o sublime e o belo da terra. Uma virada metafísica. A terra é o lugar da redenção e da bem-aventurança.

“As plantas e os animais são o que nós fomos. Fomos natureza como eles, e nossa cultura deve nos levar de volta à natureza, pelo caminho da razão e da liberdade.” Schiller.

Em meu sítio passei a chamar as plantas pelo nome. Identificá-las, respeitando as diferenças. Elas não gostam de ser chamadas genericamente de arvores, plantas, pé de pau. Tratá-las pessoalmente é um primeiro passo.

Vou começar a trazer os animais para o sítio. Por enquanto, só gatos, cagados, cobras sem veneno, sapos cururu, piolho de cobra, lacraias, abelhas, insetos, peixes de aquário e pirilampos.

Vou ao Carira buscar galinhas de capoeira, isso, aquelas antigas, sem carne na titela e que cantam fazendo: kel, kel, kel. Essas galinhas primitivas não pegam gôgo. Eu sei, tem galinhas maiores, mais vistosas e mais poedeiras, mas eu quero as antigas.

Só os galos de capoeiras cantam na hora certa, reconhecem o ciclo da vida. O meu vizinho cria esses galos modificados geneticamente e eles cantam a qualquer hora, não tecem as manhãs.

Esqueci dos passarinhos, do anu-branco, pica pau e das aves de rapina. Bem, eles não vivem lá, só passeiam.

Estou pensando em construir a minha biblioteca no sítio e, como na canção de Elis Regina, plantar os meus livros. Não confio em livros eletrônicos.

Voltei a terra, para ficar e, quem sabe, garantir os meus sete palmos.

Esse escrito é inspirado na leitura do texto “louvor à terra”, de Chul Han.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

O QUE DISSE O CENSO DO IBGE?

 O que disse o Censo do IBGE?
(por Antonio Samarone)

Um fato relevante: o crescimento populacional está em declínio no Brasil, com as suas consequências: o envelhecimento avança e a proporção das pessoas economicamente produtivas diminui.

A crise japonesa, onde 1/3 da população tem mais de 65 anos, se aproxima do Brasil. Com um diferença, eles envelheceram ricos e nós estamos envelhecendo pobres.

A taxa de fertilidade no Brasil é de 1,65 filhos, por mulher em idade fértil. A taxa de fertilidade abaixo de 2,1, não repõe a população. No Brasil estamos com 1,65.

Na década de 1970, o debate era sobre a ameaça da explosão demográfica. O Brasil chegaria a 350 milhões de habitantes e a pobreza ia aumentar. Urgia o controle da natalidade.

Uma das justificativas para a construção da Transamazônica foi essa explosão. Era preciso criar espaços, para essa gente que iria nascer.

Em Sergipe, o Secretário da Saúde, Dr. José Machado de Souza, não aceitou a política de controle da natalidade. Não adiantou! Mudaram o nome para planejamento familiar, e uma epidemia de laqueadura de trompas foi executada.

Em 1940, a família média no Brasil possuía 6,6 filhos. Hoje, temos famílias de filho único, no máximo dois. É o modelo familiar das novelas da Globo.

A minha mãe teve 16 filhos, 9 irmãos sobreviveram. Os outros foram entregues a mortalidade infantil e viraram anjinhos. Eu tenho um filho. As famílias de filho único marcham para as famílias pet. Famílias com zero filho e um magote de gatos e cachorros.

Foi um erro de avaliação absurda. Se sabe que o Brasil chegará ao pico populacional com 250 milhões. Os estudos demográficos apontam que em 2100, o Brasil terá uma população de 190 milhões de habitantes.

Entenderam? Não houve explosão demográfica, pelo contrário, marchamos para o declínio populacional.

Vamos precisar dar meia volta. A implosão demográfica e o envelhecimento, apontam para a necessidade de estimularmos os nascimento.

Mesmo nessa visão convencional, implicaria em políticas sociais: retorno dos pré-natais, aumento de creches, escola em tempo integral, licença e incentivo a maternidade.

Outros defendem: nada disso, as novas tecnologias, a automação, a inteligência artificial, a internet das coisas prescindir da oferta de mão de obra.

De qualquer jeito, legiões de velhinhos precisarão de cuidados e qualidade de vida.

As famílias deixaram de ser esse refúgio. Iremos envelhecer sozinhos. Iremos perder a autonomia sozinhos. Quem pode, contratará uma multidão de cuidadoras. E a maioria, que não pode, morrerá à míngua.

Sempre se morreu só. A novidade é o envelhecimento na solidão compulsória. A solidão dos moribundos.

Entregar os velhos apenas aos cuidados médicos é um desastre humanitário e uma inviabilidade econômica. O hospital voltou a ser o abrigo para quem não tem onde cair morto.

Quem pagará essa conta?

O Estado neoliberal, voltado para o controle dos gastos? Os Planos de Saúde (capital financeiro), que vivem de lucros: aumento das receitas e redução das despesa. Nunca foram planos de saúde. São planos precários de socorro aos doentes.

A principal mensagem do Censo de 2022 foi a confirmação de que o envelhecimento da população é inevitável. Não poderemos continuar fingindo que não é com a gente e que é uma realidade distante.

Os cuidados dos velhos entregues as famílias, aos asilos filantrópicos ou as clínicas de repouso não respondem ao direito de envelhecermos com qualidade de vida.

Antonio Samarone (médico sanitarista)