A MORTE DO COVEIRO– Ranulpho Prata
Em 1920 era dono e senhor do engenho... no norte
sergipano, o cavalheiro Tibúrcio Alvares Pascoal, rebento ilustre do nobre cepo
dos Alvares, limpa gente que a sacarose afidalgara, vertendo-lhe nas veias não
o sangue azul das raças do além, mas as flavas torrentes do ouro líquido.
Excelente fidalguia a que dá o dinheiro! Não há nenhuma
outra que a ela se avantaje ou lhe ganhe a primazia; nem a do nascimento, nem a
do caráter, nem a do saber.
Justificado é, pois, e sobejamente, que se lhe anteponha
ao nome o honorífico “dom”, conforme mandava o velho uso português. Servir-lhe-á
até o nobre título para evitar uma provável confusão entre o seu lustroso
apelido e outros Tibúrcios plebeus que, por ventura, tivesse mourejado naquelas
paragens açucareiras.
Merece D. Tibúrcio uma biografia esclarecida e um tanto
ou quanto minuciosa.
Vamos busca-lo nos braços da parteira, numa noite
borrascosa do ano de 1880, a dar pinotes e guinchos com um vigor precoce de uma
criança taluda. D. Timóteo, o seu venerabundo progenitor, alagado das mirificas
venturas paternais, andava pela casa toda a dar sopros jubilosos, enviando
portadores, com a feliz nova, a todos os engenhos, que ostentassem nas cancelas
os brasões dos Alvares. Natural alegria era aquela: era o filho varão do casal.
O rompimento prematuro dos dentes provocou entre as
pessoas da família profecias várias. Futurou-se muita coisa boa: que havia de
ser um grande político; o usineiro mais rico da região; famoso homem de letras.
Este último bacorejo caiu dos lábios de um tio, usineiro amante dos livros, que
escrevia charadas nos jornais de Aracaju.
Infância sadia como aquela poucas se têm conhecido. Não
foi atacado o repolhudo menino nem de sarampo, nem de lombrigas e quejandas
coisas. Era de uma rigidez de amago de aroeira.
Aos dez anos surpreendeu o pai a dar tapas e morder uma
negrinha da casa, que rejeitava as suas carícias de voluptuoso precoce. Fez que
não viu e foi andando, dizendo entre si, com disfarçado sorriso:
- Filho de peixe, peixinho é...
Não havia que negar, aquele era seu filho, ali estava no
sangue a prova evidente de quem descendia do cepo dos Alvares.
Vinha de longe a herança. Seu ilustre pai, avô de
Tiburcinho, fora arcabuzado de tocaia, quando uma noite levava para a sua casa
solarenga, na anca de árdego sendeiro, uma mulatinha púbere.... Quanto a ele,
Timóteo, nem convinha falar...
Para não ficar de todo cru em matéria de letras foi D.
Tibúrcio, aos dezessete anos, para um colégio em Salvador. Era nessa época um
arrieiro, por dentro e por fora. Rebelou-se e escabujou contra a infâmia, do
pai, em querer afastá-lo do convívio dos carreiros e dos negros cortadores de
cana. Seguiu como um preso, vigiado, e com ordens de ser contido a relho.
No colégio ganhou a fama de malandrim e de esbanjador de
dinheiro. Jamais dera uma lição, e, constantemente assaltado pelas saudades do
engenho, arrepelava-se furiosamente, maldizendo a vida falando em fugir. Veio
arrancá-lo do aflitivo viver, três anos depois, uma obstrução estercoral, que
lhe matou o pai, repentinamente. D. Tibúrcio deu figas aos bancos escolares e
correu pressuroso a tomar conta dos negócios do falecido, ideal que animava
desde os doze anos, tempo em que vivia a se espolinhar na bagaceira, junto com
os moleques do engenho.
Apossado das terras do pai, administrou-os com tão grande
tino e segurança que pasmou a parentela. Achou mais facilidade em vender
vantajosamente partidas de açúcar e barris de cachaça, do que reter na memória
uma regra de gramática. Nada mais natural. Cada um como Deus o fez. Os
parentes, desculpando-lhes a negação pelos livros, elogiaram-lhe a bolsa de
usineiro. O moço prometia.
Como é de uso e praxe entre os fidalgos, aos vinte e seis
anos, ofereceram-lhe como esposa a sua formosa prima. Dona Branca, menina que,
sem nenhum entendimento do mundo, teve que obedecer ao pai, senhor de velho
solar açucareiro. Os Alvares só casam entre si. Que nenhum plebeu se arrojasse
a amar uma das fidalgas meninas, ou vice-versa. No primeiro caso o petulante
pagaria com a vida o grande crime; no segundo a amorosa virgem seria coagida a
entregar-se ao primeiro parente que aparecesse.
Dona Branca, mimosa flor de sentimento e candura, ao
ver-se nos braços do alapuzado esposo, tremeu de horror, chorou lágrimas de
sangue e enovelou-se em sua dor, odiando secretamente ao pai, que a lançou na
infelicidade irremediável.
Era uma figura de romance, a dolorida menina. Fina,
esguia e cor de lírio, tinha uma doce alma de criança, suavíssima e angelical.
Onze dias depois de casados tiveram este dialogo,
motivado por lagrimas que vira D. Tibúrcio espalharem nas amareladas faces da
esposa.
- A senhora Dona Branca não é mulher cá para mim, não
pega do meu jeito. Errei na escolha. Mas só tenho a queixar-me de mim mesmo e
de seu pai.
- Eu o ofendi, senhor? Perguntou a magoada criatura.
- Se me ofendeu? Ora, essa é muito boa! Mais do que isso.
Repele-me, parece ter nojo de mim...
- O senhor Tibúrcio está precipitando os seus juízos e
sendo injusto comigo, que desejo ser uma boa esposa.
- Qual injusto qual nada! Eu não sou cego e estou enxergando
bem como é a coisa. O que a senhora queria era casar com aquele poeta malandro
lá de Aracaju.
Não fale desse modo, meu primo, gemeu Dona Branca,
angustiada com a lembrança do seu grande amor.
D, Tibúrcio fitou-a, arreganhou os lábios com desprezo e
disse tranquilamente: - Para mim é a mesma coisa; tanto faz como tanto fez.
Mulheres não me faltam...
Dona Branca caiu-lhe aos pés em postura de mártir e
pediu-lhe, afogada em crebros soluços: - Mata-me, Tibúrcio, mata-me pelo amor
de Deus.
O mazorral marido, ninguém acredita, riu com naturalidade
e falou, virando-lhe as costas: - Deixe de asneira menina. E lançou mais
adiante uma eructação, que reascendia a melado com batata doce, sobremesa
predileta do fidalgo.
Desde esse dia passaram a viver separados. Cada um
possuía os seus aposentos.
Decorriam semanas e semanas sem que se vissem. D.
Tibúrcio fazia-lhe a grande esmola de não a procurar, tinha de sobra onde
aplacar a freima cupidínea do seu sangue tumultuoso. E não precisava de mulher
para mais nada.
Dobraram-se os anos.
Aos quarenta de idade D. Tibúrcio era um sujeito que
fugia a toda descrição. Tentemos, porém, bosquejar-lhe a figura. Era de
estatura abaixo da mediana, espáduas quadradas, atarracado, solidamente fornido
de carnes, gorja de touro e cara adiposa, rechonchuda e nédia de bonzo chinês. Repuxadas e escassas farripas de cabelos
grisalhos vestiam-lhe, como um véu finíssimo, a careca luzente e cor de ferida
em cicatrização.
Era bem de vê-lo passear no alpendre da casa, à espera do
cavalo para ir à cidade de Maroim, calçado numas botas luzidas que lhe vinham
até os joelhos, tinindo esporas de prata, rebenque do mesmo metal preso a mão
direita, chapéu panamá desabado, o cadeião segurando o patacho, passado de
hipocôndrio a hipocôndrio, sobre o ventre rotundo, laxo e descaído.
Má fez tinha o homem. Era um pote de perversidade e
luxuria. Alapava-se naquele arcabouço atoucinhado, uma alma proterva.
Contava-se dele coisas de arrepiar. Aos ladrões de cana mandava arrancar os
dentes a alicate; cauterizava a língua de quem lhe subtraia uma caneca de mel
imundo do tanque; aos caminhantes que descuidadamente deixavam aberta alguma
cancela dos pastos, ensinava a fechá-las aplicando-lhe dúzias de bolos; por um
nada fincava de roxo, a rebenque, o rosto dos empregados; e, sobretudo,
sepultava na desonra quase todas as rapariguinhas que viviam em suas terras
malditas. Atiradas para os alcouces das cidades vizinhas, as sacrificadas
faziam a vida algum tempo mais e morriam aos vinte e poucos anos, na
indigência, apodrentadas, gafadas de moléstias horríveis. E por uma destas
felicidades inconcebíveis não teve o seu ilustre avô, de chorada memória, não
se cansava de cavar sepulturas D. Tibúrcio. Era um monstruoso coveiro.
Corria farta a safra do ano de 1920.
O engenho... sacudia-se todo numa grande azafama.
Refervia de atividades. As quatro horas da manhã as caldeiras já davam pressão,
e o apito sonoro chamava braços à labuta.
E durante todo o dia o trabalho não descontinuava. Era um
mourejar sem conta. Os carros cogulados de cana cruzavam-se nos caminhos dos
canaviais, a cantar estridentemente. A cana alteava-se em grandes rumas no
picadeiro, para minguar depois, engolida pelas moendas possantes, que giravam
esfomeadas, famélicas, insaciáveis. O maquinismo trepidava, produzindo um ruído
uniforme, único, monótono. Os agregados iam e vinham cada um em sua faina. O
bagaço úmido e cheiroso era espalhado ao sol, numa área de muitas braças,
remoído pelo gado enquanto fresco. As tachas fumegavam borbulhantes,
impregnando os ares de um cheiro agradável de açúcar em preparação.
Saindo do vasto telhado surgia e se elevava a chaminé com
o penacho de fumo, ondulante, a subir em espirais que se desfaziam no alto, ao
sopro da ventania. No meio das pastagens, num gracioso comoro, a casa
senhorial. Em torno e ao longe, ondeava o mar verde dos canaviais, que se
espraiavam até muito além, a perder de vista.
As seis da tarde era que pejava, apitando de novo, dando
lugar a que homens e maquinas ganhassem, com o repouso, renovado alento.
D. Tibúrcio, com espantosa energia, dirigia tudo. Não se
arredava uma palha que não fosse com a sua previa ordem. Entrava aqui, espiava
acolá, gritava com este, descompunha aquele.
E percorria todas as dependências do serviço, açodado,
vezes colérico, vezes gracejador.
Num dos seus giros fiscalizadores viu que a porta do
tanque do mel estava aberta. O mel cabaú, produto das impurezas do açúcar, é
conservado em tanques de cimento, donde sai para o fabrico da cachaça e outras
utilidades diminutas. Esses tanques são espaçosos quartos escurentados,
cheirando a bafio e a açúcar em fermentação. Pisa-se sobre tábuas movediças e
afastadas uma da outra, que deixam ver no escavado fundo a massa líquida e
anegrada, coberta de um cascão que retém na superfície: ratos mortos, baratas,
excremento de aves, papeis imundos e outras sujidades.
D. Tibúrcio não contente com o rendimento do seu açúcar
cristal e sobretudo do mascavo, também fabricava aguardente, e em grande
escala. E era da melhor, diziam a uma só voz os piteireiros que lhe deram
justificada fama.
O rei da cachaça quando viu a porta aberta e o seu rico
mel exposto aos larápios, franziu a testa contrariado e olhou em torno para ver
se topava com quem gritar por causa do desmando. Perto dele só havia um velho
boi de carro, já imprestável, a mastigar com delícia um olho de cana. D.
Tibúrcio parou, deteve-se por alguns instantes, subiu os cinco degraus,
empurrou a porta e entrou. Teve uma magnífica surpresa. Lá dentro estava a
Rufina, a arisca Fina, cor de canela, paixão de sua vida, tormento dos seus
sentidos exaltados. Havia tempo que o fidalgo andava de frente virada para a
rapariga. A princípio pôs em prática o que costumava fazer com as outras:
presentes, dinheiro, condescendências aos parentes, regalias.... Fina não
cedeu. D. Tibúrcio duplicou os meios. Tentou. Pertentou. Nada. Não esbraveceu
nem as expulsou de suas terras. Deixou que os tempos corressem. Aguardava
oportunidade. Mais dias menos dias... O que não compreendia era a resistência
da parte de uma menina, que não tinha pai nem mãe, e morava em companhia de um
irmão borracho, que a tratava a ponta pés e a deixava sofrer de fome. Vivia a
danada como um cão sem dono, em casa de um e de outro, a pedir migalhas.
Quando Rufina avistou D. Tibúrcio, tremeu dos pés à
cabeça e, instintivamente, coseu-se a parede, de olhos esgazeados, opressa, como
se tivesse diante das escancaradas faces de uma onça pintada.
D. Tibúrcio, passado o primeiro momento de surpresa,
fechou aporta por dentro e perguntou, caminhando para ela, risonho, com a voz
doce como o cabaú, que tinha estagnado aos pés:
- Que faz aqui, menina?
- Nada, não senhor...
- Ora, não minta, você veio roubar mel. Por que não me
pediu?
Rufina tornou-se muito pálida e vociferou dentro dos
dentes:
- Peste!
D. Tibúrcio, açulado pelo insulto, deu-lhe o primeiro
bote. Fina fugiu com o corpo e o homem espapaçou o ventre pilharengo de
encontro à parede. Fitou-a raivoso, a despedir pelos olhos áscuas chamejante.
Rufina, tremula e cor de cal, rosnou novamente:
- Esconjurado!
O fidalgo renovou o bote, inutilmente. E, firmando-se nas
curtas e roliças pernas, saiu-lhe ao encalço fazendo prodígios de equilíbrio,
pulando de uma tábua para a outra, evitando com agilidade simiesca os
intervalos perigosos. Ninguém o julgaria capaz de semelhante destreza. Quanto
pode o amor!
Rufina encolhia-se espavorida, recuava, dava saltos,
fugia-lhe das mãos como uma enguia escorregadia.
O ânimo não fraquejava de D. Tibúrcio. Valoroso até ali!
Resfolegante, congesto, com as cordoveias do pescoço intumescidas, a pulsarem
como aneurisma, o suor a correr-lhes a bagadas pela cara abaixo, temulento de
lascívia, não parava na corrida. E a presa sempre a lhe escapar.
Em dado momento, porém, encantou-a e prendeu-a
rigidamente entre as mãos em ganchos. Fina debateu-se com furor, como uma pomba
nas garras de um gavião. Mas não se extinguiu dolorosamente entre as mãos
assassinas, como sucederia à infeliz pombinha. A bravia menina espalmou a mão,
com a violência que lhe dera o desespero, no gorduroso semblante do fidalgo e
dele se desatou para longe de si.
D. Tibúrcio vacilou, perdeu o equilíbrio e metendo os pés
nos vãos das tábuas mergulhou na massa líquido do mel. Veio à tona negro de
cabaú, bufante, a soprar pelas ventas, procurando agarrar-se as vigas que
sustentava o tabuado. Rufina saudou a queda do seu inimigo com sonora
gargalhada, que iluminou os anoitados ares.
Um santo riria em semelhante conjuntura. O cômico e o
trágico andam na vida de braços dados.
D. Tibúrcio submergiu novamente. Reapareceu. Gritou.
Debateu-se. O mel espesso e grosso semelhava um atascadeiro. Difíceis eram os
movimentos que lhe minguavam as forças. Uma gravidade poderosa chamava-o para o
fundo lodoso. Esbracejou em vão. Desapareceu por segundos. Tornou a ressurgir.
Escabujou pela última vez e a caretear, arrancou da vida, de entranhas
açucaradas, hidrópico de mel...
E o corpo ficou a boiar, medonhamente fúnebre, parecendo
uma bola de sebo numa grande terrina de melado.
Fina, com um gozo venenoso no olhar, de feições compostas
como se nada tivesse acontecido, abriu a porta, fechou-a pelo lado de fora,
atirou a chave sobre o telhado e desapareceu pelo pasto, cantarolando uma
cantiga chula...