quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A CULTURA E OS CAMINHONEIROS

 A Cultura e os Caminhoneiros.
(por Antonio Samarone)

Itabaiana é a Capital nacional dos caminhões (Lei 13.044, de 2014).

Nos últimos 70 anos, Itabaiana se transformou num importante polo comercial, puxado pelo crescimento do setor de transportes. O caminhão foi a locomotiva. Formou-se uma grande cadeia produtiva, em torno do caminhão.

A grande festa dos caminhoneiros em Itabaiana é uma mistura de religião, negócios e musical de massas.

O caminhão trouxe a indústria de carrocerias, uma rede de oficinas e casas de peças, empresas de vendas de veículos (novos e usados) e empregos para motoristas. O caminhão coloca muito dinheiro em circulação. O dinheiro corre, com si diz. O setor imobiliária explodiu.

Uma curiosidade. Somos a capital da castanha, também por conta do caminhão. Como assim, pergunta o apressado?

No agronegócio não basta produzir. É preciso vender, encontrar mercado consumidor. É o espírito competitivo que leva o Itabaianense a vender as suas castanhas no resto do país. E como as levam? Via de regra, na boleia dos caminhões.

Se encontrar alguém vendendo castanha de caju nas praias de Santa Catarina, pode perguntar: você é de onde? Ele responde gritando, do Carrilho ou das Tabocas ou do Dendezeiro. São ex quilombos extrativistas, em Itabaiana, onde assar castanha encontrou um solo fértil.

O Piauí produz a castanha, mas não beneficia, não tem a quem vender.

Voltando ao tema central.

Os caminhoneiros impuseram o seu modo de vida em Itabaiana e região. Hoje, quando se fala em Itabaiana, econômica e culturalmente, se fala no Agreste caminhoneiro.

É o Agreste que puxa a economia do estado. O resto é dinheiro público e capital de fora.

Quando se pergunta a uma criança em Itabaiana, o que ela quer ser, a maioria responde: caminhoneiro.

A impressionante carreata mirim é movida por emoção. São filhos, netos, sobrinhos de caminhoneiros. Muitos empurrados pela saudade, dos que já se foram.

O que explica essa força competitiva dos caminhoneiros em Itabaiana? Claro, a chegada da BR – 235 ajudou. Mas, a BR também chegou a outras cidades. Por que Itabaiana virou a pátria dos caminhoneiros?

Essa força está presente em todo o Agreste.

Na verdade, o caminhoneiro de Itabaiana ganhou a disputa no mercado dos transportes, teve a preferência das cargas, chegou na frente, por um motivo: as cargas nos caminhões de Itabaiana eram entregues na hora combinada, em especial as cargas de perecíveis.

O Itabaianense ganhou a concorrência no mercado dos transportes, ganhou fama e legitimidade, por sua competitividade.

Essa vantagem competitiva muitas vezes dependia dos arrebites. Do uso de substâncias estimulantes, para se evitar o sono e o cansaço. A carga deve ser entregue na hora combinada.

Isso teve um preço amargo. A mortalidade dos caminhoneiros em Itabaiana foi muito superior à média nacional. Muitas famílias em Itabaiana perderem os seus entes queridos.

A vitória na concorrência teve consequências boas e ruins. Por isso, o respeito em Itabaiana pelos caminhoneiros.

O Itabaianense não quer perder, disputa qualquer coisa. Apostam em tudo... Gostam do jogo e da disputa.

De onde vem essa índole competitiva do Itabaianense?

Tenho escutado várias explicações: uma suposta descendência judaica, uma herança genética dos holandeses, a natureza do Itabaianense, nascemos assim. São explicações superficiais, deterministas.

Penso que a explicação principal seja outra. Depende do nosso modo de vida. Peço ajuda a cultura, numa abordagem mais antropológica.

Itabaiana é uma terra de pequenos proprietários rurais, artesões, e pequenos comerciante. Uma terra em que a acumulação inicial do capitalismo funciona. Todos têm chances na disputa. Mesmo quem não tem, pensa que tem.

Os magnatas, magnatas, são poucos. Não existe a dicotomia Servo/Senhor. Os senhores são poucos, e não existem famílias tradicionais, os baronatos. Não existe uma aristocracia.

Aprendemos a ser livres na infância, e que dependemos do talento e da disposição.

Em Itabaiana, o novo rico é bem aceito na sociedade. Sem rejeição. Não se pergunta a origem da riqueza. Dinheiro é dinheiro, nos bolsos de qualquer um.

Isso permite uma competição com chances. Todos se matam de trabalhar, com gosto, sem reclamações. Rodam o mundo, para vencer na vida. Vale tudo.

Os comerciantes em Itabaiana enfrentam a expansão do grande capital, em boa parte, internacional, enfrenta as grandes redes nacionais de distribuição.

Vejam na grande Aracaju, a rede de Mercearias Itabaiana sobrevive, vendendo muitas vezes mais barato que os “Assais e os G. Barbosas."

Falando-se no comercio de madeira, fertilizantes, autopeças, confecções, bebidas, pneus, entre outros, não precisa consultar os preços, vá direto a Itabaiana.

Os “Peixotos” no Agreste, vendem de tudo e com um menor preço.

O novo rico é um herói em Itabaiana. Venceu!

Creio que a essa competitividade é determinada culturalmente, pelo modo de vida livre, sem senhores.

Por outro lado, essa competitividade individual de cada um, retroalimenta o modo de vida, as crenças e os valores.

Com isso, o Agreste está sendo transformado.

O Itabaianense trabalha as 24 horas por dia e os sete dias na semana. Full time. Dormir é para os fracos.

A alma competitiva do Itabaianense não é herança biológica, natural, ou depende da geografia serrana, como pensava um grande intelectual patrício, já falecido. E ainda pensa, uma gente academicamente bem formada.

Ouso colocar a cultura, lato senso, na base das análises.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

VINTE E OITO DE AGOSTO

 Vinte e oito de agosto.
(por Antonio Samarone)

Itabaiana Grande comemora as suas festas cívicas.

Em 28 de agosto de 1888, passamos de Villa a Cidade. Não sei quem disse que era o aniversário. Mesmo não sendo, pegou.

Esse ano de 2023, no dia 28, além de missa, hastearemos a bandeira e o cantaremos o hino da cidade defronte a Prefeitura.

Está acontecendo a “micarana”, uma tradição de 64 anos, quando Euclides Paes Mendonça organizou a primeira micarene (carnaval fora de época).

A Villa de Santo e Almas é antiga. Primeiro fomos Arraial. Antes, chegaram os franceses para buscar Pau Brasil.

Sebrão Sobrinho conta que antes da chegada dos portugueses, Simão Dias, filho de pai francês e mãe índia, foi criado debaixo de uma quixabeira e alimentado por uma cabra. O nosso primeiro vaqueiro. Quem sou eu para desacreditar.

Depois, Simão Dias se aborreceu com os holandeses, pegou o seu gado e mudou-se para as matas do Caiçara. Foi fundar a Villa de Simão Dias.

A grande Serra de Itabaiana foi avistada por Américo Vespúcio, em 1501. Ele conta, em seus livros.

Depois chegaram os sesmeiros, expulsando os índios. Construíram uma Igreja, no vale do Jacarecica. Criaram uma Irmandade das Santas Almas do fogo do purgatório. Compraram um sítio ao padre Sebastião, e fundaram a Villa. São quase 400 anos. Nascemos naquele tempo.

Os Peixotos ganharam uma sesmaria no vale do Jacarecica, em 1601, e dominam o comércio de Itabaiana até hoje. São os fundadores.

Itabaiana ia de Jeremoabo a Santa Rosa de Lima. Entretanto, a Villa, a parte urbana, era pequena. Morávamos nas roças. E assim permanecemosb até um dia desses. Itabaiana era rural. Quando eu nasci, a metade das casas da cidade, ainda era de rancho.

Na cultura, dominava a música, desde 1745. Depois a fotografia, com Miguel Teixeira.

A foto postada é do final do Século XIX, certamente é a primeira foto de Itabaiana, da lavra de Teixeirinha. A raridade é do rico acervo de Robério Santos.

O território de Itabaiana foi reduzido, ficou imprensado entre o seco Sertão e os doces canaviais. Sobrou o agreste, que depois foi esquartejado. Nos restou produzir alimentos: Itabaiana tornou-se o celeiro de Sergipe e do Sertão da Bahia.

Na metade do século XX, chegou a BR – 235 e o Ginásio Murilo Braga. Itabaiana tornou-se um entreposto comercial, puxado pelos caminhões.

Nos últimos 70 anos, crescemos e multiplicamos. Itabaiana ultrapassou a barreira dos cem mil. Tornou-se um centro metropolitano de desenvolvimento, em competição com a Capital.

Itabaiana tornou-se uma Região metropolitana, centralizando todo o Agreste. A capital nacional do caminhão criou um comércio competitivo, em qualidade e preço.

O que não se encontrar em Aracaju, não pense duas vezes, em Itabaiana tem pela metade do preço. Diz um ditado popular: “de tudo o que existe no mundo, em Itabaiana tem pelo menos dois."

Itabaiana transformou-se em polo na economia. Na política, pela primeira, os destinos de Sergipe passam pelo interior. A gestão da cidade é um exemplo, até para os adversários.

O futebol voltou ao cume e pensa alto. Aguardem 2024.

Eu não tenho dúvidas, em breve, a Cultura mostrará a sua pujança. Talentos não faltam. Se não bastassem a Orquestra Sinfônica e a Bienal (sexta edição), que vai além dos livros, o nosso Teatro já está no forno. No início de novembro, a Bienal volta mais forte.

Nesse segundo semestre, teremos um festival internacional de cinema, um festival de música clássica, outro de música popular, um festival de Hip-hop e outro de cultura. Será a ebulição das artes.

Itabaiana é a Terra dos milagres. Que Santa Dulce junte-se a Santo Antonio, para nos abençoar.

Antonio Samarone – Médico sanitarista.

A VIDA É UM MILAGRE

 A vida é um milagre.
(por Antonio Samarone)

Acho a dúvida se milagres existem, uma bobagem. Tudo é milagre.
As versões científicas sobre a origem da vida são ficções mal arrumadas.

A coisa se agrava, quando a ciência procura explicar o surgimento da consciência. Quanto maior a objetividade da tese, maior a ilusão.

Estou convencido que o sagrado é parte inerente da consciência. Não são apenas fenômenos físico-químicos. A transcendência é um fenômeno real. Por outro lado, a consciência é um fenômeno do conjunto da vida, a sua parte divina. O ego é apenas um subproduto da consciência.

Pode se chegar a uma consciência ampliada, por vários caminhos.
Os gregos, iniciados nos Mistérios de Elêusis, usavam uma substância natural produzida pelo fungo ergot, presente na cevada da região.

Em 1938, Albert Hoffmann, um químico suíço da Sandoz, tentando sintetizar essa substância dos gregos em laboratório, descobriu o LSD (dietilamida do ácido lisérgico). A mais poderosa substância psicodélica.

Para evitar mal-entendidos e confusões com os psicotrópicos, os psicodélicos são substâncias que alteram a consciência por longa duração, não causam dependência e permitem viagens a regiões desconhecidas da mente. Fixam a consciência no tempo presente, unifica as polaridades, coletiviza as percepções e supera o domínio do ego e amplia a consciência.

A consciência ampliada percebe parte da hierarquia da vida. Das bactérias, insetos, fungos, seres humanos, anjos e deuses.

O que chamamos de consciência é uma percepção fragmentada e parcial da realidade.

A consciência ampliada é parte da energia cósmica eterna, princípio sagrado e divindade interna. É o Nivarna dos orientais. Um estado de beatitude e felicidade, onde a morte perde o sentido.

O uso orientado dos psicodélicos pode permitir essa experiência da consciência ampliada. Nasce um profundo sentimento de gratidão pela vida. Apesar da tragédia e do sofrimento, o universo está em ordem.

Relendo os Mistérios de Elêusis, de Mircea Eliade, entendi a profunda impressão que tive ao ver pela primeira vez uma foto da terra inteira vista do espaço. Era aquilo, tão pequenina, o habitat da humanidade.

A consciência ampliada permite enxergar o sentido de uma formulação aparente tola dos católicos: “Deus é amor.”

Quem tiver curiosidade nessas experiências com o uso dos psicodélicos, vale a pena a leitura de “As Portas da Percepção”, obra do escritor inglês Aldous Huxley.

Hoje vivemos uma profunda dissociação da nossa espécie com o restante da natureza.

Os psicodélicos mais conhecidos são o LSD, mescalina, psilocibina e a nossa ayahuasca, do Santo Daime.

Não se sabe como os psicodélicos funcionam. Acredita-se que eles reiniciem o cérebro, alterando os níveis de neurotransmissores, permitindo experiências místicas e novos modos de se pensar. Quando usados por pacientes terminais, aliviam a ansiedade existencial.

Perdi um grande amigo, ainda novo, com uma grave doença neurodegenerativa. Um comunista dos antigos, devoto da materialismo histórico, que não tinha a quem recorrer com a proximidade da morte. Tentei encaminhá-lo para os grupos de pesquisa americanos sobre o uso dos psicodélicos, como forma de criar experiências místicas e reduzir a sua ansiedade diante da morte.

Não houve tempo, ele morreu antes, numa viagem que fez a Belo Horizonte.

Francis Crick, Prêmio Nobel em medicina (1962), próximo a morte, informou ter descoberta a dupla hélice do DNA. Durante uma viagem com o uso do LSD.

Nas depressões se retorna patologicamente ao passado, nas ansiedades se antecipa compulsoriamente o futuro. Os psicodélicos lentificam o tempo, torna-o mais lento. Claro, com grande impacto na economia. Talvez o principal motivo das proibições.

Suponho que muita gente não entendeu quase nada, ou entendeu quase tudo por outros vieses. Entretanto, esse é um tema que atrai a minha curiosidade.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

AS MULHERES DA REPÚBLICA DO BECO NOVO

 As Mulheres da República do Beco Novo.
(por Antonio Samarone)

Não me lembro de mulheres gordas, patuscas e caseiras, nem de moças franzinas, neuróticas e românticas dos romances de Machado de Assis. Na República do Beco Novo, as mulheres não eram nem omissas, nem submissas. As três esposas de Armelindo, a seus modos, eram donas dos seus narizes.

O Beco Novo começava no fundo da Igreja e terminava no Tabuleiro dos Caboclos, onde nasceu o futebol, em Itabaiana. Um Beco de pobres e remediados, onde fervilhava gente e histórias.

Uma irmandade!

O Beco Novo era o Império do matriarcado. Desconheço um marido, que não fosse dominado pela esposa. Mulheres mandonas, e algumas desaforadas. Cada uma merece uma biografia. Não eram poucas. Entretanto, vou falar sobre a mais destacada.

Dona Mãezinha, baiana de Paripiranga, morena de braço forte e mãe de uma prole numerosa (15 filhos). Ela falava que preferia parir um filho a arrancar um dente. Só que, quando perguntada qual era a dor do parto, para ser engraçada, ela dizia ser a dor de cagar uma jaca.

Mãezinha criou os filhos com disciplina militar. Se precisasse o couro comia. Eram surras, cujo limite era a força do seu braço.

A família de Justino e Mãezinha levava uma vida sossegada.

Tiveram a primeira radiola do Beco Novo, que tocava os Demônios da Garoa, em toda a altura. Para mim, eram ricos. Lá em casa, não tinha nem rádio. Iracema, foi a primeira música que eu prestei a atenção, de tanto ouvir.

“Iracema, eu sempre dizia/ Cuidado ao atravessar essas ruas/ Eu falava, mas você não escutava não/ Iracema você atravessou na contramão.” Aquilo era estranho. No Beco Novo, que eu lembre, só passava de vez em quando, a marinete de Manezinho Clemente. A gente corria atrás para pegar uma punga.

Aliás, Iracema, uma morena vistosa, era também o nome da filha mais nova de Dona Mãezinha. As outras, já tinham casado.

A palavra de Dona Mãezinha era definitiva. Todos acatavam. Aliás, ela se impunha, mesmo calada.

Tive uns achaques de adolescente. Mamãe logo consultou Dona Mãezinha: o que fazer com esse menino? Mãezinha não teve dúvidas, isso só pode ser encosto. Vamos levá-lo a uma umbandista. Mamãe, mesmo católica, filha de Maria, me levou a uma sessão.

Lá fomos nós: eu, mamãe e Dona Mãezinha. Na sessão, a Mãe de Santo, com a fala modificada, parecendo uma voz incorporada do além, foi taxativa: “esse menino tem que parar de jogar bola e se dedicar aos estudos.” O caboclo estava certo, mas eu odiei e não atendi.

Mãezinha era de família de crentes (atuais evangélicos), mas não era praticante. Era uma mulher de convicções morais conservadoras.

O seu marido, Justino, era sapateiro e músico da filarmônica. A Itabaiana agrícola, era uma terra de sapateiros e alfaiates.

A vida apertou para os sapateiros e alfaiates, com a chegada dos sapatos de fábrica e das roupas feitas. Seu Justino quebrou, teve que fechar a sua tenda e migrar para a Baixada Fluminense (Queimadas), em busca de uma vida melhor. Perdi o meu melhor amigo (Everaldo, conhecido como Peba).

Os filhos mais velhos (Dedé e Dandinho), exímios sapateiros, foram fazer sapatos personalizados para ricos e famosos, numa sapataria na Barata Ribeiro. Nos sapatos de encomenda, se botava o pé na forma, e os sapatos saiam ajustados a cada pé.

Os outros filhos, Meco, Gilberto, Toninho e Messias, não sei que fim levaram. As mulheres ficaram com os maridos.

Recentemente, Toinho retornou a Itabaiana, depois de 50 anos.

Essa família sertaneja, foi mais uma que foi morrer em terra estranha. Esquecidos para sempre.

Mãezinha não se acostumou com o anonimato dos Grandes Centros. Morreu nova, com cinquenta e poucos anos.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

OS GENIOS EXISTEM

 Os gênios existem?
(Por Antonio Samarone)

Por circunstâncias, passei a observar a complexidade do mundo da cultura. Passei a perguntar, com o amplo domínio da globalização cultural, ainda existe uma cultura local. Se existe, do que se trata?

Descobri que os talentos locais são sufocados pela falta de oportunidades.

Um exemplo:

A alma de Caio Trajano transborda de criatividade artística.

Entretanto, Caio é um talento socialmente nulo, sem o necessário reconhecimento. Caio é o tradicional gênio incompreendido. Ele espera que um dia, que sempre se atrasa, o seu talento o leve a glória.

“A arte serve para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização. A arte oferece satisfações narcísicas substantivas, para os que foram pessoalmente educados.” - Freud.

A indústria cultural impõe o efêmero, como entretenimento. O critério único é a venda. Sem mercado, a arte não sobrevive apenas com os subsídios do mecenato público. O gosto das massas é criado pela própria indústria cultural.

A produção de mercadorias cria o desejo de consumo. Com a arte não é diferente.

O reconhecimento social de um talento artístico requer muito mais do que o próprio talento. O talento sem disciplina se torna ocioso. Uma grande obra requer talento e disciplina. É preciso encontrar o nicho, num terreno contaminado pela cultura de massa.

Por outro lado, o talento em um homem vazio, sem conteúdo, também apequena a obra. Não falo de erudição, mas de uma cosmovisão crítica. Contraditoriamente, esse mesmo vazio favorece a inclusão no mercado da indústria cultural.

E por último, o reconhecimento depende da formação cultural da civilização onde se vive. A sociedade é domada pela indústria cultural, pelo consumo do efêmero, pela arte enquanto entretenimento.

O talento precisa levar em conta a sociedade onde ele vive. A arte não é indiferente ao seu tempo.

Claro, os limites não são apenas pessoais. O social também pode inviabilizar os talentos, não oferecendo oportunidades. Ou as poucas oferecidas não serem percebidas. É comum na música, os gênios se transferirem para os centros culturais dominantes.

Ia esquecendo, o talento, como quase tudo, também depende dos caprichos do destino, da deusa fortuna, da sorte.

Como se percebe, o reconhecimento social do artista vai além da grandeza do seu talento.

Dito isso!

Caio Trajano, paciência! O dia da sua glória artística continua no horizonte.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A CULTURA NÃO TEM DONOS

 A Cultura não tem donos.
(por Antonio Samarone)

A economia comanda Itabaiana, tudo lá são negócios. Dirão os mais profundos, negócios, política e fé: todo o mundo tem lado e uma devoção. Os isentões são poucos.

E onde entra a cultura?

A tradição cultural em Itabaiana limita-se a música, com a Filarmônica Nossa Senhora da Conceição (1745) e a fotografia, com Miguel Teixeira e Joãozinho Retratista.

Uma sofisticação cultural: Itabaiana possui uma Orquestra Sinfônica.

Durante anos, Abrahão Crispim agitou sozinho o mundo cultural de Itabaiana, em torno do Jornal “O Serrano”.

A atual ebulição cultural é recente.

A quadrilha “Balança mais não Cai”, de Salomão e a “Chegança de Zé de Biné”, saíram na frente.

Ana Angélica, irmã de Djalma Lobo, abriu a sua academia para a capoeira, maculelê, banda de birimbau e outras danças.

A reunião de artistas, escritores e intelectuais itabaianenses, com Luiz Antonio Barreto, para discutir a cultura local, numa sala do Guilhermino Bezerra, foi um grande passo.

Robério Santos criou o Grupo Itabaiana Grande e Vladimir Carvalho liderou a formação da Academia Itabaianense de Letras.

Almeida Bispo, Wanderlei Menezes, Anderson Silva, Carlos Mendonça, Tereza Cristina, Inês Resende, Amorosa, Josevanda Mendonça, Robério Santos, Romulo Lessa, Marlon Delano, Tito, Dido, Zeus, Eugênio, Andrei, Rodrigo Graça, Baldochi, o maestro Valtênio, Vladimir Carvalho, Padre Jerônimo, Messias Peixoto, entre outros, têm muito a dizer sobre a cultura em Itabaiana.

Criou-se uma agenda editorial, independente de Aracaju. Vários livros foram publicados.

Criou-se a Bienal de Livros, uma ousadia que se encontra na sexta edição. Uma boa notícia: A Academia de Letras assumiu a Bienal.

A força da arquitetura de Melcíades Souza.

Foi criado o Parque Cunha Menezes, um centro da cultura sertaneja de vaqueiros, toadeiros e aboiadores.

Na outra ponta, o movimento Hip-Hop se organizou.

Mensalmente, o espaço do Chiara Lubich passou a apresentar uma manifestação cultural. A Prefeitura criou o Festival Itabaianense da Canção (FIC). Vicente do Capunga intensificou a sua militância cultural. Robério Santos criou a Literatura no Cangaço e foi nacionalmente reconhecido.

Finalmente, está em andamento a construção de uma Teatro, um sonho antigo, de um memorial, uma escola de sanfona, zabumba e triangulo e uma Guia Cultura.

Hoje, os editais da Lei Paulo Gustavo estão sendo anunciado. Uma ruptura no fomento da cultura local.

Itabaiana ao ultrapassar os cem mil habitantes, entrou na categoria de Região Metropolitana, com tudo que isso significa.

Constato uma explosão de iniciativas culturais. Surgem talentos no audiovisual, artes plásticas, música, escultura, toadas, hip-hop, danças, literatura e poesia.

O que está faltando?

Essa energia criativa precisa ser fomentada, organizada, divulgada e prestigiada. A Lei Paulo Gustavo é um passo importante.

A cultura pede passagem.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

A MEMÓRIA É UM PESO

 A memória é um peso.
(por Antonio Samarone)

A arquitetura é retrato de uma época, de um modo de vida, da economia e da cultura.

Da velha Itabaiana, pouco sobrou!

Os seus sobrados de taipa foram demolidos. A casa de Zeca Mesquita foi abaixo. Derrubaram até a Igreja Presbiteriana de Eulina Nunes. Resta muito pouco.

Na Praça da Igreja sobraram as duas casas das fotos. A casa de Chico do Cantagalo e o cartório de Serapião. As duas à venda, ou seja, com os dias contados. Será o fim do casario, da primeira metade do século XX.

Na nova Itabaiana predomina o estilo arquitetônico de Melcíades Souza. Eu não sei analisar, não sou do ramo. Sei que a arte de Melcíades e seus imitadores é dominante. Estilo que se espraiou pelo Agreste. Caiu no gosto dos Itabaianense, representa uma visão de mundo.

Junto com Melcíades, fotografei as suas principais casas. Ele me explicando o que significava cada curva, cada círculo, a altura do pé direito, os jardins, o blindex, o alumínio. Tudo! Infelizmente, nunca encontrei um arquiteto que quisesse descrever o estilo melcidiano.

Itabaiana está para Melcíades, como Barcelona para Gaudi.

Melcíades de Durval do Açúcar, foi o nosso maior talento.

Voltando, a memória arquitetônica será apagada! O preço da preservação é elevado.

O sentimento de preservação é amplamente minoritário. Restarão as fotos.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

SAÚDE PARA TODOS

 Saúde para todos – ozonoterapia retal.
(por Antonio Samarone)

Lula sancionou a lei 14.648, que autoriza o uso do Ozônio (O³) como medicamento, de forma complementar.

Isso mesmo, o ozônio que protege a terra dos raios ultravioletas, que serve para tratar água contaminada, purificar o ar, ainda funciona como agente antioxidante. É nessa última condição, que a medicina de mercado legitimou mais uma mercadoria.

A indústria cosmética inventou os radicais livres e as formas de combatê-los. O ozônio está na atmosfera desde que o mundo é mundo, só agora descobriram o seu uso medicamentoso.

A ciência é tudo!

Segundo o Google, o pai dos burros, o ozônio é um grande agente anti-inflamatório que diminui o estresse oxidativo e inflamação do corpo. Como ele elimina toxinas, isso acelera o processo de emagrecimento, além de atuar como destruidor das células de gordura. Ou seja, uma grande panaceia, o óleo do peixe elétrico dos camelôs de feira.

A lei 14.648 é aparentemente rigorosa: o ozônio só pode ser prescrito por profissionais de nível superior e produzido por equipamentos autorizado pela ANVISA. Um equipamento médico desses oficiais, custam em torno de 16 mil reais.

Para a sorte do povo, no Armarinho Luiza, um aparelho de vapor facial de ozônio de limpeza e emoliente, está na promoção, por 110 reais, no PIX.

Ainda sobre o ozônio. Está no Google:

O ozônio tem efeito antioxidante e anti-inflamatório, além de liberar fatores de regeneração dos tecidos, ou seja, eliminam os radicais livres e retarda o envelhecimento e ainda apressa o emagrecimento.

A ozonoterapia é eficaz contra mais de duzentos tipos diferentes de doenças. Entre as suas diversas aplicações, destaca-se o tratamento para enxaquecas, dores nas articulações, músculos, tendões, discos vertebrais, entre outras partes do corpo.

Através da Hemoterapia Menor Ozonizada, o ozônio ativa o sistema imunológico aumentando a imunidade, combatendo as células cancerígenas e regulando o caso inflamatório no corpo do paciente.

O ozônio é eficaz no tratamento de feridas: esta terapia é uma potente bactericida que causa a ação regeneradora de tecidos. O ozônio combate os vírus e as bactérias.

Se eu não tivesse o que fazer e continuasse pesquisando no pai dos burros, encontraria outras serventias para o ozônio. Como dizia os camelôs de feira: “o ozônio só não dar cabelo a careca e vergonha a quem não tem.”

A ideologia da eterna juventude, corpo perfeito e vida saudável prospera, para o bem do mercado da saúde. Os cursos de formação e habilitação em ozonoterapia pululam.

Em breve, teremos a formação da Sociedade Brasileira de Ozonoterapeutas.

Soube que uma empresa médica conceituada em Aracaju, está montando uma rede de clínicas especializadas em ozonoterapia retal. A iniciativa foi recebida com louvor e aplausos pelas sociedades científicas.

Um negócio da China: no Mercado Livre, 8 cateteres Luer-Look de insuflação Terapia Retal do Ozônio, custam apenas 69 reais, podendo ser pagos em 12 vezes de 6,71. Uma sessão de terapia retal por ozônio custa 150 reais. O lucro é garantido.

Descobri uma promoção: quem realizar a partir de 5 sessões da terapia retal por ozônio, terá direito a um toque retal preventivo, contra o temido câncer de próstata. É o lado social da medicina de mercado.

Até agora, soube que apenas a Sociedade Brasileira de Reumatologia publicou nota denunciando a farsa. Esperar um posicionamento do Conselho Federal de Medicina é pedir muito.

O antigo movimento sanitário, que ajudou a fundar o SUS, está no Poder. Pragmaticamente, não vale a pena se desgastar. Se Lula sancionou, deve estar certo.

Sei que vale pouco, ou quase nada, mas registro aqui a minha indignação contra o populismo sanitário.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

NOVAS E VELHAS DOENÇAS

 Novas e velhas doenças.
(por Antonio Samarone)

Como surgem e desaparecem as doenças?

Eu nasci na metade do século XX. Fui atormentado com o sarampo, paralisia infantil e a varíola. Passei por todas as perebas, lombrigas e caganeiras. Sarnas e bicho de porco. A febre puerperal deixou de matar as mulheres.

A saúde pública inventou as vacinas, a higiene pessoal, o saneamento, a água potável e os antibióticos.

Na infância, eu temia cachorro azedo, cama de sapo, frieira, espinho de cobra, vento pelas costas, vertigem, remela, sarna gaiteira, leite com manga, quebrar o encaixe e perder o juízo.

O resto, dava para enfrentar. Mamãe tratava tudo com pó de sulfonamida, violeta genciana, guaiacol e óleo de rinse. O chulé foi uma novidade trazida pelos sapatos de plásticos.

O autismo era tão raro, que nem nome tinha.

A vida média no início do século XX era de apenas 31 anos. Elevamos a vida média para 80 anos. O século XXI elevará para 120 anos? Será a volta de Matusalém.

Reduzirmos a mortalidade infantil. Acabou-se os enterros de anjos. Pensei, as novas gerações serão mais saudáveis.

O final do século XX, pelo modo de vida, elevou as doenças do coração, as neoplasias, as mortes violentas e o suicídio. Mesmo assim, a vida média cresceu muito, sobretudo pela redução da mortalidade infantil.

A questão é o que fazer com essa sobrevida. Encheremos os asilos e clínicas geriátricas.

Inventamos as mamadeiras, os danoninhos e o today. Resultado: a lactose virou veneno.

Os antibióticos foram fartamente usados, em qualquer sinal de infecção. A agroindústria abusou dos antibióticos. Resultado, alteramos a nossa flora normal, ou seja, a nossa convivência evolutiva com os microrganismos foi modificada.

Em nosso corpo, apenas 10% são células humanas. Além de carne, sangue, músculos, ossos, cérebro e pele, somos bactérias e fungos. Somente o nosso intestino abriga 100 trilhões de microrganismos. 4 mil espécies diferentes.

As bactérias do intestinos pesam 1,5 Kg, o mesmo peso do fígado. Somos uma coletividade de microrganismos.

Em 2003, deciframos o nosso genoma, uma surpresa: possuímos apenas 20 mil genes, menos que um pé de arroz e um pulgão d’água. Os microrganismos que nos habitam somam 4,4 milhões de genes.

Não estamos só. O individualismos é uma ilusão.

Evoluímos lado a lado com bactérias, fungos e vírus, bem antes de sermos humanos. Os nossos micróbios são importantes para o nosso corpo. Uma novidade: cada um, possui a sua flora. Uma bactéria que habita em mim, pode não habitar em você.

Os nosso 2 metros de pele, contém tantos ecossistemas quanto todas as paisagens das Américas.

A indústria achou pouco, passou a vender lactobacilos em supermercados.

Mudamos o modo de vida, a alimentação, substituímos os tubérculos por alimentos processados. Envelhecemos gordos. Derrotamos as bactérias. Os vírus avançaram. A medicina passou a denominar o desconhecido como virose.

O século XXI trouxe as alergias, o autismo, doenças autoimunes, diabetes tipo I, escleroses múltiplas, ansiedade e depressão. O nosso sistema imunológico perdeu a calma, passou a atacar o próprio corpo.

O envelhecimento encontrou as demências e as neuropatias degenerativas.

O que estamos fazendo com a gente? Hipócrates achava que todas as doenças começavam no intestino.

As doenças do século XXI começam no intestino e estão associadas ao sistema imunológico. As diarreias crônicas e a seletividade alimentar são frequentes nos autistas.

Estou convencido: a transição alimentar que experimentamos, tem a digital nas novas doenças. Leiam “10% Humanos”, de Alanna Collen.

Antonio Samarone – Médico sanitarista.

MEMÓRIAS AFETIVAS


 Memórias afetivas.
(por Antonio Samarone)

Mamãe era mestiça de índio com branco português. O seu bisavô paterno, João José de Oliveira, chegou de Portugal, em 1852.

Montou uma tenda de ferreiro em Matapoã, Itabaiana, e se casou com uma índia, de Itaporanga.

Mamãe, sua bisneta, era uma camponesa das Flechas, que não completou o primário. Disposta, dona do seu nariz. Não aceitava desaforos. Católica, filha de Maria, mas morreu evangélica. Eu aprendi a igualdade e o respeito aos mais velhos, em casa.

Mamãe tinha explicações para quase tudo, não aceitava verdades prontas. Sempre polemizava, com argumentos consistentes! Por opção, teve 16 filhos (sobreviveram 10). Ela defendia: “gente pobre deve ter muitos filhos, pois quando um não presta, outro presta.” Por sorte, todos prestaram.

Prestar é não abandonar os pais na velhice ou na doença.

Nos educou pelo exemplo, sem violência. Quando saímos dos trilhos, ela repetia. “Você está errado!” E nos ensinava o certo. “Se você não seguir, depois o mundo lhe ensina, com uma diferença: o mundo ensina pelo sofrimento, na pancada e Eu ensino com carinho.”

A educação camponesa era rígida e a verdade inflexível. O certo era certo e o errado era errado. Não se dizia NÃO a pai e mãe. E menino não tinha vontades.

Papai era mestiço de holandês com negros. Um moreno de olhos verdes, da cepa de Dona Genoveva do Matebe. Analfabeto, só assinava o nome para votar. Trabalhador rural sem-terra, pataqueiro e negociante de feira, revendia redes de dormir e roupa feita.

A partir dos 10 anos, eu o acompanhava nas feiras de Laranjeiras e Malhador. Segundo mamãe, para ajudá-lo.

Eu presenciei em Laranjeiras: um cortador de cana da Usina Pinheiro comprou uma rede. Mandou embrulhar e, depois, simulou que tinha esquecido o dinheiro em casa. E eu prestando atenção. Papai, crédulo, disse: sem problema, leve a rede e depois você traz o dinheiro.

Quando o homem saiu, eu reagi: Papai, ele não volta. O senhor não deveria ter deixado ele levar a rede. Quando ele retornasse com o dinheiro, levaria o produto.

Papai retrucou, deixe de ser besta, daqui a pouco ele traz o dinheiro. E o dia foi passando, e nada do cortador de cana.

No final da tarde, eu cantei vitória: está vendo, papai, eu não disse que o homem não voltaria. Papai não se avexou: “meu filho, aprenda: uma pessoa que precisa me enganar, está pior do que eu, precisando mais. Portanto, está perdoado.”

O meu pai tinha o espírito do cristianismo primitivo. O problema é que mundo girava noutra direção. Papai penou, para criar uma família grande, com muita dignidade e pouco dinheiro.

De papai, eu herdei o bom humor e a insônia. De mamãe, não ser subalterno, nem puxa-saco.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

UM PAPO ANTIGO

 Um papo antigo.
(por Antonio Samarone)

Encontrei o Dr. Cardoso no cafezinho do Ferreira Costa. Conheci o doutor no Adauto Botelho. Um psiquiatra erudito, com um amplo saber bacharelesco, que sabe pouco sobre quase tudo. Os atuais psiquiatras são especialistas, sabem muito sobre quase nada.

O Dr. Cardoso, 86 anos, continua durinho e com a memória preservada. É um conservador esclarecido, orgulhoso de suas crenças e preconceitos. Continua um pessimista, não acredita que o Brasil tenha jeito, principalmente devido ao seu povo miscigenado.

Em uma breve conversa, o Dr. Cardoso esbanjou a sua cultura. Justificou a inviabilidade da civilização no Brasil, citando o seu livro de cabeceira: “Tratado das Degenerescência na Espécie Humana” (1857), de Augustin Morel. Ele foi enfático: "a miscigenação é a principal causa da doença mental."

Essa tese assustava o escritor Lima Barreto, como uma fatalidade.

"As taras, vícios, traços físicos e morais do nosso povo miscigenado, inviabiliza uma civilização no Brasil. Temos um povo imprestável. A democracia é uma utopia, no Brasil. Precisamos de muita coerção e de um regime forte." O Dr. Cardoso só faltou dizer, sem uma ditadura, o Brasil não tem jeito."

Eu pensei em reagir, mas respeitei os 86 anos de Cardoso.

Ele prosseguiu: "o nosso conterrâneo Sílvio Romero, acreditava na viabilidade do embranquecimento, e na redução progressiva da degeneração da raça miscigenada. Um equívoco, acentuou quase gritando, o Dr. Cardoso. "Eu penso como Nina Rodrigues, sem repressão, esse lado bárbaro e selvagem dos miscigenados explodirá. Veja a violência no Brasil."

Comecei a enxergar os males do antigo pensamento psiquiátrico. O Dr. Cardoso conhece a obra de Emil Kraepelin, leu no original em alemão. Desconfia do pensamento Freudiano.

Por desencargo de consciência, descrente da importância da contra argumentação, disse-lhe que concordava com Darcy Ribeiro, em seu livro, “O Povo Brasileiro” – 1975, que considero a miscigenação uma grande vantagem evolutiva, e que torna a cultura do nosso povo rica e criativa. O nosso atraso é outro.

Ele fulminou: “você continua comunista!”

Paguei os cafezinhos e sair pensativo. Que papo antigo!

Talvez a psiquiatria atual, dependente dos psíquicos fármacos, seja um mal menor.

O Dr. Cardoso não está só. Usando um pseudônimo, ele ainda participa dos debates nos grupos de médicos no WhatsApp. Quase sempre, as suas ideias são aplaudidas.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

O SERGIPANO JOÃO RIBEIRO

 O sergipano João Ribeiro.
(por Antonio Samarone)

Luiz Antonio Barreto contava ter ouvido de Gilberto Freire: “Em Sergipe, grande é João Ribeiro.” Claro, o intelectual pernambucano visava diminuir Tobias Barreto, que dominou a escola jurídica do Recife.

Entretanto, Gilberto Freire estava certo. Intelectualmente, João Ribeiro foi o maior dos sergipanos.

João Ribeiro nasceu em Laranjeiras, em 24 de junho de 1860, no dia de São João. Foi batizado como João Batista Ribeiro de Andrada Fernandes. Depois foi cortando. Ficou órfão de pai, aos oito anos. Foi criado pelo avô, um liberal que possuía a maior biblioteca de Sergipe.

João Ribeiro fez os primeiros estudos em Laranjeiras, onde foi colega de turma de Antonio Militão de Bragança, o mais importante médico em Sergipe, na transição entre os séculos XIX e XX. Depois transferiu-se para o Atheneu, em Aracaju.

No Atheneu, João Ribeiro foi colega de Silvério Fontes, depois médico que clinicou em Santos, onde fundou o movimento socialista no Brasil. Silvério Fontes, pai do poeta Martins Fontes, é outro sergipano pouco conhecido.

Com tantos amigos médicos, João Ribeiro foi à Bahia estudar medicina. Não gostou. Migrou para o Rio de Janeiro e matriculou-se na Escola Politécnica, para ser Engenheiro. Também não gostou. Virou historiado, jornalista, gramático e filólogo.

João Ribeiro foi professor de História Universal no Colégio Pedro II. Escreveu, publicou e pensou muito. Escreveu três gramáticas e duas História do Brasil.

Em 1894, João Ribeiro formou-se em ciências jurídicas e sociais, na Faculdade de Direito no Rio de Janeiro. No ano seguinte, foi viver na Europa, representando o Brasil em atividades literárias.

Quando a Academia Brasileira de Letras foi criada, em 1896, João Ribeiro estava na Europa. Dois anos depois, foi eleito para a Academia, e incluído entre os fundadores.

Publicou estudos sobre filologia, poesia, ficção, memórias, crítica literária, antologias, ensaios, almanaques, traduções e dicionários. As obras completas de João Ribeiro compõem-se de 57 volumes.

Uma sugestão a Secretária da Cultura, Antônia Amorosa: republique essas obras, para ressuscitar o maior dos sergipanos e tirá-lo do esquecimento.

Os sergipanos precisam de autoestima.

Dos eruditos sergipanos, que eu tive acesso, escreveram sobre João Ribeiro: Jackson de Figueiredo, Laudelino Freire, Sílvio Romero e Pires Wynne.

Entre os contemporâneos, conheço um belo livro de Núbia Marques, “João Ribeiro sempre”, publicado em 1996. Já ia esquecendo. Em 1979, o Governo de Sergipe publicou “A Língua Nacional e outros estudos linguísticos”. Muito bom.

Finalizo, com um trecho da autobiografia de João Ribeiro: “Os homens de pouca alma são práticos, ativos, rápidos e amigos das experiências. Os de muita alma são de natureza indecisa, platônicas, inúteis e incapazes de perceber as conveniências próprias. Eu nasci com muita alma.”

Desconheço os novos estudos sobre João Ribeiro. Quem pode me ajudar?

João Ribeiro casou-se com Dona Leopoldina Carneiro de Mendonça, e tiveram 16 filhos. Cresceu e multiplicou. Faleceu em 1934, no Rio de Janeiro.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

A MEDICINA E SUAS HISTÓRIAS

 A medicina e suas histórias.
(por Antonio Samarone)

Independente dos avanços do saber médico sobre o corpo, da maior eficácia dos tratamentos, do uso de saberes cientificamente comprovados por “evidências”, do aumento da vida média, apesar disso tudo, a insatisfação da sociedade com a medicina é crescente.

No geral, a cura é atribuída a vontade de Deus e os erros ao fracasso dos médicos.

Dirão os mais antigos: sempre foi assim! É verdade. Só que antes, a medicina não possuía nem os recursos, nem os saberes atuais. A medicina era uma prática errante, beneficiada por uma lei natural: em regra, “as doenças evoluem para a cura”.

Na Grécia antiga, a comunidade de Abdera, contratou Hipócrates, isso mesmo, Hipócrates de Cós, o pai da medicina ocidental, para curar o filosofo Demócrito, tido como louco, por conta do seu sorriso afrontoso e provocador. Demócrito foi considerado louco, por rir de tudo e de todos.

Dizia a carta de convite a Hipócrates: “Demócrito se tornou doente pela grande sabedoria que adquiriu. Ele não dorme e ri de todas as coisas. Ele ri dos mudos, dos melancólicos e mesmo dos que parecem felizes. Ele ouve as vozes dos pássaros e recita odes nas madrugadas. Hipócrates, venha ao nosso socorro”.

Hipócrates respondeu: “bem-aventurados são os povos que percebem que os homens bons são as suas próprias defesas, não as torres, nem os muros, mas os úteis conselhos desses homens sábios.”

Na medicina grega, a loucura era desencadeada pela fleuma e pela bile. Se a causa for a fleuma, os pacientes ficam calmos, são os doidos mansos; se for a bile, o louco é inquieto e agitado. Surtam!

Tratavam-se as crises de loucura com o heléboro, um veneno. A medicina grega tem origem na divindade de Apolo e na arte de Asclépio.

No consulta, Demócrito advertiu Hipócrates: “viestes a mim como se eu estivesse louco. Pronto para me prescreve o heléboro, que obscurece a reflexão dos sadios.

Hipócrates ensinou:

“enlouquecemos em função da umidade do encéfalo, onde reside a alma. A alteração do encéfalo ocorre pela fleuma e pela bílis. Os homens não elogiam a arte medicinal, atribuem os seus benefícios unicamente aos deuses.”

Como se vê, essa visão sobre a impotência da medicina é antiga.

Hipócrates não encontrou loucura em Demócrito, ao contrário, considerou toda a população de Abdera melancólica, e encantou-se com a sabedoria de Demócrito. A loucura é um dom de Apolo, deus, médico e adivinho.

Demócrito foi um filosofo pré-socrático, o primeiro a enunciar uma teoria do átomo. Foi seguidor de Leucipo.

Machado de Assis quando escreveu o Alienista, baseou-se no pai da medicina, internando toda a população na Casa Verde.

Quem ainda não leu o Alienista, está na hora. O download é gratuito.

Hipócrates estabeleceu os princípios, para o exercício da boa medicina, ensinada por Asclépio.

Foi nesse encontro com Demócrito, que Hipócrates formulou o seu mais importante aforismo: “A vida é curta, a arte longa, a oportunidade fugaz, a experiência enganadora e o julgamento difícil.”

Os médicos atuais, filhos de Hipócrates, abandonaram a arte médica, ensinada pelo pai da medicina. Guiando-se apenas pelo mercado e tendo a ciência como miragem.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

A FÉ REMOVE MONTANHAS

 A fé remove montanhas...
(por Antonio Samarone)

Ontem, assisti ao nascimento de mais uma peregrinação, em Sergipe. Pelas dificuldades da trilha, uma caminhada longa, em terreno íngreme, ao pé da Serra. Só a fé movia aquelas pessoas. Velhos, crianças, curiosos e muitos devotos.

A fé não precisou remover a montanha, os devotos se moveram até ela.

Em breve, essa peregrinação de Santa Dulce assumirá as dimensões das de Divina Pastora e Nossa Senhora Aparecida.

Essas manifestações segue a lógica da psicologia das massas, como dizia Freud. Coletivamente, as massas obedecem a um inconsciente médio, onde a exaltação da fé atinge a todos, com um intensidade superior a fé individual de cada um. Até dos incrédulos! Não se trata de acreditar ou não, basta sentir.

Numa sociedade atomizada, onde o individualismo domina, esse retorno ao sagrado, a fé tridentina, é uma forma de resistência a teologia da prosperidade.

O padre Zezinho descreveu em verso, essas manifestações de fé:

“É fato que a palavra não alcança, que nenhuma explicação sabe explicar, é muito mais do que vê um mar de gente, terá que ter simplicidade, para chorar sem entender.”

Em quase todas as religiões, o coração é sede dos sentimentos, da psique, da inteligência, alegria e tristeza, amor e ódio, aflição e sofrimento, da coragem e do espírito. O coração é o interior do homem, só Deus o conhece. Tudo reside no coração. A demonstração de amor continua sendo a imagem do coração.

As peregrinações atingem o coração. Foge da racionalidade do discurso científico e das narrativas profanas. O sagrado é uma dimensão humana, de crentes e descrentes, de fiéis de ateus.

No final do Dezenove, a ciência descobriu esse equívoco, comprovou que tudo isso encontra-se no cérebro, independe da transcendência. A vida foi dessacralizada.

A filosofia do século XIX matou deus, criou o humanismo. Sentimos hoje, a urgência da ressacralização da vida, uma volta a metafísica.

O coração continua a sede da alma. Para as religiões pouco mudou. A adoração continua ao Sagrado Coração de Jesus. Não se adora o cérebro de Jesus.

Por outro lado, as igrejas católicas estão vazias, inclusive nas missas dominicais e as peregrinações lotadas de gente.

O que houve? O clero se afastou dos devotos, perdeu empatia. São surdos para as pregações do Papa Francisco?

Falta a Igreja católica perceber a fé. Sair do auto isolamento burocrático. Acho que não perceberam que os devotos estavam ali, pela fé em Santa Dulce.

Foi isso que observei na peregrinação de Santa Dulce. Os devotos precisam de novas Santa Missões? Perguntam os intelectuais...

Respondo: Sim!

Se for para conter o avanço da teologia da prosperidade e a ilusão na sociedade do desempenho, que venham as Santas Missões.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

VOZES DAS SECAS

 Vozes das secas...
(por Antonio Samarone)

Recebi do talentoso escritor Robério Santos, um livro com um título estranho: 77.15.32. Isso mesmo. De primeira, não conseguir decifrar o enigma. Se o título fosse pelo menos por extenso: setenta e sete, quinze e trinta e dois, ficaria mais fácil.

O Quinze foi o primeiro romance de Rachel de Queiroz, publicado em 1930. O Quinze de Rachel, conta a história de Chico Bento e Cordulina, um casal de retirantes que foge seca de 1915.

Li Rachel na adolescência, na biblioteca da Igreja.

Robério Santos é ponta de rama da brava família dos Cearás, gente que fugia de todas as secas. Gente, que há muito tempo, estabeleceu-se na Cruz do Cavalcante, em Sergipe.

Pensei: 77.15.32 deve falar sobre as secas de 1877 (a seca de mil dias), 1915 e 1932. Quando menino, ouvi histórias miserentas sobre a seca de 32.

Acertei! É um livro sobre as secas no Ceará e os seus retirantes. Um tema esquecido. Hoje se fala mais em aquecimento global e enchentes.

Robério sabe quase tudo sobre o cangaço, tem um canal no Youtube, muito bem frequentado, chamado o Cangaço na Literatura. Descobri que também sabe sobre as secas.

Robério Santos, em seu livro corajoso, esmiúça sobre a criação de campos de concentração, durante a seca de 1932. Espaços fechados de segregação, campo de esfomeados, os Currais do Governo. Confesso a minha ignorância sobre o tema. Isso não se ensina nas escolas.

“O único bicho que não se come é urubu. Já tentaram comer? Teve gente que tentou, mas demorou mais de cinco horas para cozinhar e nem dava para comer direito. Ô bicho fedorento!” – um trecho do livro de Robério Santos.

O livro de Robério não é de história, não é tese de faculdade, não é um ensaio, não é também o que vocês estão pensando. E é o que, um Romance?

Não sei! Só sei que o livro é bem escrito. Ele escreve em linguagem literária, indo além do texto jornalístico, que informa sem emoção.

Sugiro aos meus amigos letrados, que vivem em lançamentos de livros, em saraus, em debates intermináveis nas Academias, à procura de talentos, mendigando um bom texto, um bom capítulo, um parágrafo, pelo menos uma frase genial.

O livro de Robério Santos é bom. O texto é agradável. Uma história de Henedina e Trajano, no furação das secas.

O livro trata das secas cearenses, mas descobri, por fotos publicadas, que o poço artesiano da Praça da Igreja, em Itabaiana, onde hoje tem um coreto, foi um cata vento construído na seca de 1932.

Uma desesperada busca por Água. A água de Itabaiana deu salobra, não prestava nem para lavar roupa, nem para banho. O sabão de soda não espumava e os cabelos endureciam.

Cansei de tomar banho com essa água dura. Não tinha outra.

O livro 77.15.32. de Robério Santos é uma exceção, no apagado e pachorrento mercado editorial de Sergipe.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

UMA NOVA DEVOÇÃO

 Uma nova devoção.
(por Antonio Samarone)

O Arraial de Santo Antonio, depois Villa de Santo Antonio e Almas de Itabaiana completaram 400 anos. Séculos de devoção, ao Santo português.

A partir dos meados do século XX, Itabaiana Grande se transformou em um polo de comercio e transporte. A igreja católica perdeu força e a devoção a Santo Antonio ficou nas Trezenas e na Festa dos Caminhoneiros.

No último Censo, Itabaiana ultrapassou os cem mil habitantes, virou polo de desenvolvimento. Informalmente, o agreste se tornou uma Região Metropolitana (a grande Itabaiana). A economia disparou e está tomando nova direção.

Na última década, a antiga lógica política de Itabaiana, fundada nos conflitos e na politicagem, no compadrio e na mentira, na violência e na perseguição foi superada. Uma administração moderna, está preparando a cidade para o seu futuro.

A falsa disputa política (abelhas e mangangás) atrasou o desenvolvimento de Itabaiana. Eram iguais! O nascimento de uma gestão profissional, de uma política voltada para o bem comum, impulsionou esse novo momento da cidade.

O novo nasceu! Itabaiana Grande já está com cinto de segurança e assento na vertical, aguardando o novo voo.

No campo da fé, uma novidade. Explodiu uma nova devoção. Uma devoção a Santa Dulce dos Pobres.

Não sei explicar!

Claro, o fato de ser uma Santa nossa, brasileira, quase de carne e osso, com família, amigos, devotos, todos conhecidos. O fato do principal milagre, que levou a santificação, ter ocorrido em Itabaiana, tem muita importância, pelo menos em Itabaiana.

Considero as ações do engenheiro Ancelmo Rocha, um peregrino por vocação, importantes. Considero também o trabalho de Marquinhos e da sua família, da Rádio comunitária e do seu esforço em espalhar a fé, da Secretária de Turismo de Itabaiana, Sonia Maria de Carvalho, do Padre Almir e a sensibilidade do Prefeito.

Mesmo assim, ainda não tenho uma explicação sólida sobre esse crescimento da fé em Santa Dulce, em Itabaiana.

Recebi, em sonho, uma mensagem de Zalmor, devota de Santo Antonia e maior zeladora da Igreja, no século XX. “Deixe de besteira, seu Samarone. Não existem razões. O crescimento da fé em nossa Santa é mais um milagre. As coisas de Deus não precisam de explicações.”

Zalmor está certa. Do Paraíso, ela enxerga melhor.

Entretanto, o fenômeno do crescimento na devoção da Santa é mais amplo, pelo menos na Bahia e em Sergipe. Não com a mesma força de Itabaiana, a cidade dos milagres.

Em Aracaju tem uma Paróquia de Santa Dulce, aos cuidados do competente e zeloso Padre Zé Lima. A devoção em Itabaiana é forte entre os leigos.

O Prefeito de São Cristóvão procura puxar a brasa para a sardinha dele. Movimenta-se para transformar a velha Capital, num polo de turismo religioso. Ele está certo. Mas a fé não se cria por decreto.
Mas, parece que Santa Dulce escolheu Itabaiana.

No domingo, 06 de agosto, está nascendo um novo Centro de devoção e peregrinação: uma Ermida ao Pé da Serra. Em pouco tempo, se somará as peregrinações de Divina Pastora e a de Nossa Senhora Aparecida, em Ribeirópolis.

No domingo, na condição de devoto de Santo Antonio, estarei lá, para ver essa nova devoção de perto.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

OS MITOS DO REISADO

 Os Mitos do Reisado.
(por Antonio Samarone)

A repartição do Boi!

No final dos Reisados, um auto popular, existe a farsa do boi, onde, simbolicamente, o boi é repartido entre os presentes, numa lógica hierárquica e galhafosa. Uma brincadeira simpática e bem aceita.

Repartir o boi, em folguedos populares, é uma tradição em desuso. Repartir o boi é uma comemoração pagã, que reproduz a criação da humanidade, na mitologia gregos.

O Reisado é um folguedo natalino, vindo de Portugal. Uma referência aos Reis Magos. Na primeira parte, uma comemoração cristã, na segunda, com a entrada do Boi, um comemoração pagã.

Em Moita Bonita, Região Metropolitana de Itabaiana, o Baile Estrela, um belíssimo Reisado, criado por Roberto, ainda encanta as pessoas. Roberto é o Mateus (palhaço) do Reisado. (foto)

Antes, nas queimas dos Judas, no Sábado de Aleluia, se dividia a herança de judas entre os presentes. na mesma lógica da repartição do boi.

De onde veio essa repartição do boi? Da mitologia grega!

Houve uma reunião entre mortais e imortais, no Campo das Papoulas, para se estabelecer os limites e as diferenças. Nessa assembleia, houve uma primeira repartição do boi.

O local da reunião é simbólico, como se sabe, é das papoulas que se extrai o ópio.

Para a reunião, Prometeu sacrificou um boi e fez uma divisão em dois lotes: no primeiro colocou os ossos e os cobriu de gordura. No outro, colocou a carne dentro do estômago e cobriu com o couro.

Prometeu mandou Zeus escolher. Na ambição divina, Zeus escolheu o monte da gordura, e descobriu que só tinha ossos.
De imediato, como vingança, Zeus retirou o fogo dos humanos. Prometeu não aceitou, roubou o fogo e devolveu aos humanos.

Zeus, indignado com a trapaça, aplicou dois castigo: um a Prometeu e outro a humanidade. Prometeu foi acorrentado no cume do Cáucaso, para um suplício eterno.

Durante o dia uma águia devorava o seu fígado e pela noite o fígado se regenerava.

A cólera de Zeus, por ser enganado na repartição do boi, atingiu a humanidade através de Pandora.

Pandora foi a primeira mulher, antes, os homens se casavam com as ninfas. Pandora foi feita de barro e muita água. Ficou primorosa, tinha as feições de deusas, cabelos enfeitados de flores e era cobertas de joias.

Pandora casou-se com Epimeteu, irmão de Prometeu. Como presente de casamento, Pandora recebeu uma caixa fechada, cheia de maldades. Ao abri-la, Pandora liberou todas as mazelas para a humanidade. Só a esperança não escapou, ficou presa dentro da caixa.

Quando se pesquisa, percebe-se que o folclore faz sentido. De uma certa forma, reproduz os mitos fundadores da humanidade.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

ALONSO QUIJANO

 Alonso Quijano.
Por Antonio Samarone.

“Dom Quixote investe contra gigantes ameaçadores, que são apenas moinhos de vento. Liberta pobres injustiçados, que na realidade são bandidos e malfeitores irrecuperáveis; enfim, sai pelo mundo disposto fazer justiça, mas favorece o injusto, a consertar os erros, e mais os agrava que os conserta.” – Ferreira Gullar.

Lembrei-me do camarada Leozinho.

Leozinho pertence a segunda geração de militantes avermelhados, em Itabaiana. Desde cedo, empunhou a lança do combate à burguesia. Leu os textos proibidos, frequentou as células clandestinas, correu riscos, combateu o bom combate.

Na década de 1980, ajudou a fundar o PT. Integrou as suas hostes, enquanto o Partido era dos Trabalhadores. Leozinho professava a ética de princípios, numa concepção Weberiana. Não se tratava de radicalismos, mas de coerência.

Leozinho foi do PT quando se pagava para ser militante, deixou o Partido, quando a militância passou a ser remunerada.

Leozinho nunca transigiu, nunca conciliou, nunca fez conchavos. Pagou com o isolamento, com a exclusão, com o ostracismo. A sua presença era uma sombra para os carreiristas.

Leozinho era o nosso Dom Quixote.

Leozinho sucedeu a Tonho de Doci, Zé Martins, Nilo Alfaiate, Raimundo de Felismino, Zeca Cego, João Barraca, Faustino, entre outros, que sonharam com uma revolução proletária, numa terra de artesões e camponeses.

É evidente que Leozinho não teve sucesso em sua vida política. Remava sempre contra.

Sou testemunha, nunca soube de uma indignidade praticada por Leozinho. Podiam acusá-lo de inconveniência, ranzinzice, mau humor, intransigência, nunca de oportunismo.

Eu sei, oportunismo virou esperteza, quase uma virtude, mas não era. Os oportunistas eram desprezados pelos militantes, até descobrirem que dava certo, que era um caminho pavimentado para o sucesso político.

Há muito que não ouvia falar de Leozinho. Recolheu-se a vida privada, para envelhecer com dignidade. Escapou a Peste da Covid.

Ontem, fui visitar a Ermida de Santa Dulce dos Pobres, ao pé da grande Serra, e reencontrei Leozinho. Barbudo, hábito e alpargatas franciscana, um cruz de madeira no peito, e muita paz no coração.

Irmão Leozinho! Cumprimentei-o sem pensar, na emoção. Ele respondeu, a paz do senhor, irmão Samarone. Estávamos ali, aos pés da Santa Dulce dos Pobres. Leozinho manteve a coerência, até na devoção.

Leozinho, na reta final, imita o Ingenioso Hildalgo de la Mancha, do romance de Cervantes. Reconheceu a ilusão de tentar construir um paraíso na Terra, e voltou aos braços do divino, ao ninho da igreja.

Leozinho, por princípios, tornou-se devoto de Santa Dulce dos pobres. Espero reencontrá-lo no próximo domingo, dia 06 de agosto, na peregrinação da Santa, em Itabaiana (cidade dos milagres).

“Senhores - disse Dom Quixote – vamos passo a passo, pois nos ninhos de outrora já não há pássaros agora. Eu estive louco e já estou em meu juízo perfeito, fui Dom Quixote de la Mancha, agora sou, como já disse, Alonso Quijano.”

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

SAÚDE NÃO TEM PREÇO

 Saúde não tem preço.
(por Antonio Samarone)

Seu Walfredo, 72 anos, mais ou menos saudável, levava a aposentadoria em banho-maria. Sempre se cuidou. Recentemente, sentiu um indisposição neurológica, um forte formigamento nas extremidades.

Bateu a ansiedade. Walfredo pensou: ninguém morre de formigamento, entretanto, é melhor saber do que se trata. Antecipar uma suposta doença grave.

Walfredo resolveu, por precaução, marcar uma consulta na mais recente Casa de Saúde, em Itabaiana: a “Clínica Médica Científica”. Onde as novas tecnologias e a inteligência artificial, comandam os procedimentos.

A Clínica Médica Científica é a primeira em Sergipe, ligada ao mundo científico pelo 5G. Mandaram buscar na China, uma antena privada, para uso particular.

Walfredo foi imediatamente monitorado. Implantou-se três chips diagnósticos e um terapêutico. O dia a dia do mal-assombrado foi posto em vigilância absoluta. Nada do seu comportamento escapa aos rigores da ciência médica.

A ansiedade de Walfredo aumentou. Dormia e acordava esperando uma grande revelação, um diagnóstico precoce de uma doença grave, definitiva, que anunciasse o temível fim.

Walfredo, não observou um velha sabedoria: na velhice, pôr os pés nas instituições médicas é um caminho sem volta. A disciplina, o modo de vida, a alimentação, o comportamento prescrito pela medicina é uma condenação a vida cotidiana.

É uma escolha. O consumo de procedimentos médicos obedece a mesma lógica do consumo de qualquer mercadoria. O discurso “científico” não altera a lógica do lucro. A saúde passa a ser identificada pela intensidade do consumo.

Eu concordo com Foucault, em sua Arqueologia, do Saber: a medicina clínica não é uma ciência. Não responde aos critérios formais e não atinge o nível de rigor que se pode esperar da física, da química ou mesmo da fisiologia.

A clínica comporta um acúmulo de observações empíricas, de tentativas e de resultados brutos, de receitas, de prescrições terapêuticas e de crenças.

Como diz Dr. Átalo, o homeopata: a pretensão atual da clínica em guiar-se apenas pela ciência é um empobrecimento.
Entretanto, a clínica não pode excluir a ciência. Para ser romântico: deve ser ciência e arte!

Durante o século XIX, a clínica estabeleceu relações com ciências perfeitamente constituídas como a fisiologia, a química ou a microbiologia. Além disso, incorporou o discursos da anatomia patológica, uma presunção para tornar-se Ciência.

A chamada medicina científica da modernidade, a medicina artesanal, inspirada na propedêutica, tinha o cuidado dos doentes como o objeto principal. A clínica era soberana.

Na pós-modernidade, a medicina concentrou-se na doença. Reduziu a clínica apenas a um saber supostamente científico e os cuidados aos procedimentos. Fragmentou-se o sofrimento. E se estabeleceu a forma de mercadoria dos serviços médicos.

A anatomia patológica e o paradigma celular, avançaram para o paradigma molecular. O mapeamento do genoma humano foi o primeiro passo.

A medicina pós-moderna praticada na Clínica de Itabaiana, tenta fundamentar a prática clínica com ensaios estatísticos, pomposamente denominados de “medicina baseada em evidências”. Se tal ou qual conduta é baseada em evidências, nada mais natural que a transformá-la em protocolos.

A medicina de mercado empobreceu a arte médica, ao reduzi-la as exigências da produtividade e do lucro. Uma biomedicina centrada no corpo e no desconhecimento absoluto da pessoa.

A troca do doente pela doença foi a passagem do sujeito para o objeto, em outras palavras, o fim da medicina humanizada.

O Conselho Federal de Medicina reconhece essa desumanização de forma romântica, identificando-a ao desvio do comportamento dos médicos. O CRM acredita que introduzindo noções de humanidades na formação médica, a desumanização será superada. Uma preocupação discursiva que não toca na questão central.

O inevitável avanço da chamada inteligência artificial sobre a prática clínica, do big data, da internet das coisas, consolida a medicina do corpo, das doenças e a desumanização da medicina.

Enquanto isso, Seu Walfredo luta para adaptar-se a nova realidade. Luta para morrer saudável, de forma disciplinada.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

RETORNANDO AO MANUSCRITO DE PEDRO

 Retornando ao manuscrito de Pedro.
(por Antonio Samarone)

Pedro Ferreiro, foi a imagem da beatitude.

O homeopata Átalo Crispins, a maior cultura médica de Sergipe, comentando o meu texto "As virtudes da preguiça", onde revelo a descoberta do manuscrito, diagnosticou:

“Pedro era o que se chama hoje de Autista. Somente conversei com ele uma vez, mas como sou do ramo pois pertenço ao espectro autista, pude perceber logo. Como é um problema na comunicação é visto como doido, ou é psiquiatra!”

Continuando com a resenha do manuscrito de Pedro Ferreiro:

“A crítica, mesmo a mais feroz, se pode contestar. Já o elogio, se engole calado.”

“O Céu nos deu como contrapeso contra os fardos da vida, duas coisas: a esperança e o sono. Eu herdei a insônia e suspeito da esperança, o pior dos males.” Pedro conhecia Voltaire.

Kant acresceu o riso, entre as dádivas divinas.

Viver é perigoso. Pedro sabia que a felicidade está na transcendência. Em seu tempo, a felicidade não era uma aspiração imediata. A felicidade só existia como graça divina.

Somente, na pôs modernidade, a felicidade se transformou em feijão de feira, em aspiração universal. A felicidade como bem-estar, consumo, segurança e conforto.

Uma felicidade hedonista!

Entretanto, a sociedade pós-moderna, do desempenho e do cansaço, sequestrou o tempo. Atrelou o tempo apenas a produtividade do capital. Espalhou a insônia, a depressão, o Burnout e o suicídio. A psiquiatria transformou esse mal-estar em transtorno, e ofereceu um saída química.

Voltando ao manuscrito:

“O tempo foi uma criação do demiurgo, como a imagem móvel da eternidade.” Está escrito em um canto da página 11, do caderno.

O humanismo é a substituição de Deus pelo homem. Uma ilusão do iluminismo, que prometeu o progresso. Não poderia dar certo! O iluminismo estabeleceu que somente a ciência produz verdades. A pós-modernidade, como vingança, inventou a pós-verdade.

O fascismo é uma reação desesperada ao ressentimento, uma tentativa de comandar o mundo pela violência. O socialismo é uma reação romântica. Acredita, que o humanismo pode criar o paraíso na terra.

A futura guerra entre as potências econômicas (EUA X China), que se aproxima, será o último ato da modernidade. O que restará desse apocalipse tecnológico? O sapiens historicamente, superou as grandes crises.

A primeira edição de “Assim falou Zaratustra”, foi de apenas sete livros. Nietzsche acreditava que somente sete pessoas poderiam entender a sua mensagem. Depois descobriu, quem nem os sete entenderam.

Pelo pouco que entendi, Nietzsche acreditava que após a morte de Deus, o homem só teria dois caminhos: ou se tornar um super-homem ou ser o último homem. O que ele não previu é que o super-homem é o último homem".

“O homem é uma invenção recente, cujo fim pode estar próximo.” – Foucault.

Antonio Samarone (médico sanitarista).

AS VIRTUDES DA PREGUIÇA

 As virtudes da preguiça.
(por Antonio Samarone)

Foram encontrados os manuscritos de Pedro Ferreiro: elogio a vadiagem.

Situando o leitor, Pedro levou a vida pescando nos grotões da Ribeira. Tido e havido como doido manso. Vivia de uma banca de miudeza, tocada pela esposa, na feira de Itabaiana.

Para não ir longe, Pedro Ferreiro descendia da numerosa família de João José, Cristão Novo, que chegou à Matapoã, na primeira metade do século XIX.

Existem muitas histórias sobre Pedro Ferreiro, todas transmitida oralmente, boca a boca, sem comprovação. Agora apareceu um velho caderno, escrito à lápis, que está assinado por ele. O caderno foi encontrado numa casa que ele viveu, há mais de cinquenta anos.

Nem creio, nem descreio na veracidade do manuscrito. Apenas vou resumi-lo.

Logo na capa, um aforismo: “o elogio frontal, cara a cara, é um insulto.”

“Os jovens criticam, os velhos elogiam. Ninguém se defende dos elogios, eles atingem a vaidade. Todo elogio é falso.”

“Sou condenado, por doidice, disse Pedro, um elogio que não aceito.”

Segue o manuscrito:

“Viva ao ócio, em especial ao ócio sagrado (sacerdócio). O ócio da contemplação. Ao ócio dos filhos de Levi. No mundo da negação ao ócio (negócio), o ócio virou preguiça, um pecado capital.”

“Nunca se está mais ativo do que quando nada se faz, nunca se está menos solitário do que quando a sós consigo mesmo.”

“Na cosmovisão judaico cristã, após criar o mundo, Deus descansou no sétimo dia. Deus não cansa, o repouso foi parte da criação. O sabá dos judeus é esse repouso, onde o passar do tempo é suspenso. Sem esse repouso, o ser humano perde o divino, perde parte da criação.”

Parece que Pedro conhecia o Torá e a Cabala judaica. Livros trazidos por João José, em sua diáspora.

O pensamento de Pedro, está na música:

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/ Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/ A vida não para/ Enquanto o tempo acelera e pede pressa/ Eu me recuso faço hora vou na valsa/ A vida é tão rara.” – Lenine.

O pensamento de Pedro revive, num mundo do desempenho, onde o tempo é do capital e da produção. É o eterno retorno, de Nietzsche. Não há mais dúvida, o tempo é cíclico, uma imagem da eternidade.

O tempo das festividades não é parte do mundo do trabalho, pertence ao mundo da contemplação. O capitalismo transformou a festa em mercadoria.

“A inatividade constitui o humanum. Sem repouso, surge uma nova barbárie. É o silenciar-se que dá profundidade a fala. Sem o silencio não há música, mas apenas ruído, barulho.” – Chul Han

Flanar, zanzar, vadiar, remanchar, deixar para a amanhã o que se pode fazer hoje, andar ao léu, gazear, perder tempo, são formas de resistência à sociedade do desempenho.

No Brasil, só inventamos o ponto facultativo para os funcionários públicos. Ponto facultativo para todos!

Espero que os filósofos, teólogos e pensadores avulsos se debrucem sobre o pensamento de Pedro Ferreiro. Peçam uma cópia do manuscrito.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

A REPÚBLICA DAS GALINHAS

 A República das Galinhas.
(por Antonio Samarone)

Contratei Nininho, o melhor carpinteiro da Zona Expansão do Aracaju, para construir um galinheiro, no Solar São José. O abençoado é de Macambira. Um profissional descansado. Trabalha em câmara lenta.

A obra já entrou na terceira semana. E as galinhas esperando.

Cobrei pressa ao quase conterrâneo. Nininho, as galinhas mandaram perguntar quando podem vir para a casa nova. Ele filosofou: “doutor, morrer, a gente morre de qualquer jeito. Vamos pelo menos esticar o tempo. Quando se trabalha avexado o dia logo passa. Na valsa, o dia dura um eternidade.”

É isso, Nininho é um carpinteiro para quem não tiver pressa. Nininho trabalha em ritmo próprio. Profissional qualificado, boa gente, não cobra caro, mas não tem pressa.

Os arquitetos já sabem, quando querem um telhado complicado, chamam Nininho. Um arquiteto recém-formado, desenhou um telhado com 37 águas, com quedas diferentes, e ele deu conta.

No Solar, é somente um galinheiro.

O projeto é a criação de uma comunidade galinácea, onde todas as galinhas serão iguais perante a lei. Claro, ressalvando-se os galos. Eles são os símbolos do sol. São eles que anunciam o nascer do dia.

O galo, o vitorioso Chantecler, manda e desmanda no galinheiro. O seu privilégio é tão abusivo, que as galinhas são chamadas cientificamente de Gallus gallus domesticus. O galo é símbolo da maçonaria e da França. O galo é venerado no Islã.

Os galos são entronizados nas torres de muitas igreja. Os galos cantam, fazendo cucurucu e as galinhas cacarejam, fazendo cocorocó.

As galinhas são sacrificadas em rituais das religiões de origem africana. Por isso o cuidado: não se chuta galinha morta.

Depois que inventaram as granjas, as galinhas foram para um campo de concentração. Comem e tomam remédios 24 por dia. Desaprendem a ciscar, a sua maior habilidade. São galinhas virgens, não conhecem o galo. Em 90 dias, são descartadas para os abatedouros, encharcadas de venenos e antibióticos.

A galinha é de origem asiática. Foram domesticadas na Birmânia. As primeiras frangas chegaram ao Brasil, na Esquadra de Pedro Alvares Cabral.

O projeto é criar galinhas de capoeira. Aquelas da titela seca, com pouca carne. Vamos abolir a pena de morte, elas gozarão uma velhice digna. Terão o direito de galinharem, chocarem e constituírem famílias.

As galinhas são mães zelosas, agasalham toda a ninhada. O projeto é uma resistência as chocadeiras. Todos os pintos terão o direito ao amor materno. Acho aqueles pintos à venda em lojas de ração, tristes e infelizes.

As galinhas, e o galo, serão criadas soltas, ciscando insetos, capins, cobras, e tudo que bem entenderem. Na volta ao ninho, ao entardecer, encontrarão comida, água, conforto e cama forrada.

A Revolução dos Bichos, de George Orwell, chegará ao Solar São José.

Soube que esses galos de laboratório não cantam na hora certa. Isso pode ser agouro. Por isso, vou buscar o meu, no sertão de Paripiranga. Galos dos antigos, de crista levantada e esporão afiado. Ainda bem que as brigas de galos continuam proibidas.

O galo é um animal heráldico. Em meu galinheiro, será revogada a pena de morte. As galinhas chegarão a terceira idade, sem medo do cutelo.

O projeto servirá também ao experimento científico do professor doutor Villela (galinhas baseadas em evidências), sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Uma dúvida metafísica.

Em condições favoráveis, quantos anos vive uma galinha? Não se sabe. Muito menos a vida média dos galos. Dizem que o galo quando envelhece põe ovos. Agora, o doutor Villela vai desvendar.

No projeto, as galinhas terão direito a atenção veterinária, ração fresca e água potável. Serão vacinadas contra o gogo e a murrinha.

O sonho das galinhas é levar uma vida de cachorro.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

NINGUÉM SE SALVA SÓ

 Ninguém se salva só.
(por Antonio Samarone)

Na juventude, estudei Saúde Pública. Fiz carreira profissional. Busquei o magistério, movido pelo sonho de levar o pensamento crítico à conservadora faculdade de medicina.

Não deu certo!

Na saúde, o pensamento mercantil impôs a sua lógica. Como era uma questão de princípios, não acompanhei as novidades. Tornei-me, por opção, um dinossauro acadêmico.

Mesmo derrotado, continuei defendendo as causas perdidas.

A medicina trocou o doente pela doença. A saúde deixou de ser qualidade de vida e virou consumo. Entramos de corpo e alma no mercado das doenças.

Experimentei a experiência de gerir o mundo do trabalho, na DRT, e os conflitos da mobilidade, na SMTT. No trânsito é guerra, com muitas vítimas. Estou experimentando a gestão do mundo da cultura. Procurando entender.

A pós-modernidade sufocou as metanarrativas. Criou-se um tempo novo.

Na Idade Média o tempo era circular, sempre retornava. Na Idade Moderna, o tempo era linear, marchava em direção ao futuro. Era a crença iluminista. Na pôs modernidade, o tempo foi fragmentado em pequenos episódios, não possui uma direção.

Convivemos com o individualismo absoluto, sem referências, sem hierarquias. Nada é sagrado. São tempos líquidos, sem forma, como diz Bauman.

O nosso apego aos tablets e celulares é uma volta ao útero.

A autoridade natural dos pais, professores, sacerdotes, profetas, filósofos foi sufocada. A minha geração não dizia “não” aos pais! Boca de forno, forno!

Ouvi do experiente Seu Nogueira, porteiro do meu prédio: “doutor, o bicho mais difícil de se criar, é gente.” Por quê? Indaguei. Ele foi sucinto: “só o homem conhece a ingratidão.” Era a sabedoria, na velhice, de quem refletiu sobre a vida.

“Quando tratamos qualquer bicho com carinho, mesmo os mais brutos, eles devolvem o carinho. Gente, não! O homem é falso, dissimulado, apunhala pelas costas.”, sentenciou Seu Nogueira.

Fiquei pensando sobre a descrença humanista do Seu Nogueira, um homem antigo, que aprendeu a engolir sapos.

Na pós-modernidade, cada um cuida de si. As utopias foram substituídas pelo medo. Os projetos de vida perderam o sentido. A vida muda a cada esquina.

As relações humanas sempre foram complexas, de difíceis harmonizações.

Agravou-se!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

SERGIPE DEL' REY

 Sergipe Del’ Rey.
(por Antonio Samarone)

Antonio Risério, antropólogo, poeta e romancista baiano, escreveu uma “História do Povo de Sergipe”. A melhor, a mais completa, a mais verdadeira história de Sergipe que já chegou ao meu conhecimento.

O livro, um alentado volume de 600 páginas, que o autor humildemente define como um ensaio sobre o povo sergipano, foi publicado pela SEPLAN, em 2010, no Governo Marcelo Déda. A apresentação é da inquieta economista Lúcia Falcón, de boas lembranças.

Lúcia Falcón considera a obra poética. Não sei o que ela quis dizer com poética. Achei o elogio simpático, porém exagerado.

O livro esmiúça muita coisa de Sergipe. Fala dos quilombos de Itabaiana, atacados por Fernão Carrilho, em 1671. Fala dos Bantos, dos Jejes e dos Nagôs. Fala dos Boimés, Karapotós, Aramarus, Kaxagós e Xocós. Fala dos Tupinambás e dos Kiriris.

Fala de Lampião e Maria Bonita em Sergipe. Fala do açúcar e do algodão. Fala do Tenentismo, da ditadura militar e da democracia. Do vaqueiro e do boi e da invasão holandesa.

O livro fala do Céu das Carnaíbas.

Fala da passagem de Conselheiro por Itabaiana, em 1874, onde ele ganhou os primeiros seguidores. Levou de Itabaiana uma imagem de Santo Antonio, que viria a ser o padroeiro do Arraial do Belo Monte, em Canudos.

Confesso a minha ignorância: não conhecia essa história de Sergipe, de Antonio Risério. Futucando o acervo da Biblioteca Municipal Florival de Oliveira, estava lá essa preciosidade.

Itabaiana tem sido generosa comigo. Me botaram para trabalhar entre uma biblioteca e um museu. Me senti uma raposa no galinheiro. Nunca fechei a porta do gabinete e nem liguei o computador.

Voltando ao livro.

Risério é de uma erudição enciclopédica. Mais de trinta livros publicados. Gosto de quem sabe de tudo. Desconfio dos especialistas.

Risério passa um pente fino nas coisas escritas sobre Sergipe, põe em ordem, analisa, compara, cria uma narrativa inteligível, tendo o povo como protagonista.

Era o livro que eu pedia para Luiz Antonio Barreto escrever. Luiz Antonio não teve tempo. Perdemos essa síntese. Antonio Risério procurou cumprir a tarefa.

Diz Risério, no livro: “para uma tentativa de compreensão mais aberta, real e profunda da alma e da vida da gente da Cotinguiba, o xangô e a taiera tem muito mais a dizer do que a Academia Sergipana de Letras.” Sou forçado a concordar.

Recentemente, Risério foi notícia nacional empunhando ideias polêmicas. O homem pensa! Não se pode dizer o mesmo, de muita gente encastelada em cátedras acadêmicas.

Os baianos quando estudam Sergipe, vão fundo. As clássicas pesquisas de Luiz Mott clarearam muita coisa da história sergipana. Agora foi Antonio Risério.

Antonio Risério não se considera herdeiro de Sílvio Romero, Tobias Barreto, Felisbelo Freire, Joel Silveira, Gilberto Amado, João Ribeiro, Beatriz Goes, Terezinha Oliva, Luiz Antonio Barreto, Luiz Eduardo Costa e Manoel Bomfim. Contudo, herdou muito da melhor tradição intelectual sergipana.

Uma História do Povo de Sergipe é um livro de flashes, pistas, veredas, trilhas, picadas e atalhos. Não é uma enfadada tese acadêmica. É um livro vivo, cheio de opiniões.

Adoro os “achismos” de gente inteligente.

Requeiro a competente Antonia Amorosa, Secretária da Cultura de Sergipe, conterrânea da minha Aldeia: mande reeditar “Uma História do Povo de Sergipe”, e distribuir na rede escolar, nas feiras e mercados, nas bibliotecas, nas igrejas e terreiros, nas universidades, e a quem interessar possa.

Concluo, agradecendo ao pensador Antonio Risério: obrigado, por ter se interessado por Sergipe.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

A FARINHA DE ITABAIANA VIROU COMMODITY

 A farinha de Itabaiana virou commodity.
(por Antonio Samarone)

Ouvi na FM Itabaiana (93.1), que uma cooperativa de Campo do Brito está exportando a farinha de Itabaiana, para os Estados Unidos. São toneladas! A farinha será cotada em dólar, na Bolsa de New York.

O medo é que os americanos descubram o aipim rosa.

A mandioca foi o primeiro produto da Terra de Santa Cruz, anterior ao Pau Brasil. Unia Tupis e Tapuias. Era o trigo dos povos originários. Dela se extraía o cauim e o caxiri e se fazia uns filhós chamados beijus.

A farinha de mandioca e o cuscuz são a salvação da pobreza.

Pequeno, eu adorava a banana e jaca das moles, com farinha. Ainda gosto do pirão de qualquer coisa. Sem falar na farofa de João de Neco, enriquecida com a banha de porco.

Um prato que não leve farinha, para mim não vale muita coisa.

Se dizia no Beco Novo, “a farinha aumenta o que é pouco, engrossa o que é mole e esfria o que é quente.” Uma maravilha.

Para se fazer a farinha de mandioca, raspa-se e lava-se muito bem as raízes. Rala-se. Se espreme no tipiti, para se tirar a manipueira. Passa-se a massa seca na urupema. Lança-se a massa fina num forno de barro, aquecido a lenha, e mexe-se com o rodo sem parar. Até a massa ficar bem torrada e alva. A farinha fica redonda, doce, cheia de tapioca.

Essa é a tecnologia que eu via na casa de Pai Totonho, meu avô.
“Rala, rala a mandioca/ Tu de lá e eu de cá/ Pra fazer beiju de massa/ Pra gente se alimentar.”

Depois era fazer os beijus, uma festa para os meninos. Eu era viciado em beiju de amendoim.

Sem falar na farinha pó dos Rio das Pedras. Finíssima! Usada para fazer o engrossante e a papa dos bebês. Sou de família grande, tive a sorte de raspar muitos papeiros.

Mamãe acendia o fogo e eu gritava primeiro: o papeiro é meu! O papeiro é meu! Como no samba de Alcione.

Eu compro farinha a um caraibeiro, no mercado do Augusto Franco. Vou avisá-lo para estocar o produto em vasos, lacrados com cera de abelha mandaçaia. Existe o risco de escassez e especulação dos preços.

Os gringos estão comprando a farinha de Itabaiana em dólar. O pobre tá lascado, não vai aguentar a carestia.

Quem comeu a farinha de Itabaiana, comeu! Quem não comeu, não come mais! Os americanos descobriram o pirão e a farofa. O Tio San vai tocar o tamborim.

Por aqui, é o fim do pirão e da farofa de qualidade! Isso é inaceitável. Estou pensando em comprar uma quarta de farinha de Itabaiana e guardá-la de lembrança.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

OS PERIGOS DAS LEITURAS

 Os perigos das leituras.
(por Antonio Samarone)

“Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão/ Uma parte de mim pesa, pondera, outra parte delira/ Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém, fundo sem fundo,” – Ferreira Gullar

Germano, natural da Cajaíba, em Itabaiana, 38 anos, bacharel em direito pela Useal, nunca trespassou às portas dos fóruns. Quando perguntado se pretende trabalhar, a resposta é a mesma: estou estudando para concursos.

As dificuldades de Germano na profissão de Rui Barbosa, não se devem a preguiça ou a falta de leituras. Não! Ele lê sofregamente. Madruga lendo! Durante a pandemia, devorou a obra completa de Olavo de Carvalho.

Talvez o mercado do direito esteja saturado. As causas são lentas e demoradas.

Depois das leituras do confinamento pandêmico, passou a acreditar firmemente numa ameaça do credo vermelho, em Itabaiana.

Logo em Itabaiana!

Uma crença bizarra e inabalável, sem evidências. Não se fala em comunismo na cidade serrana. Não se sabe direito nem do que se trata. O último ceboleiro crente no bolchevismo, faleceu há trinta anos, nos braços da igreja romana.

Entretanto, para Germano, a ameaça vermelha é o seu moinho de vento. O bom combate.

De tanto ler Olavo e pouco dormir, se dissecou de tal maneira o cérebro, que ele perdeu o juízo. Sempre soube dessa verdade, Germano não foi o primeiro.

O engenhoso bacharel, influenciado por más companhias e certas leituras, participou ativamente do 08 de janeiro. Existem imagens dele quebrando o urinol (penico) do palácio. Um artefato do século XIX, trazido pela família real.

A vida de Germano mudou, depois do retorno de Brasília. Um pormenor: ele escapou, fugindo a pé até a cidade de Valparaíso de Goiás, e lá, pegou carona no caminhão de Brasilino do Volta.

No retorno, ele queimou todos os livros de Olavo. Desconstruindo as provas. Deixou a barba crescer, raspou a cabeça, eliminou os banhos, a exposição ao sol e suspendeu os relacionamentos. Está irreconhecível, calado e ressentido.

Um psiquiatra local, recém-formado nesses cursos à distância, acredita que Germano padece de um “transtorno delirante persecutório”. Esse médicos noviços querem patologizar a vida. Eu acho um equívoco do colega, Germano não é um doente. Apenas, tem pouco sal na moleira. É um fenômeno coletivo.

Eu não acredito em psiquiatra que nunca leu Freud.

Germano, depois do 08 de janeiro, é outro. Só a crença na ameaça vermelha continua inalterada. Ele continua vendo conspiração em toda parte, em todas as coisa, em todos os gestos.

Germano, não se pode esconder, ficou assustado com as ameaças de Xandão, reais ou imaginárias. Mudou a estratégia de combate.

No início, chegou a procurar um reitor famoso pedindo proteção. Foi escorraçado! O sábio reitor sabe que a hora é de recuos e dissimulações.

Germano, sentindo-se abandonado, deixou a política. Na verdade, ele nunca foi um militante. Foi um breve surto de porta de quartel.

Deus não desampara ninguém. Germano passou a acreditar que só as graças e a misericórdia divina podem afastar a ameaça vermelha.

A vida sempre é reinventada.

Hoje, ele se encontra recluso, orando e jejuando, numa pequena propriedade da família, nas grotas profundas da grande Serra.

A misericórdia de Deus nunca tarda.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

A QUÍMICA DA FELICIDADE

 A química da felicidade.
(por Antonio Samarone)

“Cega, a Ciência a inútil gleba lavra/ Louca, a Fé vive o sonho do seu culto/ Um novo Deus é só uma palavra/ Não procures nem creias: tudo é oculto.” – Pessoa.

O objeto da psiquiatria era as enfermidades mentais, ou seja, os transtornos da afetividade, inteligência, vontade e instintos. Na pôs modernidade, a psiquiatria foi convocada para cuidar da infelicidade.

O mal-estar foi medicalizado! Os fármacos dão conta, são eficazes, modulam o sofrimento?

Uma constatação: os atormentados, os que sofrem psiquicamente, os ansiosos e os deprimidos batem às portas dos consultórios psiquiátricos.

Não se trata de uma questão moral. O homem sempre procurou uma saída química para o mal-estar. Basta lembrar o consumo do álcool. A questão é se existe ou não uma saída química para o mal-estar, que possa modular o sofrimento.

Parte do mal-estar é determinado socialmente. Outra parte não. Independente da origem do sofrimento, os fármacos atenuam. Não é fantasia!

Os seres humanos possuem o seu cantinho de infelicidade. Mesmo que o universo conspire a favor, a infelicidade encontra-se em suas entranhas. A questão é se é lícito amenizar esse sofrimento com as drogas farmacêutica?

A sociedade pós-moderna desregulamentou e acelerou a vida, eliminou as referências. Acentuou o narcisismo. Ser feliz como objetivo da vida é uma novidade.

Em minha Aldeia, passamos da Era agrícola para a pós-modernidade direto, sem uma vivência com a modernidade. O choque foi maior.

A safra das pílulas da felicidade, começou com o Prozac (fluoxetina), em 1985. A Indústria farmacêutica não parou de inovar, lançou dezenas de pílulas da felicidade, aumentando a eficácia e reduzindo os efeitos colaterais.

O que separa a dependência das drogas ilícitas dos fármacos psicotrópicos é a dose e a racionalidade médica. No segundo caso, a dependência é mais controlável.

E possível amenizar a ansiedade e o mal-estar quimicamente? Sim!
Sou um insone crônico. Uma insônia sem ansiedade. Uma insônia herdada, meu pai passava as madrugadas acordado.

Não recorro aos medicamentos, até agora resisti. Seria eficaz? Claro! Mas tenho receio da dependência. Percebo que o conhecimento médico sobre a insônia repousa em bases físico/química e em suposições oníricas.

Qual é a maior limitação da felicidade química? Os fármacos não ensinam nada. Passada a crise, volta-se a condição inicial. A dependência torna-se absoluta.

Quando a superação do mal-estar é feita naturalmente, com o sofrimento, existe um aprendizado, um amadurecimento, uma superação positiva.

Entretanto, essa alternativa é inviável numa sociedade que entende a felicidade como um direito. Uma sociedade intolerante ao sofrimento. Busca-se a felicidade a qualquer custo, como se isso fosse possível.

Freud demonstrou a inviabilidade desse direito a felicidade. A vida não possui esse desejado sentido sublime. Mesmo quando se conquista os objetivos desejados, a infelicidade continua.

A psiquiatria orgânica acredita que a vida é apenas uma manifestação neurobiológica e que não existe fronteiras entre o orgânico e o inorgânico. Existem as correntes psicodinâmicas, que acreditam que a vida é a interação da psique com o meio ambiente, e a sociológica, que reduz a vida as relações sociais.

Boa parte são formulações ideológicas, com pretensões científicas. É uma longa polêmica, talvez sem solução.

Ou tudo é oculto, como diz a poesia de Fernando Pessoa?

Antonio Samarone (médico sanitarista)