sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O PAPA-FIGO.

 Papa-Figo.
(por Antonio Samarone)

Depois do coração, o fígado é o órgão humano mais prestigiado pelo povo. Como ensinava Galeno, até hoje, acredita-se que o sangue seja produzido no fígado. Tanto o sangue bom, como o sangue mau. Aos parentes, dizemos ser são sangue do nosso sangue.

O inimigo figadal é o inimigo profundo, o inimigo de sangue.

O fígado é a víscera responsável pelo temperamento das pessoas. Quem pensa pelo fígado é cheio de ódios, ressentimentos, atos impensados. Gente vingativa e cruel.

Vivemos uma epidemia de ódios. Estamos diante de uma enfermidade do fígado?

Na mitologia grega, como castigo dos deuses, uma águia devorava diariamente o fígado de Prometeu. “Libertei os homens da obsessão da morte, instalei neles as cegas esperanças e dei-lhe o fogo.” – Prometeu.

Aqui nasceu a consciência e a revolta do espírito.

Em minha infância, eu temia o Papa-Figo. A lenda do Papa-Figo é antiga.

Atualmente, as crianças possuem outros medos. Papa-Figo, Lobisomem, Bicho Papão, Velho do Saco, Saci Pererê, foram extintos.

Os medos são outros! Parte desses novos medos foram medicalizados, receberam um diagnóstico médico e um tratamento farmacêutico.

Nas origens, acreditava-se que o Papa-Figo eram certos ricaços, que adoravam fígados de crianças. Usavam os fígados das crianças, filhas dos seus escravos.

Na culinária Francesa, "foie gras" é uma iguaria de fígado do pato.

Durante a guerra fria, difundiu-se no Brasil, que comunista comia o fígado das criancinhas.

Na infância, eu pensava que o Papa-Figo era o guarda do DNERU (SUCAM), que realizava biopsia hepática, para descobrir precocemente a febre amarela, uma endemia rural.

Aquela biopsia cruenta era um terror. Era um Papa-Figo de carne e osso, fardado, agente do Estado.

Existe um vinho português chamado “PAPA-FIGOS”.

Que volte o Papa-Figo!

Antonio Samarone – médico sanitarista.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A CULTURA DOS DOCES DE TABULEIRO.

 A Cultura dos doces de tabuleiro.
(por Antonio Samarone)

“Quem ao filho agrada, a boca do pai adoça.” Ouvi muito na infância.

Em minha volta as raízes, pensei, vou buscar os doces de minha infância. Ainda existem? Em caso positivo, são os mesmos, ou inventaram novas receitas. Fui saber se o paladar médio é o mesmo, se a preferência pelos doces antigos permanece.

Cada geração tem os seus doces!

Eu sei, a incidência da diabetes cresceu. Para os portadores, o doce passou a ser um veneno. As saladas obrigatórias são castigos insuportáveis.

Para não misturar, os doces são muitos, cuidei primeiro das cocadas. Isso mesmo, das cocadas de tabuleiro. A baba de moça (doce de coco mole) era doce de rico.

O açúcar da cana é uma invenção árabe. Os índios usavam o açúcar diretamente das frutas e do mel de abelha. Não conheciam o açúcar manufaturado. Quem trouxe a cana para o Brasil foi Martim Afonso de Souza.

Não sei se guardamos os antigos livros de receitas. Estou procurando o livro de cozinha da Infanta dona Maria, de Itabaiana. Dona Mãezinha possuía o livro “Doceiras do Brasil”, de Constança Olívia de Lima, que ensinou o povo a arte dos sorvetes feitos em casa.

Ainda se faz cocada puxa, como as de Dona Rosita? Dona Gemelice ainda é viva? Ficávamos nas calçadas do Beco Novo, nos começos das tardes, esperando os filhos de Gemelice (Terto e Fio de Deus), passarem com os seus tabuleiros.

Dona Gemelice fazia o bolo Souza Leão de Itabaiana, um manauê de puba, com a cobertura mole. A minha memória guardou o sabor. Quando penso, a boca enche d’água.

Tenho saudade das cocadas puxas feitas em tachos de cobre, vendidos pelo ciganos.

Cocada é doce de menino, eu sei, mas continuo com esse vício infantil. Não troco uma cocada bem-feita por nada. Cocada pura, sem mistura, só de coco, é a minha gulodice preferida. Por conta da diabetes, só como escondido.

Eu gosto dos doces de tabuleiros de rua. Quando cheguei em Aracaju, não dispensava as cocadas de Lídio (o vermelho).

Preciso confessar que também gosto do doce de leite com ovos, aquele de bolotas, e do doce de banana em rodelas, com calda.

Gostava do quebra queixo de Seu Oscar. Já as mudinhas, aquelas cocadas com pedacinhos de coco por cima, nunca gostei.

Seria injusto esquecer o doce de batata de dona Aurelina, a mãe de Zé Gorducho. O ponto, era um segredo maçônico.

Eu Itabaiana, os “conviteiros”, que intermediavam os namoros, eram chamados de “cocadas”.

O doce de coco era o preferido por Machado de Assis e Rachel de Queiroz. Estou bem acompanhado.

Quem inventou a cocada? Com certeza, não foram as freiras de São Cristóvão. Lá, elas inventaram a queijada, uma cocada metida a besta. Cocadas, cocadas mesmo, as queimadinhas de tabuleiro, com o gosto do coco, não sei quem inventou.

No momento, procuro uma cocada de raiz de imbuzeiro, que em minha infância se chamava de “tijolo”. Soube que vinham de Jeremoabo, em pequenos caixões. Encarreguei um amigo de Bebedouro (atual Coronel João Sá) de procurá-las.

Nunca mais vi os meninos com tabuleiros de cocadas pelas ruas. Ainda existem?

Acho que não.

O indústria alimentícia entupiu tudo de açúcar e banhas sintéticas, derivadas de petróleo. Os biscoitos recheados de supermercado e as balas industrializadas viciaram o paladar com o açúcar.

Desapareceu o gosto original das frutas nos doces. O açúcar causou dependência e o povo engordou. A indústria de alimentos criou a epidemia de obesidade.

As bodegas não vendem mais as cocadas das doceiras.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

FUMA D' ANGOLA.

 O Fumo d’ Angola.
(por Antonio Samarone)

A medicina transformou o (CBD) Canabidiol (C21H30O2), substância presente na Cannabis sativa, em panaceia. Serve para quase todos os males. Virou uma especialidade médica.

O uso medicinal da maconha é milenar.

A marijuana recuperou o status de medicamento. O uso terapêutico dos entorpecentes é comum, basta lembrar os componentes do ópio.

Contraditoriamente, a medicina condena o uso do tetra-hidrocarbinol (THC), canabinóide com propriedades psicotrópicas e alucinógenas, por causar dependência. Gente, isso é hipocrisia, a indústria farmacêutica inunda o mercado, com produtos que causam dependência. Na verdade, condena o seu uso recreativo.

Em Sergipe, o Dr. Aristide Fontes relata que no alvorecer do século XX, os pescadores de Pirambu usavam o Pito do Pango, em suas aventuras marítimas:

“Pescadores habituados usam a maconha quando se encontram no mar em canoas ou jangadas. Fumam em grupos para se sentirem mais alegres, dispostos ao trabalho, e menos penosamente vencerem o frio e as agruras da vida do mar..."

Prossegue o médico:

"Depois de algumas fumadas, tocados pelo efeito da maconha, tornam-se alegres, conversadores, íntimos e amáveis na palestra; uns contam histórias; tais fazem versos; outros têm alucinações agradáveis, ouvem sons melodiosos, como o canto da sereia, entidade muito em voga entre eles.”

Essas histórias rolavam na Atalaia Nova, quando comecei a frequentá-la na época de estudante.

O psiquiatra sergipano Garcia Moreno, excomungava a maconha, fonte de vícios e crimes. Apontava a ação patogênica da maconha, podendo causar: eretismo cerebral; melancolia subaguda; esquizoidia; demência precoce; delírio alucinatório auditivo e confusão mental. Demência precoce é a atual esquizofrenia.

Historicamente, os médicos estiveram na linha de frente da demonização da maconha. Hoje, lideram o seu uso medicinal.

O clássico trabalho de outro médico sergipano, Rodrigues Dória, “Os fumadores de maconha. Efeitos e Males do Vicio”, apresentado ao Segundo Congresso Científico Pan-Americano, reunido em Washington D. C., a 27 de dezembro de 1915, foi o primeiro.

Outro médico sergipano, Eleyson Cardoso, afirmava:

“É principalmente no norte do Brasil onde sei achar-se o vício de fumar a maconha, mais espalhado, produzindo estragos individuais e dando, por vezes, lugar a graves consequências criminosas.”

Hoje, o médico sergipano Dr. Pedro da Costa Melo, lidera no Nordeste, os estudos sobre o uso medicinal da maconha. Um pouco de bairrismo: o doutor Pedro é Itabaianense, filho de uma comuna histórica.

Concordemos ou não, o protagonismo da Cannabis voltou pelas mãos da poderosa indústria farmacêutica.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

ACREDITAR EM QUEM?


 Confiar em quem?
(por Antonio Samarone)

A razão humana tem uma tendência para pensamentos delirantes ou assemelhados. A mente é um celeiro de ilusões. A nossa faculdade de análise é dirigida pelos desejos, interesses e ambições conscientes ou inconscientes.

Quem controla a consciência? O que é o inconsciente freudiano?

Para a ciência, a consciência é uma parte da mente, produtos do cérebro. O Eu é a consciência autobiográfica. Somos uma invenção do cérebro? A consciência somos nós, não existe uma dualidade.

A consciência é produto da evolução.

Essas verdades são frágeis. Como o cérebro, um monte de células estruturadas, produz a mente e como a mente produz a consciência?

A ciência patina, não responde de forma consistente como o cérebro faz a mente. A mente não é apenas um fenômeno físico-químico. As respostas metafísicas dependem da fé.

Não são questões simples!

A consciência é suspensa com o sono (sem sonhos), com a anestesia e com doenças cerebrais e mentais. A consciência é alterada pelo uso de substância. Como essas substâncias agem na alma?

As demências desmontam as explicações religiosas. O que ocorre com o espírito (alma)? Seguem outro caminho e abandonam antecipadamente o corpo?

A subjetividade é um imensa incógnita. A filosofia, a arte e a ciência são manifestações da mente, confirmadas ou não pela consciência.

A consciência desconfia dela própria. Aqui prá nós, uma desconfiança justificada. A fé não é necessária apenas a religião. A consciência é a mãe de todas as subjetividades.

Precisamos da fé. Talvez de uma fé objetiva, legitimada estatisticamente.

Sinto que a minha consciência anda sozinha, dirige os meus pensamentos. Também não controlo a ansiedade, ela chega. A quem cabe defender-me dessa chaga e de outras emoções patogênicas? As imagens produzidas pelas neurociências abrem fronteiras para integrar a mente ao corpo. Por fim a tradicional dualidade corpo/mente.

Acho uma bobagem interessada.

Em sentido diverso, a pôs modernidade incorporou a dualidade corpo/mente uma prótese, o celular. Somos hoje uma “trialidade”.

Urge o seu implante e a incorporação da memória do aparelho à nossa inconsistente e limitada memória. Inclusive com o acesso automático aos arquivos que estão nas nuvens.

Estou esquecendo o nome das pessoas. Sonho com uma lei que obrigue as pessoas andarem de crachá e com um código de barras na testa.

Um amigo, doutor em física, professor aposentado da UFS, acredita que a inteligência artificial é a única saída para controlar a arrogância da consciência, que a ninguém obedece.

O fanatismo político/religioso manipula eficazmente a consciência, mas com resultados duvidosos.

A inteligência artificial promete o controle da consciência pelo fanatismo racional, objetivo e planejado. Tudo sob o comando de uma nova religião, a ciência.

Estou aguardando!

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sábado, 21 de outubro de 2023

QUAIS MUDANÇAS?

Quais mudanças?
(por Antonio Samarone)

A divisão política irreconciliável entre as pessoas, não é um fenômeno apenas brasileiro. Aqui, a divisão é mais radicalizada.

Não houve um golpe em 08 de janeiro e a volta da ditadura, por falta de quem o liderasse. Bolsonaro fugiu para os Estados Unidos, e os outros patriotas, foram eleitos para o Congresso.

Se dependesse dos democratas, a invenção francesa tinha sido varrida. Ninguém mexeria uma palha.

A base, dos auto denominados "Patriotas", fez a sua parte. Acamparam nas portas dos quartéis, entoaram hinos e fizeram apelos apaixonados pela volta da tirania. Foram derrotados, mas não reconheceram, nem desistiram.

A divisão política do Brasil é real!

Não se trata de uma confusão generalizada, de uma nova Babel, onde ninguém se entende. Não! A divisão é de valores, visões de mundo e ideologias.

Essa divisão se manifesta em quase tudo, dos grandes conflitos ao cotidiano. No campo dos direitos humanos: a invasão armada das favelas, a matança de jovens negros, a bala perdida, a tortura e a execução sumária, são defendidas e até festejadas por uns.

Os que são contra, estão intimidados e impotentes.

A divisão é geral: nas questões ambientais. Nas guerras (Ucrânia e Israel), nas questões comportamentais (do aborto e as opções sexuais), no modelo de ensino. Até na saúde pública.

A denominação direita/esquerda perdeu a nitidez. Talvez ainda ajude na economia. A esquerda tenta domesticar o neoliberalismo, torná-lo mais humano, com políticas compensatórias de distribuição de renda. Os resultados são provisórios.

A famosa nova classe C, surgida nos primeiros governos Lula, voltou rapidamente para a fila do osso. Hoje, tenta-se novamente humanizar o neoliberalismo.

A herança escravocrata, as desigualdades e a violência foram as bases fundadoras da sociedade brasileira. Não há dúvidas. Só que antes, uma parte, sobretudo os jovens, acreditava que poderia construir um mundo novo no Brasil, através da política.

Esses, que estou chamando de progressistas, sucumbiram. A utopia no Brasil perdeu força. Hoje, a política não é vista como caminho, foi criminalizada.

O grupo que tinha fome e sede de justiça foi derrotado. Quem pôde, refugiou-se na caridade.

Por onde andam os Caras Pintadas?

Essa geração perdeu as ruas nas passeatas de 2013 (dos sem Partidos), para os futuros patriotas. Depois, eles prostram-se diante do Pato Amarelo, do mercado financeiro.

Na última quarta, fui ao lançamento da biografia de Jackson Barreto, um personagem contraditório da vida pública sergipana. Mas, a contradição é a regra dos homens públicos.

Não é do biografado que eu quero falar nesse texto. Nesse, depois falo! Nem vou falar da bem escrita e esclarecedora biografia. Jorge Carvalho foi cirúrgico.

Quero falar dos que lá estavam. Chamou a atenção a composição da plateia, que foi prestigiar o lançamento da biografia de JB: Poucos jovens, poucos petistas, raros bolsonaristas e ausência do novo bloco governista (um ou outro perdido).

Dominou a presença dos antigos progressistas (de ex comunistas a liberais), de gente que um dia acreditou nas mudanças (palavra desgastada).

Quero falar da gente que lutou pelo fim da ditadura, pelas Diretas Já, pela vitória de Tancredo no Colégio eleitoral e que se conformou com as mudanças de Sarney.

Em Aracaju, essa turma deu a maior vitória eleitoral a JB, no retorno das eleições diretas para as capitais, em 1985. Qualquer proposta política naquele tempo, precisava da marca: Mudanças Já!

A maioria dos presentes no lançamento (antigos progressistas) foi derrotada, em suas crenças políticas e em seus credos ideológicos. O mundo que sonhávamos construir, não deu certo!

Uma boa parte dos progressistas, nem lembra mais do que se tratava. Preferem agarra-se ao que deu certo, nas conquistas (entre aspas).

A derrota não é uma boa companhia. “As mentiras sinceras me interessam,” como diz a canção.

Um dos poucos remanescente desse bloco progressista, que pessoalmente venceu e ainda continua na ativa, ocupando um posto importante na vida pública, teve a ideia em reunir a turma das “Diretas Já”, que depois chegou a Prefeitura de Aracaju, para uma foto histórica.

Vamos chamar quem? Todos os que ainda se idêntica com aquelas mudanças. Olhamos para os lados, quase ninguém. Deixamos a ideia da foto prá lá. As pessoas não mais reconhecem como progressistas, que fizeram parte de uma crença política.

Fizemos uma constatação silenciosa: perdemos no principal. A nossa narrativa foi derrotada. Os progressistas foram politicamente extintos.

De quebra, a antiga maioria silenciosa se assumiu de direita, e boa parte de extrema direita. Ocuparam as redes sociais com as suas teses, esperando novas chances. Amigos, colegas de universidade, que passaram a juventude calados, hoje carregam orgulhosamente a bandeira dos patriotas.

Hoje, esses patriotas torcem apaixonadamente pela vitória de Javier Milei, nas eleições da Argentina. Aliás, Milei é o candidato preferido da juventude portenha.

Hoje, esses patriotas sonham com a volta de Trump!

E os progressistas daquele tempo? Bem, esses acabaram por inanição, esquecimento, velhice ou morte. Alguns por conveniência.

Não se pode entender a biografia de Jackson Barreto (um progressista), escrita por Jorge Carvalho, sem observar essas mudanças por que passamos.

A foto, me parece ser da safra do grande César.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.
 

A SOLIDÃO POSSÍVEL.

 A Solidão possível!
(por Antonio Samarone)

Conta-se que Santo Antonio para fugir das tentações, enclausurou-se por 20 anos. Os devotos arrombaram a porta. Encontraram o Santo do mesmo jeito: não estava flácido pela falta de exercícios, nem desencarnado pelos jejuns. A solidão voluntária afastou os demônios.

A solidão pode ser boa, má ou mais ou menos.

A solidão involuntária dos velhos é o último refúgio, antes da morte. Nascemos só! Sentimos sozinhos, o sopro do mundo na nuca. Morremos só! Não temos companhia no suspiro final. E, vivemos só, mesmo quando acompanhados.

Nada disso consola Romeu.

Chegamos de uma expedição ao Vale do Cariri. Fomos em busca da proteção do Padim Ciço. Romeu, o mais velho, sentiu o peso. Quando tentava falar na roda de amigos, onde todos falam ao mesmo tempo, onde se procura uma brecha para contar as mesmas coisas, as mesmas novidades, as mesmas chacotas, os olhares nunca se dirigiam a ele.

Romeu aumentava o volume da voz, gritava, gesticulava sem sucesso. O direito a palavra em grupos, mesmo de amigos, obedece a uma hierarquia.

Romeu concluiu: “não tenho mais nada a dizer pessoalmente a ninguém.”

Romeu se considera um retumbante fracasso, foi derrotado em quase todas as ambições. Não percebeu que as derrotas são partes da condição humana. A vaidade é necessária, para amenizar as derrotas. A vaidade é uma ilusão que fortalece a autoestima.

O grupo cobrava de Romeu, com insistência, que ele cuidasse do seu corpo. Nada de doces e gorduras! Que ele procurasse os médicos, os exames e os remédios. Enfim, uma vida saudável.

Isso o aborrecia!

A crise de Romeu é existencial. É a falta de sentido das coisas. Colocar a glicemia e colesterol nos parâmetros da ciência (entre aspas) médica, não resolve a sua angústia.

Romeu se refastelou com a galinha de capoeira que comemos, lambeu os dedos sujos de graxa, daquela gordura amarela das galinhas antigas. Não dispensou as cocadas de raiz de imbuzeiro.

“Vá a merda as dietas, os conselhos e os cuidados, pensou Romeu consigo mesmo. Nenhum cuidado afasta as demências! Não existem evidências, só suposições.”

Romeu retornou da viagem convencido que a vida virtual das redes sociais não é essa desgraça toda, como os intelectuais acreditam. O problema não está na virtualidade. “Aqui eu falo, sem precisar disputar. Me comunico, logo existo. Deixamos de ser somente corpo e alma, somos uma tríade, incorporamos o celular. Um prótese indispensável” – disse Romeu.

Ou alguém acha que seria mais feliz sem ele?

“A minha solidão é interativa”, Romeu chegou a dizer essa asneira.

Os antigos Eremitas se isolavam em busca de Deus. Os novos, em busca de uma janela para exibir-se, de um palco para o seu narcisismo. As redes sociais são espelhos.

“Diante do seu teclado, o indivíduo é o mestre do mundo.” – G.
Minois. Aqui se mente, conta-se vantagens, expõe-se uma felicidade quase permanente. No teclado se faz revoluções, guerras, luta política e, sobretudo, manifesta-se um ódio guardado.

A realidade perdeu a graça. Aliás, o que é mesmo essa realidade?

Os filósofos desconfiam da solidão, de Aristóteles às luzes. E daí? O que eles sabem do sofrimento angustiante de cada um? A pós-modernidade apresentou uma falsa saída, a vida virtual. Isso só agrava a solidão, dizem eles.

Romeu discorda literalmente dessa tese. Acha que vida virtual se impôs e alivia a solidão. Não existem outros caminhos.

Eu, na dúvida, fico com Romeu.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

DOUTOR VENÂNCIO


 O Doutor Venâncio.
(por Antonio Samarone)

Venâncio comemorou os 70 anos, sozinho. Enviuvou recentemente. E os filhos? Bem, aí é outra história. A filha é dentista e mora em Portugal, e o filho, Germano, é militante de um grupo nazista, em São Paulo.

Não lembram do pai, nem o pai deles.

Venâncio Nogueira é doutor em filosofia pela USP, onde foi professor. Ao aposentar-se, Venâncio veio morar no Lagamar, terra de Júlia, sua avó materna. Comprou uma casa, num condomínio de luxo, em Itabaiana.

Venâncio envelhece com medo das demências. Não é a morte que nos assusta, são as demências.

Disse-me Venâncio: “Essa conversa que só envelhece quem quer, que idade é uma questão de “cabeça”, não é verdade, é pura embromação da turma da autoajuda.”

Se velhice não existe, políticas sociais de proteção aos idosos são desnecessárias. Basta que cada um pense que ainda é jovem. O Brasil está envelhecendo de forma desorganizada, cada um por si.

A velhice é uma caminhada nas trevas, imprevista, cheia de armadilhas. Venâncio não sabe como enfrentar a decomposição do corpo. Nem eu.

A medicina aponta caminhos tortuosos. Uma disciplina massacrante e a dependência da indústria farmacêutica. Venâncio é bem aposentado, mas os remédios já pesam no orçamento.

Venâncio montou uma estratégia para enfrentar os esquecimentos, cada vez mais frequentes. Os esquecimentos clássicos, para as coisas recentes.

Quando ele se lembra de uma tarefa, realiza de imediato, para não esquecer. Quando acorda, aplica logo a insulina no bucho, antes que esqueça. O problema é que pouco tempo depois, esquece que já tomou, e toma de novo. Um dia ele repetiu a aplicação cinco vezes.

Venâncio operou de catarata e passou a só precisar dos óculos para perto. Virou um aborrecimento. Como precisa botar e tirar os óculos com frequência, ele nunca se lembra onde os deixou.

Perde os óculos mais de vinte vezes por dia. Já pensou em amarrá-los num cordão e prendê-lo ao pescoço. Aquela coisa antiga.

Aos setenta anos, ele já viu quase tudo. Venâncio não suporta os noticiários. As notícias são as mesma, só muda os envolvidos. A bala perdida, as enchentes, as vilanias do poder, a morte de um notável, as guerras, a crise climática. Tudo jornal velho.

Venâncio só escuta as músicas da sua geração. Acha que depois de “Águas de Março” (1974), a MPB deu um retrocesso. Nisso eu concordo. Ele defende que “Águas de Março” é a segunda parte da “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Ponto final.

Não sei opinar sobre música, pouco entendo.

Venâncio encerrou a conversas com uma frase de livro: “só o desapego nos salvas das mazelas da velhice.” Sei não, acho isso consolo.

A velhice é pau, é pedra, é caco de vidro, é um corte no pé, é um espinho na mão, é a febre terça, é fundo do poço e o fim do caminho. Plagiando a música.

Mesmo assim, estamos adorando a velhice (Eu e Venâncio). Espero que seja infinita!

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

QUEM COMEU O BISPO SARDINHA?


 Quem comeu o Bispo Sardinha?

“Só a antropofagia nos une. Tupi, or not tupi that is the question” – Oswald de Andrade.

Em 1551, o Papa Júlio III criou a Diocese do Brasil, nomeando Dom Pero Fernandes Sardinha, um letrado de Sorbonne, o primeiro Bispo.

O Jesuíta Manoel da Nóbrega não gostou, e o desentendimento com o Bispo foi imediato.

A principal divergência: o Bispo não reconhecia os índios como filhos de Deus. Os jesuítas queriam catequizá-los e escravizá-los.

Dom João III, Rei de Portugal, chamou o Bispo de volta. Dom Sardinha zarpou de Salvador em 15 de junho de 1556, na Nau Nossa Senhora d’ Ajuda. Uma comitiva repleta de fidalgos. Dois Cônegos, duas mulheres casadas e mais de cem brancos. Entre esses, o Provedor Mor Antonio de Barros, pai do conquistador de Sergipe, Cristóvão de Barros.

No dia seguinte, 16 de junho de 1556, ocorreu o naufrágio.

Quem primeiro descreveu a tragédia foi o senhor de engenho, Gabriel Soares de Souza, em 1587, trinta anos depois do fato.

Segundo Soares, o naufrágio ocorreu no pontal do Cururipe, em Alagoas, onde os Caetés teriam jantado o Bispo. Essa visão virou verdade histórica. É o que se ensina nas escolas.

A versão de Gabriel Soares foi transcrita pelo Frei Vicente do Salvador, em sua história do Brasil, de 1627, e assim por diante. Essa mesma versão continua sendo repetida nos cursos de história.

Na verdade, essa história mal contada visava pôr a culpa nos Caetés. Uma acusação interessada. Os donatários da Capitania de Pernambuco queriam exterminar os valentes Caetés e precisavam de um motivo.

Um agravante: Sardinha foi comido enquanto ocorria o Concilio de Trento. A poderosa igreja exigiu providencias.

Em 1557, a Rainha de Portugal promulgou a escravidão perpetua de todos os Caetés e seus descendentes, considerados culpados pela morte do Bispo. A sentença eterna foi cumprida e a brava Nação Caetés foi exterminada.

Na versão oficial, a Nau com o bispo teria naufragada 16 dias após a partida. Se sabe hoje, que o naufrágio ocorreu no dia seguinte.

Em 1557, a Rainha de Portugal promulgou a escravidão perpetua de todos os Caetés e seus descendentes, considerados culpados pela morte do Bispo. A sentença eterna foi cumprida e a brava nação Caetés exterminada.

Entretanto, a morte do Bispo tem outra história. O historiador alagoano, Moacyr Soares Pereira, centrado em três cartas e um livro de Jesuítas, que viviam no Brasil na época do naufrágio, reinterpreta os fatos.

Uma carta do padre Antonio Blasquez a Inácio de Loyola, de 1557, informa: a Nau onde viajava o Bispo Sardinha, naufragou a sessenta léguas de Salvador.

Uma segunda carta, do padre Ruy Pereira, de 1561, descreve que o naufrágio ocorreu na enseada do Vaza Barris, nas proximidades da foz do São Francisco.

Observação: essa enseada é a descrita por Américo Vespúcio, onde existe atualmente a reserva de Santa Isabel, entre Pirambu e a Ponta dos Mangues, em Sergipe. Comeram o Bispo na Praia de Santa Isabel, em Sergipe.

A terceira carta (1586), do Jesuíta Cristóvão de Gouvea, confirma a enseada do Vaza Barris como o local do naufrágio do Bispo Sardinha. Não confundir com a atual bacia do Vaza Barris, no Mosqueiro.

Portanto, a sessão de antropofagia foi ato dos Tupinambás.

Uma das justificativas da ocupação de Sergipe (1591), foi essa vingança. Em sua história do Brasil, o frei Vicente do Salvador não deixa dúvidas:

“Cristóvão de Barros decidiu ocupar Sergipe para vingar-se dos gentios, que teriam comido o seu pai, Antonio Cardoso de Barros. Claro que outras motivações existiram.

Para deixar mais claro, cito a conclusão da revisão, feita pelo historiador Moacyr Soares, com quem concordo:

Em suma, a Nau em que ia o primeiro Bispo do Brasil, naufragou na Costa de Sergipe, na Enseada Vaza Barris, próxima a foz do São Francisco, e não em Cururipe, litoral de Alagoas. O Bispo e os seus companheiros foram devorados pelos Tupinambás, que viviam na margem direita do São Francisco, e não pelos Caetés, que viviam na margem esquerda.

Aguardo a contestação da história oficial.

Antonio Samarone – médico sanitarista.