sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A NÊMESIS DA MEDICINA


A Nêmesis da Medicina
Antonio Samarone de Santana. 

Os meus amigos estão doentes, nenhum sadio. Uns com pressão alta, outros baixa, o colesterol aumentado, a glicemia nem se fala, outros roncam dormindo, quando não estão com insônia, queda de cabelo, orelha de abano, calvície; os poucos que nada sentem, estão rodando de clínica em clínica fazendo rastreamentos, exames e mais exames, para antecipar as indesejadas doenças; outros ocupados nas academias, caminhadas, preocupados em seguir uma dieta saudável, que muda semanalmente, a critério das últimas pesquisas. Sem contar no consumo de especiarias exóticas, meditações, yoga, cada uma com o seu milagre. A medicina comercial tenta convencer pessoas sadias que estão provavelmente doentes, e a pessoas um pouco doentes que estão em estado grave. Um grande negócio.

Essa corrida à imortalidade, prerrogativa das divindades, se fortaleceu com a expansão da ideologia da vida saudável, juventude eterna e felicidade ilimitada. O sofrimento saiu da ordem do dia. O estilo vida saudável passou a ser obrigatório. Exercícios permanentes, trocar carne por peixe, exagerar nas folhagens, beber moderadamente (vinhos), sexo seguro, zero stress, exames periódicos, pílulas de alho, entre outros axiomas, se seguidos religiosamente, pode-se afastar o espectro das doenças, da morte e da invalidez. A medicina tem sido cúmplice no fortalecimento dessa ilusão.  Com todo esse sacrifício, a morte continua soberana, injusta e inevitável.

As pessoas não aceitam a fragilidade e a imprevisibilidade da natureza humana, que implica em dores, sofrimentos e, infelizmente, na morte; os médicos são treinados para fazer “tudo” o que for possível por cada paciente; com isso o mercado da saúde expande-se sem dificuldade. O médico acredita saber bem mais do que o que sabe, pois isso lhe dar prestígio e poder; e os pacientes acreditam que os médicos podem curá-los e salvá-los da morte em qualquer circunstancia, numa expectativa de saúde ilimitada. Um grande paradoxo.


A vida foi medicalizada em seus pormenores. A saúde deixou de ser apenas uma condição desejada para o bem viver, e tornou-se o principal objetivo da vida. Vive-se para ter saúde. Nesse modelo, a velhice precisa ser escamoteada e a morte escondida. Um agravante, saúde não significa qualidade de vida, mas apenas uma mercadoria a ser consumida. Essa é a nêmesis da medicina. Nêmesis, na Grécia antiga, era a vingança divina que atingia os mortais, quando eles usurpavam as prerrogativas que os deuses reservaram para si. A nêmesis é a resposta da natureza a hybris, a presunção do indivíduo que busca adquirir os atributos dos deuses. 

sábado, 13 de agosto de 2016

A SAÚDE NÃO TEM PREÇO



A SAÚDE NÃO TEM PREÇO.
Antonio Samarone de Santana
Academia Sergipana de Medicina

A medicalização da vida tornou-se absoluta. O corpo, reduzido a sua esfera biológica, foi estatizado. Sob o manto da “saúde como um direito”, a vida passou a ser normatizada pelo discurso da biomedicina. Com o amparo da ciência, a biomedicina estabeleceu o império do saudável. O discurso conservador da biomedicina se contrapôs ao culto da promiscuidade, das drogas e o do sexo, nos permissivos anos 1960. Vejam os exageros nas campanhas antitabaco. Ser saudável, jovem, feliz, passou a ser uma obrigatoriedade, tornou-se um modo de vida. A saúde perfeita tornou-se uma utopia apolítica de nossa sociedade. Com o esvaziamento dos espaços públicos e das questões e divergências políticas, ter “saúde” tornou-se a razão principal do viver.
O domínio de uma moralidade da saúde e do corpo perfeito assume o status do “politicamente correto”. Uma moral do bem-comer (só alimentos naturais e saudáveis), de práticas sexuais seguras, do beber com parcimônia, do controlar o peso, a pressão, o açúcar no sangue, o colesterol, de manter a forma física, dos “screening”, o tônus muscular, a capacidade aeróbica; e de manter a eterna juventude. Tornar-se um verdadeiro “healtism”, um sujeito que se autocontrola, se autovigia e se autogoverna tornou-se uma missão.
O discurso de “risco” é pilar estruturante desse novo modo de vida. Uma suposta ciência fornece informações abundantes e descontroladas do que cada comportamento ou consumo fora do higienicamente prescrito pode antecipar as doenças e a morte. O homem tem uma necessidade atávica de antecipar o futuro. Os profetas, adivinhos, oráculos, médiuns, quiromantes, videntes, cartomantes, entre outros, já viveram de predições; hoje essa função foi entregue as ciências.  Recentemente, a medicina anunciou que o colesterol, em certos casos, precisa se controlado a partir do segundo ano de vida. O mapa genético promete uma medicina personalizada, onde cada um saberá ao nascer o destino do seu corpo e de suas enfermidades e mazelas.
O corpo como objeto de dominação politica, a despolitização da vida, a verdade única, a uniformização dos indivíduos regulados pela biomedicina, mesmo em sociedades tidas como liberais, é parte do projeto totalitário do fascismo. É o fim da história. Esse homem, culturalmente desconstituído, tem na atividade econômica e no consumo a outra razão de vida (tempo é dinheiro). A dessacralização da vida, vista como a libertação do homem, como a consolidação do humanismo, nos conduziu a massificação de indivíduos atomizados.

O Estado atual tomou a saúde e o corpo como objeto de intervenção, e fez desse ato uma estratégia de dominação. A saúde tornou-se a mercadoria mais desejada, nesse universo do consumo. A história registrou a estatização da alma, no caso de Roma, ao assumir o cristianismo como religião. Salvar as almas tornou-se objetivo do Império. Um duro combate ao paganismo foi posto em prática. A estatização do corpo é historicamente uma novidade.