terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Medicina do Capital (a humanização da mercadoria) Parte I



A Medicina do Capital (a humanização da mercadoria) Parte I

Antonio Samarone.

O médico no Brasil, até o século XIX, segundo Lycurgo Santos, exercia um trabalho de baixo reconhecimento social: “De condição humilde, simples homens de oficio, por todo o decorrer do século XVI e ainda no XVII, são quase todos judeus, cristãos-novos ou meio-cristãos, os que vêm a exercer a profissão médico-farmacêutica. Nômades, como costumava na Europa, perambulavam de vila em vila, de povoado em povoado. Caminham léguas e léguas, chegam aonde não exista outro, a clientela aflui, praticam e ganham algum dinheiro. Ficam até que passe o sabor da novidade – um profissional na terra! – e, quando rareiam os fregueses, partem novamente para outra povoação, outro engenho, outras regiões. Uns tantos empregam-se nos serviços dos donatários, dos capitães-generais, dos senhores de engenho. Não passam de criados, serviçais de seu oficio.


A profissão médica consolida-se no século XX, assumindo características artesanais. O trabalho médico exercido em forma de cuidados artesanal, centrado na relação médico/paciente, onde os meios de produção e o saber estavam sob o seu comando dos médicos.

A medicina artesanal, fundada na anátomo clínica e no paradigma celular, foi o resultado da explosão do conhecimento científico estimulados pelo renascimento. Na medicina, tem início com o novo enfoque da anatomia dado por Andreas Vesalius (1543), tendo o seu pico com a consolidação do paradigma celular, assentado por Rudolf Virchow (1852). A medicina incorporou a revolução biológica (Louis Pasteur e Robert Koch), resultando na eficácia ao combate as pestes; a assepsia; o nascimento da clínica; o surgimento da quimioterapia (antibióticos e hormônios); a indústria farmacêutica, no pós Segunda Guerra; o laboratório; aa descoberta dos Raios X e os avanços da propedêutica.

Em linhas gerais, são esses precedentes históricos que embasaram a chamada medicina científica, e forneceu os pressupostos da medicina artesanal, que dominou a segunda metade do século XX no mundo. A prática da medicina artesanal centrava-se na relação médico/paciente (colóquio singular); na livre escolha, na confiança, pilar de sustentação; nos honorários; no segredo médico, uma prática sigilosa (letra de médico); na autonomia de conduta, fundada na casuística e na sensibilidade (arte médica); no controle do saber, da informação e dos meios de produção (posse do prontuário).

Na medicina artesanal a propedêutica e a clínica eram as principais tecnologias diagnósticas (a clínica era soberana); predominava a liberdade de formulação terapêutica (ausência dos protocolos); a singularidade de cada caso (o centro era o doente e não a doença); o exercício liberal do oficio (profissão), a medicina previdenciária submetia-se a lógica liberal; o objeto da atenção era o doente; os serviços médicos eram ofertados na forma de cuidados; forte influência filantrópica (sacerdócio); reduzidas especialidades (obstetrícia, pediatria, cirurgia, oftalmologia, ginecologia, cardiologia, psiquiatria, tisiologia), resultante da divisão social do trabalho; no predomínio das doenças contagiosas e carências (eventos agudos).

A revolução científica, fruto dos séculos XIX e XX, permitiu grandes avanços no campo das ciências médicas. O conhecimento médico e, consequentemente, a prática profissional adquiriram feições científicas, imprimindo a racionalidade objetiva com o fundamento de um novo paradigma médico. O pensamento e o ato médicos fundiram-se numa complexa combinação de empirismo, experiência cotidiana e raciocínio clínico. A consulta, a anamnese e a análise clínica passaram a ser a conduta-padrão e um bom médico, dando-lhe poder, prestígio e crédito junto ao paciente. Esse poder assume também feições econômicas.

Sérgio Arouca, em sua tese de doutorado, resumiu as características da medicina artesanal: “Entendemos que o trabalho médico se faz sob a forma de “cuidado” que comporta em sua estrutura o conhecimento médico (conhecimento científico e saber) corporificado em um nível técnico (instrumentos e condutas) e relações sociais específicas, visando ao atendimento de necessidades humanas que podem ser definidas biológica e (ou) socialmente.” A medicina artesanal foi desmontada a partir do final do século XX, devido a inadequação com a mercantilização da medicina, e na transformação desse cuidado em mercadoria.

No final do século XX a medicina passou por profundas transformações. Na esfera dos conhecimentos científicos, sobretudo nos avanços da genética (projeto genoma humano, abril 2003), transitando do paradigma celular para o molecular, estabelecendo as bases para uma nova medicina. A medicina vem incorporando outras tecnologias, que não cabem o aprofundamento nesse ensaio. O perfil epidemiológico modifica-se. O predomínio das doenças crônicas e causas externas (violência), substitui as doenças infecciosas e carências. Sem contar as transições demográficas (envelhecimento) e alimentar (obesidade).

Na nova era, segundo Haruki Murakami: “Os seres humanos não passam de portadores – vias – para os genes. Eles avançam montados em nós até nos exaurir, como seus cavalos de corrida, de geração a geração. Os genes não pensam no que constitui o bem e o mal. Não importa se estamos felizes ou infelizes. Para eles, somos apenas meios para um fim. A única coisa em que pensam é no que é o mais eficiente para eles.” Entramos na era do paradigma molecular.

A medicina se transforma num setor da economia. O capital não podia deixar a saúde, o bem mais desejado pela humanidade nas mãos amadora dos médicos. A saúde torna-se um direito, e substitui a salvação entre as aspirações humanas. O capital assenhora-se dos serviços de saúde e introduz a sua lógica. A saúde vira mercadoria. Para incorporar as características das mercadorias (impessoalidade, padronização, produção em massa), a tradicional forma de cuidados transforma-se em procedimentos, aparecem os protocolos, e o capital financeiro assume o financiamento e o controle. O primeiro ramo da saúde a assumir a forma industrial de produção foi o medicamento.

O trabalho médico foi parcelado em 4.700 procedimentos; de modo que o processo saísse do comando de um único profissional; passando oferta e o consumo dos procedimentos para a gerencia do capital; nesse caso, legitimado com a cobertura científica dos protocolos, fluxogramas, cadeias de cuidado e acreditação; teoricamente neutros, isento do interesse econômico; mas fundado em informações obtidas por uma produção cientifica financiada e comandada, em sua maioria, pelo capital das empresas produtoras de medicamentos, equipamentos e insumos médicos. Esses modelos gerenciais geralmente aumentam a produtividade e reduzem a eficácia.

A fragmentação do processo terapêutico acelera-se, cresce o número de procedimentos ofertados e multiplica-se as profissões em saúde, o que leva ao aumento do número de trabalhadores que intervém em um mesmo caso. Transforma-se numa linha de montagem descoordenada. Todos esses elementos contribuem em maior ou menor grau para a degradação do trabalho clínico. http://www.scielo.br/pdf/csc/v12n4/04.pdf

Durante a fase artesanal as mudanças no processo de trabalho estavam centradas na força de trabalho, nas habilidades do médico; na fase capitalista, o centro da organização é condicionado pelos instrumentos de trabalho, os meios de produção, pelo trabalho morto incorporado a tecnologia. O capital assume o controle dos avanços tecnológicos. Na transição, a divisão do trabalho do médico em especialidades obedeceu a condicionantes técnicos; a atual divisão, cinco mil procedimentos, obedecem sobretudo às necessidades de acumulação de capital, a lógica da gerencia capitalista, visando otimizar o setor econômico.
Antonio Samarone. 

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