A Medicina do Capital (a humanização da mercadoria) Parte I
Antonio Samarone.
O médico no Brasil, até o século
XIX, segundo Lycurgo Santos, exercia
um trabalho de baixo reconhecimento social: “De condição humilde, simples
homens de oficio, por todo o decorrer do século XVI e ainda no XVII, são quase
todos judeus, cristãos-novos ou meio-cristãos, os que vêm a exercer a profissão
médico-farmacêutica. Nômades, como costumava na Europa, perambulavam de vila em
vila, de povoado em povoado. Caminham léguas e léguas, chegam aonde não exista
outro, a clientela aflui, praticam e ganham algum dinheiro. Ficam até que passe
o sabor da novidade – um profissional na terra! – e, quando rareiam os
fregueses, partem novamente para outra povoação, outro engenho, outras regiões.
Uns tantos empregam-se nos serviços dos donatários, dos capitães-generais, dos
senhores de engenho. Não passam de criados, serviçais de seu oficio.
A profissão médica consolida-se
no século XX, assumindo características artesanais. O trabalho médico exercido
em forma de cuidados artesanal, centrado na relação médico/paciente, onde os
meios de produção e o saber estavam sob o seu comando dos médicos.
A medicina artesanal, fundada na
anátomo clínica e no paradigma celular, foi o resultado da explosão do
conhecimento científico estimulados pelo renascimento. Na medicina, tem início
com o novo enfoque da anatomia dado por Andreas Vesalius (1543), tendo o seu
pico com a consolidação do paradigma celular, assentado por Rudolf Virchow (1852).
A medicina incorporou a revolução biológica (Louis Pasteur e Robert Koch),
resultando na eficácia ao combate as pestes; a assepsia; o nascimento da clínica;
o surgimento da quimioterapia (antibióticos e hormônios); a indústria
farmacêutica, no pós Segunda Guerra; o laboratório; aa descoberta dos Raios X e
os avanços da propedêutica.
Em linhas gerais, são esses
precedentes históricos que embasaram a chamada medicina científica, e forneceu
os pressupostos da medicina artesanal, que dominou a segunda metade do século
XX no mundo. A prática da medicina artesanal centrava-se na relação
médico/paciente (colóquio singular); na livre escolha, na confiança, pilar de
sustentação; nos honorários; no segredo médico, uma prática sigilosa (letra de
médico); na autonomia de conduta, fundada na casuística e na sensibilidade (arte
médica); no controle do saber, da informação e dos meios de produção (posse do
prontuário).
Na medicina artesanal a
propedêutica e a clínica eram as principais tecnologias diagnósticas (a clínica
era soberana); predominava a liberdade de formulação terapêutica (ausência dos
protocolos); a singularidade de cada caso (o centro era o doente e não a
doença); o exercício liberal do oficio (profissão), a medicina previdenciária
submetia-se a lógica liberal; o objeto da atenção era o doente; os serviços
médicos eram ofertados na forma de cuidados; forte influência filantrópica
(sacerdócio); reduzidas especialidades (obstetrícia, pediatria, cirurgia,
oftalmologia, ginecologia, cardiologia, psiquiatria, tisiologia), resultante da
divisão social do trabalho; no predomínio das doenças contagiosas e carências
(eventos agudos).
A revolução científica, fruto dos
séculos XIX e XX, permitiu grandes avanços no campo das ciências médicas. O
conhecimento médico e, consequentemente, a prática profissional adquiriram
feições científicas, imprimindo a racionalidade objetiva com o fundamento de um
novo paradigma médico. O pensamento e o ato médicos fundiram-se numa complexa
combinação de empirismo, experiência cotidiana e raciocínio clínico. A
consulta, a anamnese e a análise clínica passaram a ser a conduta-padrão e um
bom médico, dando-lhe poder, prestígio e crédito junto ao paciente. Esse poder
assume também feições econômicas.
Sérgio Arouca, em sua tese de
doutorado, resumiu as características da medicina artesanal: “Entendemos que o
trabalho médico se faz sob a forma de “cuidado” que comporta em sua estrutura o
conhecimento médico (conhecimento científico e saber) corporificado em um nível
técnico (instrumentos e condutas) e relações sociais específicas, visando ao
atendimento de necessidades humanas que podem ser definidas biológica e (ou)
socialmente.” A medicina artesanal foi desmontada a partir do final do século
XX, devido a inadequação com a mercantilização da medicina, e na transformação
desse cuidado em mercadoria.
No final do século XX a medicina
passou por profundas transformações. Na esfera dos conhecimentos científicos,
sobretudo nos avanços da genética (projeto genoma humano, abril 2003),
transitando do paradigma celular para o molecular, estabelecendo as bases para
uma nova medicina. A medicina vem incorporando outras tecnologias, que não
cabem o aprofundamento nesse ensaio. O perfil epidemiológico modifica-se. O
predomínio das doenças crônicas e causas externas (violência), substitui as
doenças infecciosas e carências. Sem contar as transições demográficas
(envelhecimento) e alimentar (obesidade).
Na nova era, segundo Haruki
Murakami: “Os seres humanos não passam de portadores – vias – para os genes.
Eles avançam montados em nós até nos exaurir, como seus cavalos de corrida, de
geração a geração. Os genes não pensam no que constitui o bem e o mal. Não
importa se estamos felizes ou infelizes. Para eles, somos apenas meios para um
fim. A única coisa em que pensam é no que é o mais eficiente para eles.”
Entramos na era do paradigma molecular.
A medicina se transforma num
setor da economia. O capital não podia deixar a saúde, o bem mais desejado pela
humanidade nas mãos amadora dos médicos. A saúde torna-se um direito, e
substitui a salvação entre as aspirações humanas. O capital assenhora-se dos
serviços de saúde e introduz a sua lógica. A saúde vira mercadoria. Para
incorporar as características das mercadorias (impessoalidade, padronização,
produção em massa), a tradicional forma de cuidados transforma-se em
procedimentos, aparecem os protocolos, e o capital financeiro assume o
financiamento e o controle. O primeiro ramo da saúde a assumir a forma
industrial de produção foi o medicamento.
O trabalho médico foi parcelado
em 4.700 procedimentos; de modo que o processo saísse do comando de um único
profissional; passando oferta e o consumo dos procedimentos para a gerencia do
capital; nesse caso, legitimado com a cobertura científica dos protocolos,
fluxogramas, cadeias de cuidado e acreditação; teoricamente neutros, isento do
interesse econômico; mas fundado em informações obtidas por uma produção
cientifica financiada e comandada, em sua maioria, pelo capital das empresas
produtoras de medicamentos, equipamentos e insumos médicos. Esses modelos
gerenciais geralmente aumentam a produtividade e reduzem a eficácia.
A fragmentação do processo
terapêutico acelera-se, cresce o número de procedimentos ofertados e
multiplica-se as profissões em saúde, o que leva ao aumento do número de
trabalhadores que intervém em um mesmo caso. Transforma-se numa linha de
montagem descoordenada. Todos esses elementos contribuem em maior ou menor grau
para a degradação do trabalho clínico. http://www.scielo.br/pdf/csc/v12n4/04.pdf
Durante a fase artesanal as
mudanças no processo de trabalho estavam centradas na força de trabalho, nas
habilidades do médico; na fase capitalista, o centro da organização é
condicionado pelos instrumentos de trabalho, os meios de produção, pelo
trabalho morto incorporado a tecnologia. O capital assume o controle dos
avanços tecnológicos. Na transição, a divisão do trabalho do médico em especialidades
obedeceu a condicionantes técnicos; a atual divisão, cinco mil procedimentos,
obedecem sobretudo às necessidades de acumulação de capital, a lógica da
gerencia capitalista, visando otimizar o setor econômico.
Antonio Samarone.
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