sábado, 10 de agosto de 2019

SERGIPE ANTIGO (CAPÍTULO VI) CAPITANIAS HEREDITÁRIAS (parte dois)


(Cap. VI)

Sergipe Antigo. (Ciri-gy-pe – rio dos siris). (por Antônio Samarone)

A Capitania de Sergipe (parte dois.)

João III - O Piedoso (1502-1557) nasceu na cidade de Lisboa em 06 de junho. Primeiro filho de D. Manuel I com a rainha D. Maria de Castela. Assumiu o trono de Portugal em 19 de dezembro de 1521, alguns dias após a morte de seu pai, e reinou durante 36 anos. Casou-se com D. Catarina, irmã do imperador Carlos V, em 1525, e veio a falecer em junho de 1557.

A 26 de agosto de 1534, D. João III assina carta de doação da Capitania de Sergipe a Francisco Pereira Coutinho:

“D. João, por graça de Deus, rei de Portugal, e dos Algarves, daquém e dalém mar em África, senhor de Guiné e da Conquista, navegação, comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc. A quanto esta minha carta virem, faço saber que eu fiz ora doação, e mercê a Francisco Pereira Coutinho, fidalgo da minha casa, para ele e todos os seus filhos, e netos, herdeiros e sucessores, de juro, e herdade para sempre, da capitania e governança de 50 léguas de terra na minha costa do Brasil, as quais começarão na parte do rio São Francisco e correm para o sul até a parte da Bahia de Todos os Santos.”

Senhores de baraço e cutelo.

Os donatários eram de juro e herdade senhores de suas terras. Tinham jurisdição civil e criminal, com alçada até cem mil réis na primeira, com alçada no crime até morte natural para escravos, índios, peões e homens livres, para pessoas de mor qualidade até dez anos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia (se o herege fosse entregue pelo eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até morte natural, qualquer que fosse a qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo somente se a pena não fosse capital.

Os donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insígnias, ao longo das costas e rios navegáveis; seriam senhores das ilhas adjacentes até distância de dez léguas da costa; os ouvidores, os tabeliães do público e judicial seriam nomeados pelos respectivos donatários, que poderiam livremente dar terras de sesmarias, exceto à própria mulher ou ao filho herdeiro.

O território de Sergipe é o núcleo central da Capitania doada a Francisco Pereira Coutinho. São cinquenta léguas de costa, do Pontal a Caixa Prego. Cabia ao donatário repartir o território, doando sesmaria a quem bem intendesse, desde que fossem cristãos.

Se na terra houvesse minas, o Rei de Portugal teria direito a um quinto da produção, bem como dez por cento do pescado. O pau Brasil também era da Coroa.

O Capitão da Capitania ficava autorizado a doar sesmaria a qualquer pessoa, desde que cristão; se encontrasse ouro ou outros metais preciosos, era obrigado a pagar um quinto ao Rei. O pau Brasil e plantas medicinais continuam pertencendo ao Rei. Ao donatário eram atribuídos poderes de justiça e da fazenda pública.

Francisco Pereira Coutinho era um fidalgo abastado, experimentado na Índia, e chegou ao Brasil em 1537, com uma vasta comitiva, em sete naus, muita gente e muitos recursos. Inicia a ocupação de sua capitania de forma entusiasmada, construindo engenhos, distribuindo sesmarias, ocupando terras que não lhe pertenciam e criando um conflito com o velho Caramuru.

Os conflitos com os Tupinambás foram intensos. Os modos de ação de Coutinho eram incompatíveis com acordos e negociações, agia de forma violenta e imperial. Ficou conhecido como o Rusticão.

O poderoso Francisco Pereira Coutinho quis desenvolver a sua capitania à força, envolvendo-se em conflitos frequentes com os tupinambás, e um desses conflitos a soldadesca de Coutinho assassinou um filho do cacique, agravando os conflitos.

No primeiro momento ele teve a colaboração de Caramuru na pacificação dos gentios, harmonia que durou pouco, pois em pouco tempo ele manda prender o próprio Caramuru. Diante do agravamento da situação, Coutinho foge para a Capitania dos Ilhéus, tentando esfriar o estado geral de beligerância.

Francisco Pereira Coutinho, donatário da Capitania de Sergipe, naufragou nos baixios do Peraúnas, na Ilha de Itaparica, onde será deglutido pelos tupinambás.

Em meados de 1547, ao retornar para Villa Velha, sentindo-se seguro, as duas naus encalharam na extremidade sul da Ilha de Itaparica, Francisco Pereira Coutinho é preso pelos índios e submetido ao ritual antropofágico, que durou cinco dias, comum entre os tupinambás. A cerimônia demorou seis dias. Sua cabeça foi partida com uma clava, pelo irmão do índio assassinada; sua carne servida em fausto banquete.

A antropofagia é uma instituição por excelência dos tupi: ao matar um inimigo, de preferência com um golpe de tacape, no terreiro da aldeia, que o guerreiro recebe novos nomes, ganha prestígio político, acede ao casamento e até a uma imortalidade imediata. Todos, homens, mulheres, velhas e crianças, além de aliados de outras aldeias, devem comer a carne do morto. Uma única exceção a esta regra: o matador não come sua vítima.

Comer é o corolário necessário da morte no terreiro, e as duas práticas se ligam: "Não se têm por vingados com os matar senão com os comer". Morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupis. Como bem sintetizou Manuela Carneiro da Cunha.

 “De todas as honras e gostos da vida, nenhum é tamanho para este gentio como matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrários, nem entre eles há festas que cheguem às que fazem na morte dos que matam com grandes cerimônias, as quais fazem desta maneira.” (Fernão Cardim).

Os portugueses acreditavam que os índios eram animais, não possuíam alma, não possuíam natureza humana. A dúvida foi levada ao Vaticano, e através do breve Pastorale oficcium, em 29 de maio de 1537; seguido da bula, Sublimis Deus, de 02 de junho do mesmo ano, o Papa Paulo III (o mesmo que convocou o Concilio de Trento), concluiu que os índios eram gente, possuíam alma, e poderiam ser catequizados.

Um aspecto curioso desta bula é sua discussão de como lidar com a poligamia. Após a conversão, os índios tinham que se casar com a primeira esposa, mas se eles não conseguissem lembrar, poderiam escolher, dentre as esposas, aquela de sua preferência.

Em 29 de maio de 1537, da Bula Veritas Ipsa pelo Papa Paulo III, declarando serem os índios homens e que, como tal, tinham alma, reforça o entendimento geral de que a bestialidade era a característica dominante ou a imagem que os colonizadores, tanto espanhóis como portugueses, atribuíam às pessoas indígenas.

Essa decisão da Igreja cria uma dificuldade para os colonizadores, a escravidão dos índios foi condenada, passando ser autorizada apenas diante de uma guerra justa. Na prática, a Bula era pouco observada.

Bula Veritas Ipsa – 1537.

“Nós outros, pois, que ainda que indignos, temos às vezes de Deus na terra, e procuramos com todas as forças achar suas ovelhas, que andam perdidas fora de seu rebanho, para reduzi-las a ele, pois este é nosso oficio; reconhecendo que aqueles mesmos Índios, como verdadeiros homens, não somente são capazes da Fé de Cristo, senão que acodem a ela, correndo com grandíssima prontidão, segundo nos consta: e querendo prover nestas cousas de remédio conveniente com autoridade Apostólica, pelo teor das presentes letras, determinamos, e declaramos, que os ditos Índios, e todas as mais gentes que daqui em diante vierem à notícia dos Cristãos, ainda que estejam fora da Fé de Cristo, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e que não devem ser reduzidos a servidão. Declarando que os ditos índios, e as demais gentes hão de ser atraídas, e convidadas à dita Fé de Cristo, com a pregação da palavra divina, e com o exemplo de boa vida.”

Aantropofagiaexpressava oatraso da economia dosPovos Tupi.Comiam seus prisioneiros deguerraporque um cativo rendia poucomais do que consumia, não existindo incentivos para integrá‐lo à comunidade como escravo.

Escravidão.

Ao contrário da tradicional justificativa da escravidão, onde os prisioneiros de guerra, que seriam naturalmente eliminados, recebem a proposta de tornar-se escravo como uma generosidade do vencedor, entre a morte e a escravidão, fica patente que dos males o menor.

A escravidão implantada no Brasil pelos portugueses foi numa ordem inversa, criavam-se as guerras justas com o objetivo de prear-se os índios para escravizá-los. A incipiente economia no Brasil (cana, gado, extração e subsistência) foi tocada com a mão de obra escrava. Como os índios não aceitaram pacificamente essa condição foram eliminados, num genocídio abominável.

Os portugueses na ocupação do Brasil comportavam-se em sua relação com os nativos numa condição de supremacia absoluta, não existia a noção de crime.

As terras dos índios foram ocupadas, suas filhas e mulheres ficaram à disposição dos machos brancos, suas aldeias queimadas, sua cultura abolida (etnocídios), e uma eliminação física em massa, seja em “guerras justas”, sejam pessoalmente. Matar um índio não implicava em consequências para o assassino, nem ao menos era necessário explicar as razões do assassinato.

Antônio Samarone.

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