(Cap. IX)
Sergipe Antigo. (Ciri-gy-pe – rio
dos siris). (por Antônio Samarone)
O Bispo Sardinha – Ano 463 da
Deglutição do Bispo Sardinha.
“Chegamos ao aviltamento. A baixa
antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo - a inveja, a usura, a
calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é
contra ela que estamos agindo. Antropófagos.” (Oswald de Andrade)
O Bispo Sardinha enfrentou
calúnias, mentiras, acusações interessadas, mas resistiu, não abriu mão dos
seus princípios. Manoel da Nóbrega também não aprovava a missão pastoral do
Bispo Sardinha, em carta a Tomé de Souza, o provincial dos jesuítas afirmava:
“Quanto ao gentio e sua salvação
se dava pouco, porque não se tinha por seu Bispo e eles lhe pareciam incapazes
de toda a doutrina por sua bruteza e bestialidade, nem os tinha por ovelhas do
seu curral, nem que Cristo Nosso Senhor se dignaria de tê-los por tais... Nosso
Senhor... Quis... Castigar lhe o descuido e pouco zelo que tinha da salvação do
gentio. Castigou-o dando-lhe em pena a morte que ele não amava.
Em 09 de julho de 1953 foi criada
pelos jesuítas a Província do Brasil, visando que Manoel da Nóbrega ganhasse
privilégios canônicos, e melhor enfrentasse o Bispo Sardinha. Manuel da Nóbrega
permaneceu provincial do Brasil até 1559.
O beato Manoel da Nóbrega
comemorou a morte do Bispo Sardinha.
Com a chegada de Duarte da Costa
(1553) as relações com o bispo Sardinha se agravaram, por conta do
comportamento abusado do filho do Governador, Álvaro da Costa, comandante das
forças militares, que usava e abusava das índias, escravizava mesmo os índios
convertidos e aldeados.
A relação do Bispo já não era boa
com os jesuítas, à expedição de Duarte da Costa trouxe mais uma meia dúzia,
entre eles José de Anchieta. Os conflitos levaram a Coroa a chamar o bispo de
volta. Exatamente em 15 de junho de 1556, o bispo e uma imensa comitiva (103
pessoas), nobres, quatro cônegos, o provedor da Fazenda Real, Antônio Cardoso
de Barros, escravos, mais de cem pessoas retornavam à Portugal na Nau Nossa
Senhora da Ajuda.
Em seu retorno à Portugal, a Nau
Nossa Senhora d’Ajuda, que levava o Bispo Sardinha, naufragou em 16 de junho de
1556. Quanto ao local do naufrágio existem duas versões:
Gabriel Soares de Souza apontou
uma enseada de duas léguas, entre a foz do Rio Coruripe e o Rio São Francisco,
onde estão os arrecifes de Dom Rodrigo, local também conhecido como Porto Novo
dos Franceses; e Moacyr Soares Pereira fundamenta que o naufrágio ocorreu na
enseada do Vaza Barris, situada entre a margem esquerda do Rio São Francisco e
o Rio Japaratuba, próximo à Praia de Santa Isabel.
Na comitiva do Bispo iam mais de
cem brancos, entre eles, o Provedor Mor, Antonio Cardoso de Barros, pai de
Cristóvão de Barros, que conquistou Sergipe; dois Cônegos; duas mulheres
honradas e casadas; e vários nobres. Todos foram devorados, escapando apenas
dois índios, que vinham na expedição, e um português que sabia a língua, filho
do meirinho de correição.
O Bispo Sardinha foi a maior
autoridade eclesiástica devorada num ritual antropofágico, em toda ocupação das
Américas. Como agravante, o episódio ocorreu durante a realização do Concílio
de Trento, um dos mais importantes da cristandade. A reação da igreja romana
foi poderosa.
A primeira versão (Foz do Coruripe)
foi reproduzida por vários historiadores e é a mais conhecida. Moacyr Soares
juntou documentos e evidências, afirmando que a versão oficial foi um pretexto
para se condenar os Caetés, que há muito vinham incomodando Duarte Coelho, donatário
da Capitania de Pernambuco.
Com a morte de Duarte Coelho,
1555, os Caetés iniciaram uma revolta, apressando o empenho dos colonizadores
em sua destruição. Segundo Moacyr, o naufrágio ocorreu do lado sergipano, e o
ritual antropofágico foi obra dos Tupinambás. (entraremos em detalhes no
próximo capítulo).
Essa
versão foi forjada pelo governo Mem de Sá, procurando atender ao pleito dos
donatários da Capitania de Pernambuco, a quem a natureza aguerrida de belicosa
dos caetés incomodava bastante. Estava também em jogo o desejo de ocupação das
terras dos Caetés, tidas como de excelente qualidade para o plantio da cana de
açúcar e ampliação dos engenhos pernambucanos.
Se
houvesse veracidade na acusação aos Caetés, pela morte e canibalização do único
Bispo nas Américas, por que a punição só ocorreu em 1562, seis anos após o
naufrágio.
As relações belicosas entre
colonos e Caetés na Capitania de Pernambuco se agravam após a morte do
donatário Duarte Coelho em 1554, em Portugal. Em razão da ausência no Reino do
herdeiro da Capitania, Duarte de Albuquerque Coelho, o comando passa as mãos de
Jeronimo de Albuquerque, irmão da esposa de Duarte Coelho, dona Beatriz de
Albuquerque.
Jeronimo de Albuquerque
radicalizou na luta contra os Caetés, passou a exigir da Coroa a declaração de
guerra contra os índios. As divergências eram de ordem econômica, os índios não
aceitaram pacificamente a escravização; muito menos serem afastados das terras
que ocupavam a no mínimo 500 anos. Eram necessárias justificativas mais evidentes
para a declaração de guerra justa contra os Caetés.
Nada melhor do que os acusar da
morte do Bispo Sardinha.
As versões sobre a morte do Bispo
devem-se a imprecisão das notícias, no Brasil do século XVI. O Frei Odulfo Van
Der Vat, em seu livro “Princípios da Igreja no Brasil” nos oferece um exemplo
das dificuldades de circulação das notícias no século XVI, tudo era muito
incerto, com muitas versões.
Sobre a morte do Bispo Sardinha,
relata Van Der Vat: Mês e meio depois da espantosa cena de carnificina e
antropofagia, ainda a notícia era desconhecida na Baia, quando Nóbrega chegou
de São Vicente, a 30 de julho (Sardinha morreu em 16 de junho). Porque, datada
da cidade do Salvador, de primeiro de agosto de 1556, existia uma carta de
Pedro Rico, dirigida ao bispo Sardinha, a pedir-lhe uma conezia (um cargo
rendoso), não sabendo que já era morto.
O Padre Aurélio de Vasconcelos
repete a versão interessada de Gabriel Soares de Souza, de que o naufrágio do
Bispo Sardinha ocorreu na foz do Rio Coruripe, região dos Caetés, informando
que o funesto acontecimento se deu em 16 de junho de 1556, e que gerou uma sede
de vingança generalizada entre os portugueses, mesmo entre os que gostavam dos
índios.
A acusação aos Caetés como
responsáveis pela morte do Bispo Sardinha era apena a justificativa para o
extermínio da mais valente, mais guerreira tribo Tupi do Nordeste brasileiro.
Eles sabiam que o maior banquete antropofágico das Américas tinha ocorrido na
enseada do Vaza Barris, em território sergipano, sob o comando do temível Surubi,
importante cacique dos Tupinambás. Esses pagariam o mesmo preço por ocasião da
guerra de Sergipe, em 1590, quando foram dizimados como vingança pela morte do
mesmo Bispo, como veremos adiante.
Mem de Sá aproveitou-se desse
episódio do Bispo Sardinha para justificar a sua crueldade guerra contra os
gentios. Vale a pena lermos com atenção o nos diz o Padre Aurélio de
Vasconcelos sobre o tema:
“ Os sertões do Rio Real
(Sergipe) foram preferidos para essa inominável caçada humana, onde toda a
sorte de crueldade se praticou contra aquelas infelizes criaturas que além de
batidos da fome e das Pestes que houve nessa época (1562), eram ainda
agrilhoados pelo cativeiro, quando não os matavam por lá ao serem julgados
imprestáveis para esse fim.”
“O trato desumano e bárbaro,
quase canibalesco, que os civilizados deram aos naturais do Rio Real, não
diferia muito do que estes costumavam dar a seus inimigos. Quando muito, havia
equivalência de crueldades que uns e outros praticavam, senão, mais
exacerbadas, as daqueles colonos que haviam perdido a noção de consciência
cristã e os derradeiros resquícios de humanidade para com os silvícolas.”
Os ataques aos Tupinambás em
Sergipe começaram bem antes da expedição de 1575, como relata as histórias de
Sergipe. “Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de
um antropófago, o Visconde de Cairu: É mentira muitas vezes repetida. (Oswald
de Andrade).
Em Janeiro de 1563 foi a grande
morte das bexigas (varíola) tão geral em todo o Brasil, de que morreu muito
gentio, de que também levou muita parte de que havia nas igrejas em que os
Padres residiam, e depois da doença ser passada, e os índios se irem gastando
pouco e pouco, com parecer do governador Mem de Sá, por a igreja de São Paulo
ter já pouca gente, se repartiu essa que havia pelas outras, e assim não
ficariam mais de 4, que se conservaram por alguns anos.
Concordo com Sílvio Romero, que
os missionários e colonos inteligentes do século XVI, que deixaram notícias
escritas dos nossos índios, eram demasiado incompetentes para uma observação
regular, capaz de surpreender os mais íntimos fatos sociais e a fundamental
psicologia dessas gentes rudes. Diria mais, e muito poucos interessados na
imparcialidade dos fatos, contavam o que convinham do jeito que lhes
interessassem.
Gabriel Soares de Souza chegou à
Bahia em 1570, foi proprietário de engenhos e roças, e retornou a Madrid em
1587, passando 17 anos no Brasil. Ele dedica o seu livro Tratado Descritivo do
Brasil a Cristóvão de Moura. Gabriel Soares forjou a versão do naufrágio em
Coruripe e o banquete antropofágico dos Caetés, 14 anos após o ocorrido, e essa
versão passou a ser a oficial. Os demais historiadores só repetiram.
Com documentos, demonstraremos a outra
verdade sobre a morte do Bispo Sardinha. (próximo capítulo).
No mínimo duas nações foram
exterminadas por conta do banquete canibal do Bispo Sardinha, os Caetés em
1562; e os Tupinambás de Sergipe em 1590.
Esse fato estabeleceu a regra
principal do relacionamento entre o Poder e as classes subalternas no Brasil,
em vigor até hoje. A condenação da rainha Catarina de Áustria, esposa de D.
João III, em 1557, foi que os responsáveis pela morte do Bispo e comitiva
estavam condenados a escravidão eterna, inclusive os seus descendentes, sem
distinção de sexo ou idade.
Não precisava procurar e punir os
culpados, todos eram culpados. Foi assim em Canudos, foi assim em várias
revoltas populares ao longo da história, e é assim até hoje, quando as polícias
sobem as favelas em busca de traficantes. Todos são culpados, até que se prove
o contrário.
Antônio Samarone.
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