O Natal sempre chega. (por Antonio Samarone)
Caçulo Ferreiro, 82 anos, tinha acabado de armar o seu presépio, uma tradição da Matapoã. Final de tarde, deitou-se para descansar e tomar fresca, na velha rede da varanda. Um hábito atávico. Uma rede branca, encardida e pensa.
O inesperado: os punhos puídos da rede partiram-se repentinamente e Caçulo caiu indefeso, no chão batido, quebrando de vez o colo do fêmur e a bacia.
Os velhos temem as quedas, os catarros e as caganeiras. As duas últimas, a melhoria da higiene pessoal e a geriatria deram um jeito. Sobrou a queda, como causa importante de óbito entre os idosos. Entre as quedas, a de rede é a mais temida.
Caçulo é o último dos ferreiros da Matapoã. Um homem sóbrio, religioso, culto e original. Na exegese bíblica, Caçulo desbanca qualquer pastor, e até mesmo padres formados em teologia.
Após a queda, Caçulo, apesar das dores, não para de falar. Tudo em duplo sentido: “eu cair por soberba, já sabia que rede não é para velhos, mas insistia. Carrego os meus órgãos há 82 anos. Eles possuem memória e aprenderam a conviver com as minhas esquisitices. Dessa vez, cair! Talvez a e definitiva queda.”
“Os tombos (quedas) sempre me assustaram. O tombo contém todo o simbolismo mitológico da queda bíblica. A queda do pecado original. A soberba vem antes da queda. Lúcifer, Adão e Eva, Babel e Prometeu incorreram no mesmo erro: a soberba contra os deuses.” – Caçulo Ferreiro.
O arquétipo da queda é universal.
Caçulo Ferreiro é o último sábio da Matapoã. O principal arquétipo da velhice é do velho sábio. Hoje, os velhos já não pode desempenhar qualquer papel em nossa sociedade, porque a velhice se agarra tão convulsivamente à vida que perde aquela soltura imprescindível ao velho sábio.
Caçulo não teme a morte, só pede que seja depois do Natal. Seu presépio está montado. Ele só espera assistir a última missa do galo, no Vaticano. Pela TV. Ele adora o “Pater Noster” catando em latim.
Caçulo, mesmo moribundo, me confidenciou: Os sinais da velhice, possuem significados bíblicos:
“Deixamos de ver o que está próximo (presbiopia). O olhar passa por cima disso e vagueia na distância. A finalidade é obter uma visão de conjunto e enxergar longe, em sentido figurado.”
“Na perda da memória recente, a tarefa é nítida: libertar-se das ninharias do cotidiano e descobrir de preferência o grande arco da vida. É preciso lembrar-se dos temas importantes da vida e interiorizá-los.”
“A surdez da velhice mostra aos afetados que eles não podem mais ouvir determinadas coisas. É natural suspeitar que eles já as ouviram demasiadas vezes e agora desligaram. Há muita coisa que eles absolutamente não ouvem mais, mas outras, contra as expectativas, são ouvidas, e bem.”
“A única ameaça, que desconheço o significado, é o "grande esquecimento". Uma doença que termina fazendo com que se perca a razão é uma provocação para as pessoas, numa sociedade que coloca a razão acima de tudo."
"Quando o psiquiatra bávaro Alois Alzheimer a descreveu pela primeira vez, há quase um século, os médicos não sabiam nada a respeito.” E, até hoje, sabem muito pouco.
“A degeneração do cérebro é o último recado contra a soberba humana.”
“Nos estágios avançados das demências, o sofrimento à noite adquire proporções impressionantes. Quando as pessoas despertam em pânico e aos gritos ou perambulam pela casa, é difícil de entender para as pessoas que cuidam deles. Como as pessoas estão sem orientação e sem memória, elas acordam à noite em completa escuridão, sem saber onde estão e, mais tarde, também sem saber quem são.” Caçulo Ferreiro.
“O meu medo, primo, ferreiro ilustre, não é da morte, mas do grande esquecimento.”
“Vou morrer lúcido. A queda é parte da condição humana.”
Rogo a Deus, que Caçulo Ferreiro alcance o Natal. Já é depois de amanhã.
Antonio Samarone (Secretário de Cultura de Itabaiana)
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