sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O DIREITO A RANZIZICE.

O Direito a Ranzinzice.
(por Antonio Samarone)

Nos últimos 50 anos, houve um empoderamento das crianças e uma perda de importância dos velhos. Eu peguei a transição: quando eu era menino, os velhos eram poucos, mas, de certa forma, pesavam socialmente.

Os meninos não tinham vontades, nem quereres. Eu envelheci e tudo mudou: os meninos se empoderaram, mandam até nos pais e nos professores. Já os velhos, viraram até uma ameaça, durante a Pandemia.

Num congresso estudantil, os jovens pediram um conselho a Nelson Rodrigues. Ele foi sucinto: - “envelheçam!”. Era a velhice ciosa da sua importância.

Me aposentei da Faculdade de Medicina, por desencanto. Ensinava “Saúde e Sociedade”. Um aluno me perguntou na primeira aula: “professor, do conteúdo de sua disciplina, o que eu posso usar como procedimento e ofertar em meu consultório?”

Percebi que estudar as relações "saúde/sociedade" estava superado. O currículo deveria ofertar o curso “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”, em convênio com o SEBRAE.

Assisti a um seminário estudantil recente, na Faculdade de Medicina da UFS, onde uma consagrada decana, experiente, professora doutora, acrescentava um exagerado comentário elogioso após cada apresentação dos alunos. Ela sabia da superficialidade, mas fazia média, jogava para a plateia, para agradar aos poderosos jovens.

“Apresentação encantadora”, repetia acriticamente a decana. São os tempos!

Aos setenta, não posso cantar como Piaf, “Non, je ne regrette rien”. Eu me arrependo de muita coisa: não gastaria tanto tempo com a política; não tinha talento; não era a minha vocação.

Entrei na política querendo consertar o mundo, deixei pior...
Fui grosseiro com muitos amigos. “Se ficaram mágoas em mim/ Mãe tira do meu coração/ E aqueles que eu fiz sofrer peço perdão.” – RC.

Me arrependo de não ter dedicado mais tempo a minha família, dedicado mais tempo a minha esposa, acompanhado mais o meu filho e tomado a minha sogra como exemplo de sabedoria. Ainda é tempo... Peço perdão, pelos erros!

Entrei na medicina por vaidade. Fiz o vestibular como um desafio. Sem cotas, o segundo grau no Murilo Braga iniciando, sem acesso ao pré-vestibular, trabalhando durante o dia, mas queria passar em um curso disputado.

Uma tia, tinha me feito um insulto: “É muita pretensão, um filho de Maria Lourdes e Elpídio, um Zé Ninguém, querendo ser médico.” Tomei como um desaforo.

Como septuagenário, em gozo dos meus direitos, abro mão do sagrado direito a ranzinzice. O direito a dizer o que se pensa, na cara do mal-assombrado, quando quiser, sem mediações, nem arrodeio.

Exercerei plenamente o direito a impaciência, concedido pelo Estatuto dos Idosos, o direito de me fazer de surdo, como proteção à enxurrada diária de bobagens.

Farei o bom uso do enfraquecimento natural da memória, facilitadora do desapego. As boas lembranças fortalecem a saudade e aos apegos à vida. Não falo do fim da memória, O fim da memória é a demência, o apagamento, a morte antecipada do espírito.

Falo dos benefícios do esquecimento seletivo da memória.

Antonio Samarone – Septuagenário.
 

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