Creusa, a Princesa.
(por Antonio Samarone).
Vocês se lembram da Princesa?
Contei nas redes sociais que apreendi a ler, lendo os cordéis do meu avô. Já entrei na escola, lendo. Mal conhecia as letras, mas lia de carreirinha. Lia o cordel, ritmado. Não sei como. Passei no rigoroso exame de admissão do Murilo Braga, pela leitura. Tirei dez!
Um itabaianista erudito, Robério Santos, leu as minhas bobagens nas redes e me deu de presente natalino o livro: “O Cordel em Sala de Aula”, de Arusha Kelly, com o subtítulo, “Sugestões didáticas pedagógicas para uso da literatura popular, visando ao incremento da leitura”.
Levei um susto. Achei que era uma esquisitice minha, mas a ciência pedagógica afirma que não. O cordel pode ser usado na alfabetização. Eu fui apenas mais um caso.
Meu avô guardava, à parte, os livros de Leandro Gomes de Barros (uns trinta). Mamãe recitava de cor a peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho de Tucum. A chegada de Lampião no Inferno, é um clássico:
”Houve grande prejuízo
No inferno nesse dia
Queimou-se vinte mil conto
Que Satanás possuía
Queimou-se o livro do ponto
Perderam seiscentos contos
Somente em mercadoria.”
Foi nas Flechas, na casa de vovô, aos 7 anos, que li o “Pavão Misterioso”. Li ou ouvi meu avô lendo. Tanto faz. Aos 70, ainda me lembro de Creusa, a bela princesa grega, que fugiu com o turco Evangelista, num Pavão Misterioso, construído pelo português João Sem Medo.
O meu gosto pela leitura veio do Cordel. Aprendi ler o mundo, antes das palavras. Ler, sempre foi uma forma de viajar, de conhecer gente nova. Descobri pelo Cordel, que a escrita trazia uma mensagem. Ler é decifrar. Me interessei!
O conteúdo de um texto não é dado "a priori". O leitor vai dando a sua versão, criando o seu entendimento. O atual domínio da imagem, do áudio visual, afastou o texto. A leitura é trabalhosa, cansa a vista, distrai, toma tempo. O vídeo valoriza a imagem, simula objetividade. As imagens vêm sufocando as narrativas.
O Cordel é a literatura popular, em verso.
Sim, mas o que seria popular? O criado pelo povo, o que o povo gosta ou o que é superficial e simples? O Cordel vem de longe, da tradição oral portuguesa, dos tempos medievais. O Cordel pode ser impresso, improvisado em pelejas e, às vezes, acompanhados ao som das violas.
Suassuna confessava que a sua obra teatral foi inspirada na literatura popular. O Cordel viceja na Paraíba. Em Sergipe, ele engatinha. De peso, lembro-me de João Canário e João Firmino Cabral. Como a minha memória é seletiva, os dois de Itabaiana.
Muita gente letrada faz versos pobres, pouco inspirados, e depois batiza-os de literatura de Cordel. Esses não merecem a minha atenção. Deus me perdoe.
O poeta e amigo Aderaldo Luciano ensina que o Cordel tem regras, estilo, ritmo e linguagem própria. Versos com 4 tipos de estrofes: quadra, sextilha, setilha e décima. A rima do Cordel é feita para o ouvido e a memória, não para os olhos.
A literatura de Cordel tem muita coisa boa e muita porcaria, do mesmo modo que a literatura erudita. As livrarias estão apinhadas de livros eruditos irrelevantes. Livros que existem só para atiçar o ego dos seus autores.
O Cordel é uma expressão do som, uma arte para os ouvidos; as redes sociais são explosões de imagens. O reino das selfies. Os cordéis permitem as narrativas, as imagens não, são digitais, binárias.
Gostei do presente de Robério. O livro da Arusha Kelly é interessante. Parece que já é adotado no Ceará, onde a educação básica é de qualidade, desde os tempos de Ciro Gomes.
Antonio Samarone – Secretário de Cultura de Itabaiana.
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