terça-feira, 15 de agosto de 2023

AS VIRTUDES DA PREGUIÇA

 As virtudes da preguiça.
(por Antonio Samarone)

Foram encontrados os manuscritos de Pedro Ferreiro: elogio a vadiagem.

Situando o leitor, Pedro levou a vida pescando nos grotões da Ribeira. Tido e havido como doido manso. Vivia de uma banca de miudeza, tocada pela esposa, na feira de Itabaiana.

Para não ir longe, Pedro Ferreiro descendia da numerosa família de João José, Cristão Novo, que chegou à Matapoã, na primeira metade do século XIX.

Existem muitas histórias sobre Pedro Ferreiro, todas transmitida oralmente, boca a boca, sem comprovação. Agora apareceu um velho caderno, escrito à lápis, que está assinado por ele. O caderno foi encontrado numa casa que ele viveu, há mais de cinquenta anos.

Nem creio, nem descreio na veracidade do manuscrito. Apenas vou resumi-lo.

Logo na capa, um aforismo: “o elogio frontal, cara a cara, é um insulto.”

“Os jovens criticam, os velhos elogiam. Ninguém se defende dos elogios, eles atingem a vaidade. Todo elogio é falso.”

“Sou condenado, por doidice, disse Pedro, um elogio que não aceito.”

Segue o manuscrito:

“Viva ao ócio, em especial ao ócio sagrado (sacerdócio). O ócio da contemplação. Ao ócio dos filhos de Levi. No mundo da negação ao ócio (negócio), o ócio virou preguiça, um pecado capital.”

“Nunca se está mais ativo do que quando nada se faz, nunca se está menos solitário do que quando a sós consigo mesmo.”

“Na cosmovisão judaico cristã, após criar o mundo, Deus descansou no sétimo dia. Deus não cansa, o repouso foi parte da criação. O sabá dos judeus é esse repouso, onde o passar do tempo é suspenso. Sem esse repouso, o ser humano perde o divino, perde parte da criação.”

Parece que Pedro conhecia o Torá e a Cabala judaica. Livros trazidos por João José, em sua diáspora.

O pensamento de Pedro, está na música:

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/ Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/ A vida não para/ Enquanto o tempo acelera e pede pressa/ Eu me recuso faço hora vou na valsa/ A vida é tão rara.” – Lenine.

O pensamento de Pedro revive, num mundo do desempenho, onde o tempo é do capital e da produção. É o eterno retorno, de Nietzsche. Não há mais dúvida, o tempo é cíclico, uma imagem da eternidade.

O tempo das festividades não é parte do mundo do trabalho, pertence ao mundo da contemplação. O capitalismo transformou a festa em mercadoria.

“A inatividade constitui o humanum. Sem repouso, surge uma nova barbárie. É o silenciar-se que dá profundidade a fala. Sem o silencio não há música, mas apenas ruído, barulho.” – Chul Han

Flanar, zanzar, vadiar, remanchar, deixar para a amanhã o que se pode fazer hoje, andar ao léu, gazear, perder tempo, são formas de resistência à sociedade do desempenho.

No Brasil, só inventamos o ponto facultativo para os funcionários públicos. Ponto facultativo para todos!

Espero que os filósofos, teólogos e pensadores avulsos se debrucem sobre o pensamento de Pedro Ferreiro. Peçam uma cópia do manuscrito.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

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