A desumanização da medicina. (por
Antônio Samarone)
Existe um movimento nacional pela
humanização da medicina. Essa iniciativa é o reconhecimento óbvio de que a
medicina foi desumanizada. Entretanto, não fica claro nem o que é, nem como
aconteceu essa desumanização. Nas entrelinhas, parece uma visão ingênua. A
desumanização é vista como: desvio pessoal de conduta do médico, voltada para o
lucro; postura psicológica inadequada; ou desatenção no relacionamento com a
sua clientela.
Os remédios sugeridos para a
humanização seriam, a introdução de conteúdos de “humanidades” e de noções de “artes”,
nos currículos de medicina. Para o senso comum a medicina é “ciência e arte”,
faltar-se-ia o segundo pilar na formação. Arte nessa perspectiva é entendida
como música, pintura, teatro e dança. O projeto visa introduzir noções de
literatura, arte e filosofia nos currículos de medicina.
Mesmo ausente no projeto a
concepção histórica da “medicina como arte” (percepção sensível do sofrimento
humano), mesmo assim, tornar os médicos pessoas ilustradas, abertos às artes, a
história e a filosofia, tem lá os seus benefícios. Entretanto, pouco afeta ao
processo de desumanização em curso.
O caminho apontado é a criação de
disciplinas onde os alunos leiam os clássicos da literatura, discutam filosofia
e história, assistam a filmes, façam teatro, dançem, ouçam músicas, em suma, recheiem
a sua formação com conteúdo de humanidades. Um pouco de erudição cultural. Para
relativizar um certo cientificismo, tecnicismo, frieza, reais ou imaginárias.
Onde e como ocorreu essa
desumanização da medicina?
Quando a medicina deslocou a
atenção ao doente para a doença, ela caminhou para a desumanização. A relação
deixou de ser homem/homem, do médico com o doente, para ser homem/objeto, do
médico com a doença. A relação médico/paciente virou uma relação médico/doença.
A medicina passou a lidar com “casos”.
A medicina artesanal do século
XX, exercida predominantemente de forma liberal, estava centrada na relação
médico/paciente, no colóquio singular, na livre escolha, na confiança, no
segredo, na autonomia do médico. Ela está sendo substituída pela medicina
comercial. A clínica perdeu a soberania. O paciente virou consumidor, cliente,
usuário.
O segundo passo da desumanização
foi o “cuidado” deixar de ser o eixo central do ato médico, de forma que a
realização dos procedimentos assumiu a forma principal. A mudança foi mais
profunda, pois o médico poderia centrar a sua atenção nas doenças e
secundariamente, manter uma relação principal com os doentes. Seria uma
desumanização mitigada. O caminho seguido foi outro.
O ato médico foi subdividido em quatro
mil e seiscentos procedimentos, conforme a tabela da AMB. Procedimentos
classificados em grau de complexidade e realizados de forma independente, por profissionais
distintos, no atendimento a um mesmo paciente.
O que induziu a medicina a essas
mudanças?
Em meados da segunda metade do
Século XX (1980/90), os serviços de assistência à saúde foram incorporados ao
mercado, tornando-se uma importante atividade econômica. No Brasil, passou a
representar cerca de dez por cento do PIB.
No pós Segunda-Guerra, os medicamentos
assumiram a forma de mercadoria industrializada, superando a fase artesanal.
Foi o primeiro subsetor do complexo assistencial da saúde a incorporar-se ao
mercado capitalista. O remédio é uma mercadoria e assim se comporta. A sua
produção é comandada pela lógica do lucro (primazia do valor de troca sobre o
valor de uso), produção em larga escala e padronização.
Ao assumir a forma de atividade econômica,
surgiu uma grande dificuldade para a assistência à saúde: como transformar os
cuidados médicos em mercadorias. A medicina lida com a morte e o sofrimento
humano. Como enfrentar a subjetividade do cuidado e a personalização? Cada
paciente é uma pessoa em particular, tem a sua história, suas crenças, seus
desejos e seus medos. Como padronizar esses cuidados, torná-los impessoais,
quantificáveis, produzidos em série, em síntese, torná-los mercadoria?
O trabalho médico na forma de
mercadoria se relaciona com as doenças em forma de coisa (“casos”). Uma relação
entre pessoas, médico/paciente, se transformou numa relação entre coisas, no
conhecido processo de fetichismo da mercadoria. A relação social entre as coisas,
tomou o lugar de uma relação entre pessoas. Resumidamente, é a chamada
desumanização da medicina.
A economia de mercado produz
mercadorias, sem meio termo. Independente do valor de uso, as mercadorias
realizam-se na troca, na consumação do lucro. O capital tem as suas leis. Era
preciso padronizar o cuidado médico para adequá-lo as exigências do capital.
Foi preciso transformar os
cuidados médicos pessoais e subjetivos em frações objetivas, quantificáveis e
impessoais. A saída foi a introdução dos protocolos e das diretrizes
terapêuticas para a padronização e fragmentação do cuidado médico em procedimentos.
Era o esvaziamento da relação médico/paciente e o nascimento de uma relação de
consumo.
O médico passou a produzir para o
mercado, comandado pelas operadoras dos planos de saúde. O mercado financeiro
assumiu um papel dominante na produção de serviços. O complexo médico-industrial
se consolidou. Para sobreviverem, os hospitais filantrópicos, familiares, cooperativos
se profissionalizaram e assumiram a lógica da produtividade. Mesmo assim, correm
o risco de serem incorporados pelas grandes redes internacionais, comandadas
pelos fundos de pensões.
A medicina deixou de ser voltada
para os pacientes e voltou-se para o mercado. Isso independe do comportamento ou
crença de cada médico. Existem nichos de resistência, mas que não alteram a tendência
dominante. Em algumas especialidades, por sua natureza holística, essa
transformação do cuidado médico em mercadoria é mais penosa. Por exemplo: na
geriatria o cuidado com o idoso é por natureza integral.
A transformação econômica do
cuidado médico em mercadoria não é aceita pelos médicos, enquanto categoria. Fere
a tradição histórica da medicina: o médico era remunerado por honorários. O próprio
código de ética condena a mercantilização da medicina.
A transformação do sacerdócio em
negócio é dolorosa. Existe um preconceito consolidado de que negócio cheira a
ilicitude e a trapaça. Os negócios podem ser decentes, os lucros legítimos e os
consumidores conscientes dos seus direitos.
Qual o papel das faculdades de
medicina e da formação médica nessas mudanças?
A principal contribuição do
ensino nesse aspecto é revestir o ato médico de um viés científico e transformá-lo
numa prática supostamente científica. O ato médico enquanto mercadoria, não é aceito
Ideologicamente. A medicina voltada para o mercado, passa a ser percebida pelos
seus praticantes como uma medicina voltada para a ciência.
Nessa ação de camuflagem
cientifica, os cursos de humanidades propostos tanto podem contribuir para o aperfeiçoamento
da sublimação ideológica, como, dependendo da abordagem, contribuir para o aprofundamento
da resistência ao processo de desumanização. A clareza conceitual sobre o que
estamos chamando de desumanização, é etapa decisiva no caminho a ser trilhado.
Em poucas palavras, a
desumanização não foi um caminho apenas simbólico ou um desvio pessoal dos
médicos. As bases fundantes da desumanização são materiais. Sem enfrentar o
desconforto de entender a forma de mercadoria assumida pela prática médica, não
chegaremos às raízes da questão.
O assunto é mais complexo e não
se esgota nesse texto de problematização. Por exemplo: a desumanização da
medicina pública, da assistência do SUS, onde a transformação do cuidado médico
em mercadoria não faz sentido. Neste caso, o que levou à desumanização?
No caso brasileiro, a medicina
pública assimilou o mesmo modelo assistencial da medicina privada, hegemônica desde
o final do Século XX. A medicina suplementar por lei, virou a principal. O
Sistema Único de Saúde (SUS) transformou-se num Sistema Único de Doenças
(SUD). Mas, cabe aqui, uma discussão à
parte.
A humanização da medicina consiste
no retorno à medicina voltada para os pacientes e no esforço em manter o “cuidado”
como principal característica do ato médico. Os cuidados paliativos podem
servir de exemplo ao caminho apontado. É a volta na ênfase da relação
médico/paciente. A humanização é o retorno da relação homem/homem, como eixo da
prática médica.
A contradição é como realizar
esse retorno ao paciente numa medicina de mercado. As novas formas de organização
do trabalho médico, guiadas por novas tecnologias, sobretudo no campo da
tecnologia da informação (TI), novos aplicativos, automação, robótica,
inteligência artificial, evoluem para uma medicina personalizada, dentro do paradigma
molecular. Mas aqui já entramos na futurologia.
Antônio Samarone.
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